A continuidade desse matriarcado seria marcada por seguir a missão de colocar a Lavapés na rua, ano a ano, independentemente da posição.
Compartilhado de Jornal GGN
por Daniel Costa
Durante o mês de novembro, especialmente quando chegamos próximo ao dia 20 de novembro, data em que é comemorado o Dia da Consciência Negra começamos a ver na imprensa ainda tida como hegemônica diversas reportagens apresentando personagens que, ao longo da nossa história, foram deixados a margem dos acontecimentos; além de discussões sobre o racismo cotidiano, o acesso (ou a falta) a serviços públicos e etc. Comparando o cenário que era visto há alguns anos devemos reconhecer que o debate em torno dessas pautas vem ganhando mais espaço. Porém um certo incômodo ainda permanece: por que somente em novembro esse destaque é dado? Afinal, o racismo, o processo de invisibilidade e tantas outras situações ocorrem ao longo dos 365 dias do ano.
Como bem definiu o hoje Ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida em seu livro onde apresenta a ideia de racismo estrutural : “Por ser estrutural, o racismo é também processo histórico. Desse modo, não se pode compreender o racismo apenas como derivação automática dos sistemas econômico e político. A especificidade da dinâmica estrutural do racismo está ligada às peculiaridades de cada formação social. De tal sorte, quanto ao processo histórico também podemos dizer que o racismo se manifesta: de forma circunstancial e específica e em conexão com as transformações sociais”. Ou seja, a invisibilidade desses temas ou seu uso de acordo com a oportunidade de ocasião é a tônica dada ao assunto, principalmente pela grande imprensa.
Quando paramos para refletir de forma mais atenta na questão da invisibilidade compulsória, a quantidade de mulheres negras postas à margem dos acontecimentos ao longo da história brasileira é latente. De acordo com a escritora e jornalista Bianca Santana: “Ter voz. Visibilidade. Representatividade. Expressar-se para manifestar suas angústias, críticas, histórias, alegrias, conquistas. Ter a capacidade de ampliar sua fala, de colocar a palavra em movimento e fazer com que ela possa alcançar corações e mentes e, por que não, transformá-las. Isso (entre muitas outras coisas) foi, por muito tempo, negado de forma veemente às mulheres negras brasileiras, reflexo do passado escravocrata e colonial, que insiste em vigorar no país”.
Segundo a educadora social Cátia Maringolo: “A história das mulheres negras no Brasil, na grande maioria das vezes, reverbera processos contínuos de invisibilização, apagamento e silenciamento, seja tanto numa quase que disseminada percepção (e falsa afirmação) de que não temos relatos e narrativas suficientes de existências negras quanto na de que essas mesmas experiências são relampejos raros e insuficientes na colcha de memórias e histórias que compõem o aparentemente homogêneo tecido social brasileiro”.
Foi esse processo de invisibilização que deixou a margem no decorrer de nossa história personagens como: Dandara dos Palmares, Luiza Mahin, Tereza de Benguela, Maria Felipa, Antonieta de Barros, Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Madrinha Eunice e tantas outras mulheres que foram verdadeiras protagonistas de sua trajetória e da sociedade em que estavam inseridas. Porém por mais que tenhamos iniciativas para resgatar o protagonismo dessas mulheres – iniciativas tocadas por inúmeros coletivos e pesquisadores acadêmicos -, em uma sociedade onde o racismo estrutural, o machismo e o poder do capital persistem, grandes mulheres seguem lutando para não ver o legado de seus antepassados e sua própria trajetória apagada ou diminuída. Esse é o caso da nossa personagem, Rosemeire Marcondes, ou simplesmente Rose, a mulher que desde a morte da Madrinha Eunice luta para manter o legado de sua avó e do samba forjado na região do Glicério.
Antes de contar a trajetória de Rosemeire é fundamental apresentar sua avó, pois não há como dissociar a caminhada da neta sem pensar na trajetória da matriarca. Deolinda Madre, a Madrinha Eunice nasceu na cidade de Piracicaba em 1909, filha de negros alforriados muda com a família para a capital ainda criança, fincando raízes na região da Liberdade, onde viveria até falecer em 1995. Estudando apenas até o quarto ano, ainda criança Deolinda começou a vender frutas na região central, chegando quando adulta a possuir quatro barracas grandes pela região, fato que contribuiu para o estreitamento de seus laços com a comunidade, resultando mais tarde na grande influência que teria no universo do samba. Frequentadora das festas religiosas e dos festejos carnavalescos, foi após acompanhar o carnaval no Rio de Janeiro em 1936 que decidiu ao lado do seu irmão, Zé da Caixa, e do então companheiro Chico Pinga, e os cunhados Pérsio, Osvaldo e Mário, fundar a Lavapés, aquela que seria a escola de maior importância na capital, ao menos até o final da primeira metade do Século XX, ocupando depois o importante papel de grande mãe das demais escolas de São Paulo.
Já Rosemeire Marcondes nasceu em 28 de março de 1967 na casa de Madrinha Eunice, localizada na Rua da Glória. De acordo com a produtora e pesquisadora Lígia Fernandes em trabalho sobre a escola do Glicério, a mãe de Rosemeire, “Maria Aparecida Marcondes, foi criada por Eunice desde os quarenta dias de vida, devido ao falecimento da avó biológica de Rose, Maria Tereza Mauro, que era rumbeira da Lavapés. Maria Aparecida fora escolhida a Bonequinha do Café – título dado em concurso promovido pela UESP que escolhia a negra mais bonita do Brasil”. Foi na Lavapés que Maria Aparecida viria conhecer seu futuro marido, Wilson Marcondes, o Teixerinha. Wilson ao longo de sua vida desempenharia diversas funções na escola, chegando a ocupar o cargo de vice-presidente da agremiação, se tornando o braço direito de Eunice. Teixerinha faleceria precocemente em 1970 deixando sua marca na alvirrubra do Glicério.
Cada vez mais próxima da Madrinha, afinal desde criança acompanhara a matriarca do samba na folia carnavalesca e em festas como a de Bom Jesus de Pirapora, Rosemeire vai trilhando seu caminho na Lavapés, ocupando o posto de porta-bandeira, ritmista, intérprete e compositora. A experiência acumulada acabara fazendo de Rose a sucessora natural de Madrinha Eunice no comando da escola. Assim, em 1995 aos vinte e sete anos, Rosemeire passa a comandar a escola após a morte daquela que foi um dos símbolos do carnaval paulistano. Cabe destacar que foi nesse ano que a Lavapés, ainda sob o comando de Eunice viria com um samba composto por Atanázio Pereira e Rosemeire. Com o samba “E por que nós somos uma tradição?”, além de contar a trajetória da escola, também foi destacada a trajetória da fundadora da agremiação. Podemos pensar até que os deuses do samba e os orixás proporcionaram com aquele momento não só a homenagem ainda em vida, mas também a passagem de bastão, preparando a Lavapés para os novos tempos.
No processo de substituição do comando da escola após a morte de Deolinda, a experiência acumulada por Rosemeire (somado ao próprio desejo da Madrinha) foi um fator determinante para sua escolha, como demonstram os pesquisadores Juliana Yamamoto e Ladislau Almeida em trabalho que buscou contar a história de uma das principais escolas da capital. Segundo a dupla, o papel desempenhado por Rose até aquele momento trouxe para ela: “uma noção geral de todos os processos de uma escola de samba. Logo, seria a pessoa indicada para substituir Deolinda, dando continuidade a um modelo de gestão bastante centralizador. A continuidade desse matriarcado seria marcada por seguir a missão de colocar a Lavapés na rua, ano a ano, independentemente da posição. Foi assim. Mesmo com tantas dificuldades que a escola enfrentava, a nova presidente foi, aos poucos, impondo um outro formato a agremiação”.
Com a nova administração o cenário que se desenhava no horizonte parecia ser promissor, no carnaval de 1999 a escola fica com o vice campeonato do Grupo Leste 2 do Carnaval da UESP, fazendo com que a virada do milênio representasse a tão desejada virada na trajetória da escola, e assim com o enredo “É chegada a hora… a virada é agora” a Lavapés torna-se campeã do Grupo 2 no simbólico “Carnaval dos 500 anos”.
Quando enfim a escola encontrava seu caminho um novo revés acontece, em 2003 a cessão do terreno localizado na Rua Barão de Iguape que servia de quadra para a agremiação desde meados da década de 1960 é suspensa. Passando a fazer seus ensaios na Rua Junqueira Freire e contando com o próprio apartamento como sede administrativa da escola, Rosemeire enxerga naquele momento muitas semelhanças ao período em que a avó comandava a escola. Porém se o período era de dificuldade e de obstáculos a superar, também era de abnegação e dedicação. Segundo Juliana e Ladislau: “Durante a década de 1970, quando a alvirrubra passava por uma situação financeira delicada, Deolinda Madre chegou a vender sua TV e outros móveis da casa para obter recursos para que a escola pudesse desfilar. Em paralelo, Rose fez da sua residência não só sede administrativa, mas até depósito dos instrumentos de bateria e ateliê de confecção de fantasias e adereços. Em certo ano, chegou até mesmo a bloquear o elevador do próprio prédio para a entrega dos figurinos, mesmo com a reclamação de outros moradores”.
Foi assim, em meio a diversos obstáculos que Rosemeire seguiu buscando novos caminhos para a agremiação do Glicério, sempre buscando manter a tradição do samba e a forte religiosidade vinda dos tempos de Madrinha Eunice. Com erros e acertos, alegrias e tristezas, Rose nunca deixou de colocar a agremiação na rua. Como verdadeira liderança que é, soube enfrentar, sempre com a proteção dos seus orixás as adversidades impostas, marcando presença nas diversas homenagens a Madrinha Eunice e a Lavapés. Mesmo enfrentando dificuldades de mobilidade Rosemeire segue defendendo a memória e o legado de sua avó e da escola fundada por sua família.
Desde o começo do ano vem atuando de forma decisiva ao lado dos historiadores e pesquisadores Bruno Baronetti e Tiago Bosi, responsáveis pelo projeto de educação patrimonial Madrinha Eunice na busca de consolidar o processo de valorização da cultura negra na região e a retomada das rodas de samba na área que ficou conhecida como cinco esquinas; um Largo que se forma no encontro de cinco ruas com cinco esquinas. São elas: Rua do Lavapés, Rua do Glicério, Rua Sinimbu, Rua Tamandaré e Rua da Glória. A área que fora ponto de ensaio da Lavapés também ficou conhecido por ser um local onde eram realizadas cerimônias de religiões de matrizes afro brasileiras.
Nesse mês de novembro relembrar e jogar luz na trajetória de uma personagem como Rosemeire Marcondes, uma matriarca contemporânea do samba paulistano, é também homenagear as matriarcas pioneiras, como Madrinha Eunice, Dona Olímpia, Dona Sinhá e tantas outras mães, tias e avós que construíram e constroem o samba de São Paulo. No mês da consciência negra, homenagear Rosemeire é relembrar o legado e a trajetória da Lavapés e do samba feito na região do Glicério. E hoje a melhor forma de homenagear Rosemeire, Eunice e a Lavapés é fazendo uma roda de samba nas cinco esquinas, batucando para o Seu Veludo e fazendo a baiana girar com o verdadeiro fundamento, axé e a força que pode ser sentida apenas nos genuínos celeiros de bamba. Como disse Madrinha Eunice: “Lavapés teve começo, mas nunca terá fim”.
*Daniel Costa é historiador, pesquisador, compositor e integrante do G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga.
Para saber mais:
Bianca Santana (org.). Vozes insurgentes de mulheres negras. Do século XVIII à primeira década do século XXI. Disponível em: https://rosalux.org.br/wp-content/uploads/2019/08/web_Vozes_Insurgentes-1.pdf
Coletivo Narrativas Negras (org.). Narrativas negras. Biografias ilustradas de mulheres pretas brasileiras. Editora Voo, 2020.
Daniel Costa, Madrinha Eunice, a matriarca do samba paulista. Disponível em: https://jornalggn.com.br/memoria/a-matriarca-do-samba-paulista/
Ellen da Silva Nascimento. Não se nasce mulher negra, torna-se: resistindo a perspectiva de gênero. Disponível em: https://rd.uffs.edu.br/handle/prefix/3176
Juliana Yamamoto e Ladislau Almeida, Lavapés teve começo mas não terá fim. In: Matriarcas do Samba paulista. Selo Carnavalize, 2023.
Lígia Fernandes de Araújo, A escola de samba Lavapés: um patrimônio no Glicério. Disponível em: http://celacc.eca.usp.br/en/celacc-tcc/450/detalhe
Silvio Almeida. Racismo estrutural. Editora Jandaíra,2020.