Rota do Whisky – O inebriante caminho da Escócia

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É lá em cima, no alto do Reino Unido, que se produz o melhor whisky do mundo. Você também vai se sentir nas nuvens ao rodar por essas estradas repletas de atrações — e de destilarias

POR WALTERSON SARDENBERG Sº, compartilhado de Textos do Berg




Desista. O melhor emprego do mundo não existe. Se você alimenta a esperança de trabalhar como experimentador de whisky nas terras altas da Escócia, as Highlands, lamentamos informar, terá de esquecer. O titular dessa função, embora muito bem remunerado, não toma um mísero trago durante o expediente. Para avaliar a qualidade do néctar dourado, ele utiliza só o olfato. Daí o nome do ofício: chief noser ou “cheirador principal”, se traduzir não ofende.

Brincam os escoceses: melhor ocupação têm os anjos que pairam por aqui. Sim, porque, para deleite etílico dos querubins, 4% da produção de whisky sobem até eles. Ou seja, evaporam, já no primeiro ano de descanso nos tonéis. Não é pouco. A Escócia conta com 98 destilarias. Elas produzem 30 litros de scotch por segundo, de 1.500 marcas. Sorte dos arcanjos. Bem-aventurados, também, aqueles que, protegidos por eles, podem desfrutar um roteiro pelas destilarias escocesas.

O escritor Paulo Mendes Campos, contumaz apreciador de um bom scotch — tanto que casou-se com uma britânica — dizia que é preciso escolher bem nosso bar, pois tão desagradável quanto tomar um bonde errado é tomar um bar errado. Também as rotas e as rodas etílicas escocesas requerem seleção. Há destilarias espalhadas por todo o país. Até mesmo nas Lowlands, as terras baixas do sul, sem contar algumas das 787 ilhas. Por reconhecer a abundância da oferta, os chiefs nosers e outros experts que sabem onde têm o nariz indicam: ao escolher o roteiro, faça a opção preferencial pelo Speyside, o vale do Rio Spey.

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Por que o imperativo? Bem, no Speyside as Highlands são mais Highlands. Aqui, os rios Spey e Dee serpenteiam pelo nordeste da Escócia, na região mais propícia à produção daquele destilado que Vinicius de Moraes, outro tenaz apreciador, definia como “o melhor amigo do homem, o cão engarrafado”. É bem verdade que as terras altas não são tão altas assim. Seu ponto culminante, o monte Benevis, ergue-se até 1.344 metros. Seja como for, tudo nesta região conspira para que se elabore a excelência in vitro.

A temperatura dos armazéns, por exemplo. Ela oscila entre 5 graus e 5 graus negativos. Perfeita. Sublime. A água dos rios e fontes, por seu turno, revela-se tão pura que nos pubs pede-se “a jug of water” — sim, um prosaico jarro de água de torneira — com a consciência também imaculada. É fácil supor que a Minalba e a Perrier iriam à falência por aqui. Quem precisa de água engarrafada? A região revela-se ideal, também, para o cultivo da cevada, aquela que, mais tarde e mais seca, resultará no malte a ser processado nas destilarias.

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Nesta viagem pela região dos rios Spey e Dee, seus olhos descansarão nos intermináveis campos de cereais. Verão também as heathers, a vegetação rasteira que expõe flores vermelhas e azuis ao vento gelado, e os montes de feno enrolados como novelos gigantes, cenário surrealista perfeito para alguma capa do Pink Floyd desenhada pela Hipgnosis. Em meio aos descampados, vão surgindo, aqui e ali, as florestas de pinho e as ovelhas — há mais ovelhas do que gente na Escócia. E, então, de súbito, ao longo do caminho, despontará um castelo. E mais um. E mais outro.

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Esta Rota do Whisky, você já percebeu, não se limita às destilarias. Também inclui adoráveis paisagens e cidades minúsculas, além de hoteizinhos acolhedores. Afinal, nem só de whisky vive o homem – ele também precisa de copo, gelo e, já que você está oferecendo, até que um tira-gosto não vai mal.

A primeira dose da viagem recomenda-se bebericar em Aberdeen. É a cidade mais importante das Highlands e a terceira do país. Só perde para Glasgow e Edimburgo. Aberdeen desmente um velho axioma, aquele que diz “o que vem de baixo não me atinge”. Sua maior riqueza vem de baixo. A começar pelo granito, que, exposto em quase todas suas construções, lhe garante identidade. De baixo vêm também os peixes, a água generosa e, em especial, o petróleo, descoberto com fartura em 1972. Mas não adianta perguntar por que a gasolina custa mais caro nesta região petrolífera do que no sul do país, que é carente de combustíveis orgânicos. Como se sabe, a Escócia é rica também em mistérios.

Castelos e mais castelos

Outro deles: por que tantos castelos? A maior parte tem origem defensiva. Foram erguidos como fortificação pelos descendentes dos celtas, vindos da Irlanda e sempre em rixa com os vizinhos ingleses. A rigor, a refrega só terminou em 1603, quando os dois tronos foram unificados por James IV da Escócia (chamado de James I na Inglaterra). Terminou? Em termos. Nem mesmo um Parlamento próprio, concedido aos escoceses em 1997, dirimiu o ímpeto separatista dos nacionalistas, que, se não são tantos, revelam-se tão empedernidos quanto as paredes de Aberdeen — e contavam com o apoio entusiasmado do ator Sean Connery. Os escoceses são assim, teimosos (o que os ingleses às vezes confundem com indisciplina), sinceros (os ingleses em algumas oportunidades tomam por rudeza) e orgulhosos (os ingleses entendem por ingratidão).

Mas você não tem nada com isso. Quer apenas visitar os castelos das Highlands, antes da próxima dose. Pois saiba que há três deles perto de Aberdeen: o Drum Castle, o Balmoral e o Crathes.

O primeiro tem mais história. Erguido no século 13, foi presenteado por Robert Bruce — o herói que lutou pela libertação da Escócia da Inglaterra no século seguinte — a um bravo auxiliar. Mas o segundo atrai mais visitantes: comprado pela rainha Vitória no século 19, tornou-se casa de campo da família. Vale lembrar que, desde 2003, a visita aos castelos está bem mais vigiada. Naquele ano, três gatunos disfarçados de turistas foram ao Castelo do duque de Buccleuch e surrupiaram uma Madonna pintada por Da Vinci em 1501. Teriam os seguranças exagerado no scotch? É improvável. Só os anjos bebem em serviço nas Highlands.

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Saindo de Aberdeen pela rodovia A-90, não demora e você começará a ver placas com um símbolo estranho: um pagode. Nada a ver com o nosso Zeca. No caso, pagode é aquela construção oriental em torre com os telhados recurvados para cima. Esse símbolo, nas Highlands, quando estampado nas placas das estradas, indica uma destilaria. Acontece que as áreas de secagem do malte são erguidas nessa arquitetura, que favorece o escape da fumaça. Você verá com mais frequência essas placas a 60 quilômetros de Aberdeen. Prepare-se. Você chegou a Dufftown. Cheers!

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Embora minúscula, Dufftown orgulha-se de ser, proporcionalmente, a cidade que mais arrecada impostos na Escócia. Graças à produção do whisky, of course. Um folheto ufanista distribuído aos visitantes proclama: “Roma foi construída sobre sete colinas, Dufftown sobre sete destilarias”. Os romanos decerto irão resmungar que o cotejo remete a exageros etílicos. Ainda assim, Dufftown é, de fato, muito importante nas Highlands. Ficam aqui destilarias celebradas como a Balvenie, a Glendullan e a Glenfiddich, que produzem alguns dos mais conhecidos single malts da Escócia. 

O ritual das destilarias

Agora é preciso abrir um parêntese — e, quem sabe, uma garrafa — para uma explicação de ordem técnica. A região do Speyside, em geral, produz o whisky single malt, ou seja, aquele que concentra o resultado de uma única destilação do malte. No Brasil, costuma-se preferir outro tipo de whisky, o chamado blended, que é resultado da mistura de, no mínimo, dois single malts. Em geral, mais. Melhor recorrer a um exemplo. Pois bem, a família Grant tem, há quase um século e meio, uma destilaria nas Highlands para fabricar o single malt Glenfiddich. Parte da produção segue para os consumidores. Outra fração é enviada ao sul de Glasgow, onde os descendentes de William Grant mantêm outra destilaria. É nessa segunda fábrica que a família mistura o Glenfiddich a diversos outros single malts, criando o blended da marca Grant’s que, a propósito, tem um sabor mais adocicado por ser envelhecido em tonéis que antes continham jerez. Agora fechemos o parêntese — deixando, se lhe for do agrado, a garrafa aberta.

Visitar uma destilaria nas Highlands é um ritual. Pagam-se cerca de 5 libras, em geral, para ter acesso a ele. Em seguida, um guia treinadíssimo, e que, em geral, fala também o espanhol, leva você pelas principais dependências da destilaria, explicando tintim por tintim. Por fim, o visitante é encaminhado a um amplo salão para degustar uma dose do “cão engarrafado”. Uma ressalva: o motorista do grupo recebe sua provisão numa garrafinha à parte para posterior apreciação, pois o álcool combina ainda menos com a direção quando ela está no lugar do porta-luvas.

Nesse mesmo salão, há uma variadíssima loja, onde, além da produção normal, estão à venda preciosidades que você jamais verá nas importadoras. Na casa Glenfiddich, encontram-se garrafas de uma safra de 65 anos. Preço: 10 mil libras, o equivalente a 48 mil reais. Já na Glenfarclas, você topa com um single com 60% de álcool e até com potes de mostarda curtida em whisky. Há de tudo. Inclusive descobertas curiosas.

Você sabia que o principal single malt contido no Johnnie Walker vem de uma destilaria, a Cardhu, comandada por uma mulher? Esse blended, portanto, bem poderia se chamar Jenny Walker.

Tanta pompa, variedade e preços altos podem fazer supor que o whisky teve origem nobre. Tolice. A história é outra. Alguns pesquisadores acreditam que a arte de destilar foi trazida pelos monges cristãos. Outros sustentam que os camponeses descobriram por eles mesmos como produzir licores a partir do excedente da cevada. A favor dessa hipótese, há o fato de que o whisky, a rigor, exige apenas quatro ingredientes: água, cevada, fermento e, claro, o tempo. De preferência, descansando nos melhores barris de carvalho francês.

A mais antiga referência que se conhece é um documento de 1494, informando que um certo frei John Cor comprou malte para fazer aquavitae. Na época, o idioma gaélico, de origem celta, ainda tinha uso corrente e, nele, aquavitae se escreve uisge beatha. Eis aí a arcaica origem da melíflua palavra whisky. Hoje, o gaélico é falado por somente 70 mil dos 5,4 milhões de moradores da Escócia. Menos de 2% da população. Já o whisky tornou-se a imagem mais nobre do país. O tempo faz milagres não só com o malte.

A bem da verdade, a aristocracia só tomou os primeiros tragos de whisky devido a um acontecimento fortuito. No século 18, uma praga dizimou os vinhedos da região de Cognac, na França. Resultado: não havia mais conhaque à mesa da nobreza. Como alternativa, alguém se lembrou do whisky. Não é que pegou? Mas somente na primeira metade do século 19 a bebida ganharia maior impulso. Primeiro, com a legalização das destilarias. Depois, com o eficaz alambique inventado por Aeneas Coffey, que aumentou e barateou a produção. Ainda hoje, há esnobes que preferem o conhaque. Pode ser. Mas o bom whisky proporciona uma gama maior de sabores.

Não tivesse Coffey, portanto, bolado o moderno alambique e você não estaria nesta rota. Bem, não tivessem outros escoceses inventado a pavimentação (um brinde a Mr. McAdam!) e os pneus (outro brinde a Mr. Dunlop!) e você também não estaria rodando por aqui. Brindemos, pois, à Escócia. A comemoração, aliás, pode ser feita mais adiante, em Aberlour, na Cardhu de Ms. Jenny Walker ou na destilaria que leva o nome da cidade. Bem, talvez não seja o caso. Ela fica diante de um cemitério. Melhor deixar para brindar na graciosa cidadezinha de Pitlochry — de apenas 5 mil habitantes — que tem um acachapante castelo e duas destilarias.

Pitlochry

A Blair Athol, em Pitlochry, fabrica o principal single malt do Bell’s. Mas sua vizinha Edradour, que existe há 150 anos, é mais intrigante. Ela se apresenta como a menor destilaria da Escócia. A Edradour produz 90 mil litros ao ano, o bastante para ser o principal single do blended House of Lords, mas quase nada perto dos 3 milhões que uma destilaria de porte sói fabricar.

Você vai se divertir num tour por essa fábrica. Os anfitriões são polidos senhores usando o kilt, aquela saia xadrez. Um deles, Mr. Malcolm, confirma: reza a tradição não vestir nada por baixo desse traje. Bem, há uma boate chamada Kilt em São Paulo, onde também não se veste nada por baixo. Nem por cima.

O escocês é curioso. Embora venere Billy Connolly, o mais boca-suja dos comediantes, ele aprendeu a fazer dinheiro com o estereótipo de um cortês senhor de saias. Até admite agora vestir o kilt para fazer propaganda de whisky na TV (um brinde ao escocês John Lodge que inventou a televisão!), embora seja só um remoto traje dos ancestrais. Também apresenta ao visitante o haggis, um assado de carneiro, como o verdadeiro prato nacional – ainda que não frequente sua própria mesa. Business is business. Depois de alguma resistência, ele resolveu não só vender miniaturas dos tartans – o tradicional tecido xadrez, com um desenho original para cada clã – como até mesmo abrir aos turistas seus castelos de difícil manutenção. Mas, lembre-se: depois do roubo da Madonna de Da Vinci, em diversos casos é preciso ligar antes (um brinde ao escocês Graham Bell, que inventou o telefone!) para agendar a visita.

Castelos, aliás, são o que haverá de melhor no último trecho desse roteiro. A começar pelo Scone Palace, em Perth, a primeira capital da Escócia. É nesse palácio, pertencente ao duque de Mansfield e precedido de faustosos jardins circulares, que se coroavam os reis escoceses. Mas a mais espetacular construção do passeio, com certeza, é o Castelo de Edimburgo, cidade não menos espetacular, que abriga 10% dos moradores da Escócia.

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Tão logo cruzar a ponte sobre o rio Forth, que delimita o início da metrópole, você já começará a admirar este lugar requintado, com impecáveis prédios centenários. Até mesmo a tardia arquitetura gótica, ou melhor, neogótica do século 19 impressiona, em sua metafísica busca de pureza do espírito. O Castelo de Edimburgo, no entanto, a tudo supera.

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Ele domina o centro da cidade desde o século 12, quando começou a ser erguido. Aqui, moraram os reis da Escócia até a unificação do trono britânico. E aqui, também, está guardada a Pedra do Destino, relíquia dos primórdios do reino. Depois da visita, a sugestão é descer a rua em frente, a histórica Royal Mile, para bebericar a última, perdão, a penúltima dose no bar do Scotch Whisky Heritage Center.

São 278 marcas diferentes à escolha, para brindar a uma grande viagem. Como? Já foram brindes demais? Talvez. Mas quem sabe sirva de aperitivo uma das máximas de Millôr Fernandes: “O whisky, tomado com moderação, não oferece nenhum perigo, nem mesmo em grandes quantidades”.

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