Mais uma coluna de “A César o que é de Cícero” que vai para as ruas. Ou melhor, nos leva à rua da pré e adolescência do hoje doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. César nos situa no seu mapa sentimental onde está a Araújo Leitão. Rua que é uma artéria do seu coração juvenil. Afinal, quem de nós não traz uma rua, ou várias, no coração?
“Para Danilo Bragrança, filósofo, livreiro e amigo.
Cada um renasce onde pode, meu chapa. Nasci em Aracaju, Sergipe, fui me acariocando.
Eu, que fui tirado à força de Vila Isabel, renasci nas bandas do Engenho Novo, mais especificamente na rua Araújo Leitão, 513, endereço do famoso prédio de apartamentos Via Veneto.
Hoje o prédio está mais parecido com um presídio, cheio de grades, cadeados, sistemas de segurança – incluindo aí provavelmente uma linha direta com o Batman.
Eu sei que esta onda de assalto está um horror, sei mesmo. Mas que tem síndico com vocação para diretor de unidade prisional, isso tem. O cabra deve chegar ao apartamento, botar uniforme da PRF e se regozijar, pois afinal de contas está preso, presíssimo às algemas do seu domicílio.
Ainda vai sair de casa de tornozeleira eletrônica, como qualquer cidadão de bem. Essas mentalidades de condomínio, sinceramente, me dão nos nervos.
Eu ainda dou uma passada pela Araújo Leitão, em dias de visita à minha mãe e a meu irmão. Da varanda do velho apê, vejo o complexo de piscinas do Vivendas do Parque e fico a cismar em busca de beleza.
Voyuer Voyager, parece até nome de prédio chique.
Olho para a autoestrada Grajaú-Jacarepaguá, me lembro do Frescão da Viação Redentor que passava por ali. Eu ainda sei reconhecer os tiros que ouço. Memória, memória. É de fuzil, é de pistola, e de três-oitão.
O poupoupou não poupa ninguém. Dorme com um barulho desses. E as balas quando voavam, mortais maribondos noite afora.
Eu sei, são lembranças terríveis. Porque houve guerra pesada, não se enganem. E essa merda faz parte de mim.
Tudo isso é um pouco da herança da Araújo Leitão, pérola do Complexo do Lins.
Meu pai pegou o 232 a vida inteira. Se reencarnação houver, ele embarca em um 232 e vai até São Cristóvão pegar o ônibus para Ipanema.
Os tempos nunca foram fáceis para quem mora na região, mas não exageremos em segurança. Dá na vista e, decisivo, nos afasta de um aspecto que torna ou que tornava especial a cidade do Rio de Janeiro: a sociabilidade do carioca, que agora ficou mais restrita do que conversa dentro de elevador. Com quem você vai conversar? A gente tem que olhar no olho do outro. Enfim, enfim.
E aí, quando encontro gente como o Danilo, que mora ou que morou na rua, eu fico feliz como quem abraça um companheiro de armas, um veterano, um sobrevivente.
Eu cheguei à rua Araújo Leitão, aos doze, treze anos, na semana em que uma parte do estacionamento do Vivendas do Parque caiu devido a fortes chuvas. Chovia forte naquela época, as tais das águas de março. Acho que uma pessoa morreu. Foi no estacionamento e caiu-lhe um pedaço de concreto por sobre a cabeça. Uma vítima mortal; muitos sobreviventes.
E ainda tem o Favelão, onde mora Ricardo de Souza Lopes, vulgo Giovanni. Qualquer dia desses falo dele.
Faz quase vinte e cinco anos que deixei a Araújo Leitão. Fui me mudando e mudando, conforme as marés dos amores. Mas não transferi meu título de eleitor. Continuo a votar no Colégio Pedro II, unidade Engenho Novo, como manda o figurino.
De vez em quando eu topo com umas cabeças brancas, umas moças de rugas, essas coisas. Algumas pessoas não me reconhecem mais. E eu passo por elas como imagino que Carlos Drummond de Andrade passasse por suas memórias.
Foi ali na Araújo Leitão que conheci o amor, seus sabores e dissabores, os vícios, as drogas, os livros e uma modalidade de esporte bretão, o futebol de playground. As pilastras eram um pouco mais altas que um Odvan, que um Junior Baiano, era isso, amizade. Quem gosta de futebol, joga do jeito que dá.
Quando comecei a escrever este texto, eu pensei em uma musa, a dona do pedaço. E a escolhi dentro de um critério absolutamente pessoal. Eu escolhi uma moça a quem nunca amei, nem platonicamente. Que burrice a minha.
Bem, ela se chama Karine (eu acho que este é o nome dela) e era de origem nipônica. Ela morava no prédio ao lado, o indefectível e já citado Vivendas do Parque, de quem eu invejava a piscina.
Com seus três blocos, o Vivendas era um prédio cheio de meninas bonitas (Verônica, Maiara, Cristiane, Sauyri, Miriam, Betânia, a irmã do Playboy maluco), mas Karine era mais que bonita: tinha vocação para musa sem o menor esforço. Foi preciso perdê-la para entender um pouco da natureza do amor.
Não sei direito como explicar a beleza da Karine. Era algo realmente fora dos padrões ocidentais? Sim. Tinha um sorriso, uma pele de pêssego, era feito a flor da cerejeira. Uma simpatia em pessoa. Eu gostaria muito de voltar ao tempo e dizer a ela umas palavrinhas ainda mais bonitas que essas, isto é, tão bonitas quanto ela.
E tinha Escola de Samba, meu nobre. Foi na Quadra da Unidos de Cabuçu, escola de samba do coração do porteiro Jessé, que testemunhei a troca de olhares entre um rapaz branco e uma menina negra, digna do poema “A uma passante”, de Charles Baudeilaire.
A gente subiu o morro para ver e ouvir o samba, acho que o Roney, amigão da gente, estava operando o som na ocasião. A cena dos dois jovens tinha ritmo, tinha tudo. Talvez aquela moça, belíssima, fosse a Karine lá do morro e o morro já fosse Araújo Leitão. E eu pagando de voyeur voyager.”
Foto da capa da postagem: o Edifício Via Venetto, onde morou o Cícero César, extraída de uma propaganda de imobiliária
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.