Saída do Brasil do Pacto Para Migração prejudica brasileiros no exterior

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Por , publicado em Jornal GGN – 

“Na diplomacia existe o princípio da reciprocidade. A maneira como tratamos os estrangeiros que chegam aqui é a maneira que tratam os brasileiros que estão lá fora”

Jornal GGN – Dizer que o Pacto Global para Migração fere a soberania de um País é “de um apelo linguístico muito rasteiro”, além de ser “populista” e “raso”. O discurso até serve para agradar eleitores do presidente de extrema-direta, Jair Bolsonaro, que identificam-se genuinamente com seu nacionalismo exarcebado. Mas, na contramão das relações diplomáticas, a decisão carrega o ônus de “fragilizar” a situação de milhões de brasileiros que vivem no exterior.




Esta é a opinião da jornalista, mestre em Comunicação e pós-doutoranda Cilene Victor da Silva, que cobriu a assinatura do Pacto, no Marrocos, no final de 2018. Ela concedeu entrevista exclusiva ao GGN, nesta quarta (9), para comentar a retirada do Brasil do Pacto.

Nas redes sociais, além de copiar a tese dos Estados Unidos, de que o Pacto fere a soberania dos Estados, Bolsonaro também disse que não é qualquer um que pode atravassar nossas fronteiras e quem o fizer, deve sujeitar-se à nossa cultura e “cantar nosso hino”.

Para Cilene, Bolsonaro usa a incompetência do governo para lidar com a crise envolvendo a entrada de venezuelanos pelo Norte do País para levar a opinião pública a acreditar que temos um problema com imigrantes que se equipara ao de outras Nações que também recusaram o Pacto.

A postura do presidente desafia os números, pois o Brasil tem mais cidadãos vivendo no exterior (passam dos 3 milhões, sendo que um terço está nos Estados Unidos) do que imigrantes (1 milhão).

Além disso, Cilene alerta que o discurso de Bolsonaro e de seu chanceler, Ernesto Araújo, causa confusão porque mistura a questão dos refugiados com imigrantes.

O Pacto Global, em si, não trata de refugiados (que, com status oficial concedido pelo governo brasileiro, somam apenas 5 mil atualmente) e não tem efeito vinculante, ou seja, não impõe aos países signatários regras específicas sobre como agir na questão migratória.

É de se perguntar qual é o conceito do novo governo sobre soberania nacional.

“Se o chanceler decidir retirar o Brasil de todos os pactos não vinculantes ou vinculantes que ele acha que fere a soberania nacional, o País terá de abandonar a Agenda 2030 para a sustentabilidade, o Acordo de Paris – que é vinculante e para sair, é mais moroso – e ainda o Marco de Sendai, que rege as políticas de redução de desastres.”

Cilene é mestre em Comunicação, doutora em Saúde Pública e pós-doutoranda em Planejamento e Gestão Territorial pela UFABC. Ministra aulas nas universidades Metodista e Fapcom.

Leia abaixo a entrevista completa:

***

GGN: O governo Bolsonaro retirou o Brasil do Pacto Global para Migração com a desculpa de que o acordo afeta a nossa soberania nacional. Você concorda?

Cilene Victor: Não tenho como concordar com isso. É um discurso de apelo meramente populista, porque o acordo é não vinculante, não tem força de lei. Acordos sem força de lei servem para nortear nossas políticas públicas, neste caso voltadas para a questão migratória. Não impõem nenhuma medida sobre o País. O objetivo do Pacto era apenas humanizar o tratamento com os imigrantes.

Em 2016, eu cobri a Cúpula Mundial Humanitária na Turquia, e já se falava de um documento, de um pacto que tivesse o mesmo apelo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotado pelo Brasil.

Esse discurso do ministro [Ernesto Araújo], que na verdade corrobora a posição de Bolsonaro, de que fere a soberania nacional, serve apenas para ir ao encontro daqueles que votaram na proposta nacionalista.

GGN: A decisão tomada pelo novo governo prejudica brasileiros que vivem no exterior?

CileneSim. Nós temos cerca de 1 milhão de imigrantes no Brasil e 3 milhões de brasileiros no exterior. Então, para cada 1 imigrante que entra no País, 3 brasileiros saem. 

O Pacto traz instruções sobre o tráfico humano, tráfico de mulheres, trabalho análogo à escravidão… Os brasileiros fora do País, em busca de melhores condições de vida e mais dignidade, acabam caindo nessas armadilhas.

Saindo do Pacto o Brasil está, na verdade, virando as costas para imigrantes – dizendo ‘Bom, aqui é minha casa, eu controlo quem entra na minha casa’ – e com isso está fragilizando a situação de brasileiros que vivem fora do País, em condições que demandam atenção do Estado que não o absorveu aqui. Quantos brasileiros temos fora do País, trabalhando em condições análogas à escravidão ou habitando lugares precários? 

Na diplomacia existe o princípio da reciprocidade. A maneira como tratamos os estrangeiros que chegam aqui é a maneira como tratam os brasileiros que estão lá fora. Esse espelho da reciprocidade pode até acontecer em Países que se mantiveram no Pacto, mas que vão questionar que responsabilidade eles precisam ter com brasileiros, se o País de origem deles não deu atenção ao Pacto Global.

GGN: Os Estados Unidos não entraram no Pacto alegando que os planos de Donald Trump para a migração são incompatíveis. Usaram o discurso da soberania nacional, que Bolsonaro repete aqui. Mas o Brasil tem os mesmos problemas de migração que países como Estados Unidos para emprestar essa visão mais dura sobre as fronteiras?

Cilene: Eu cobri a assinatura do Pacto, no Marrocos, em 9, 10 e 11 de dezembro de 2018. O Brasil adotou o Pacto em discurso do então ministro Aloysio Nunes. Poucas horas depois, o novo chanceler Ernesto Araújo tuitou que retiraria o Brasil sob o pretexto da ameaça à soberania, repetindo o discurso dos norte-americanos. É de um apelo linguístico muito rasteiro porque, de novo, não é um pacto que fere soberanias.

O Brasil não vive nem de longe a situação de outros Países [que desenvolvem uma política dura de migração]. Exceto pela situação que estamos vivendo hoje com a Venezuela, o Brasil, pela sua localização, não é destino de refugiados.

É importante diferenciar refugiados de imigrantes. O Brasil tem hoje, segundo o Conare [Conselho Nacional para os Refugiados, órgão ligado ao Itamaraty] e a Polícia Federal, cerca de 10,8 mil refugiados dos quais apenas metade tem o status oficial de refugiado. Temos mais de 30 mil solicitações de refúgio. É um País que historicamente tem dificuldade de lidar com esse tema, mas comparado com outros Países, nem de longe tem os mesmos problemas.

Não que a própria postura dos EUA se justifique. Hoje a Alemanha, por exemplo, tem 1 milhão de refugiados. Tudo bem, é uma política migratória que enfraqueceu Angela Merkel politicamente, mas nem de longe o Brasil pode se comparar com Países que receberam 500 mil, 1 milhão ou mais de refugiados. [A Turquia, que é impactada pelos conflitos na Síria, tem 2,5 milhões.]

GGN: Além do discurso da soberania nacional, Bolsonaro deu a entender que a questão da migração será alterada porque não é qualquer um que ‘pode entrar na nossa casa’, como se as fronteiras fossem ganhar restrições duras…

Cilene: A fronteira está aberta porque ela não pode ser fechada mesmo. O Brasil é signatário da Convenção de Genebra, de 1951, e de seus protocolos subsequentes, e não pode fechar fronteiras. Se fecha fronteiras, fere a Convenção.

A questão é que Bolsonaro fica tratando venezuelanos como refugiados, e aí gera uma grande confusão. Refugiado é aquele que deu entrada no requerimento de refúgio, e precisa ganhar o status do País para receber proteção legal. Entre as proteções está o princípio da não devolução, essa pessoa não pode ser devolvida para o País de onde saiu.

Mas acontece que a Convenção só reconhece como causa para refúgio perseguição política, violência generalizada ou guerras. Não é o caso venezuelano, que requer mais uma abertura de nossas fronteiras de forma regular.

O Brasil demorou muito para entender o que estava acontecendo em Roraima, em cidades de fronteira pequenas como Pacaraima, que mal têm estrutura para seus habitantes. Receber 5 mil, 10 mil, 30 mil venezuelanos é claro que iria impactar.

A incompetência do governo brasileiro em lidar com a questão migratória na fronteira com a Venezuela está sendo usada para justificar a saída do Brasil do Pacto. 

GGN: Chama atenção também no discurso de Bolsonaro a ideia de que quem entra no País deve se submeter à nossa cultura, cantar o nosso hino. Um discurso que parece violar o direito do imigrante a ter costumes próprios…

Cilene: Visivelmente Bolsonaro não leu o Pacto e hoje eu até duvido que o próprio chanceler tenha lido. Essa questão é uma afronta, porque estamos falando de migrações forçadas, de pessoas que se viram diante de uma ‘escolha impossível’, não tinham outra saída senão migrar. Essas pessoas estavam fugindo da fome, de perseguição política ou, no caso dos haitianos, fugiram em decorrência de um desastre ambiental e estão no Brasil com visto humanitário.

Você tentar impor seus valores e sua cultura sobre esses imigrantes não têm nada a ver com soberania, mas tem a ver com atrocidades cometidas contra aqueles que procuram nosso acolhimento. Preservar cultura e valores não anula a obrigatoriedade de respeitar as leis de um País.

Então o discurso de Bolsonaro é populista e de apelo muito raso. Não tem consistência. A fala dele sobre imigrantes foi pueril, porque você não pode comparar uma casa com um País. Um País não tem um dono. Na minha casa mando eu. No País não existe só o presidente, existe o Legislativo, o Judiciário, a sociedade civil. Não existe um chefe só.

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