Aprovada na CCJ do Senado, PEC do Plasma passa longe do centro das discussões, mas pode mudar a forma de vermos o sangue
Por Alice Maciel, Ed Wanderley, compartilhado de A Pública
O projeto que prevê mudanças na Constituição para permitir que a iniciativa privada explore o plasma humano – um componente valioso do sangue usado para produzir medicamentos voltados para o tratamento de doenças imunológicas – começou a tramitar no Senado um ano após um estudo realizado por empresas estrangeiras ter identificado que o plasma do povo brasileiro pode gerar mais lucro para a indústria farmacêutica, por ter durabilidade e rendimento maior, do que o do mercado europeu.
A Agência Pública ouviu cerca de 30 pessoas, entre políticos, técnicos, cientistas e pacientes, favoráveis e contrários à PEC, para entender por que esse tema veio à tona agora e quais os interesses por trás desta pauta.
Se a Proposta de Emenda à Constituição nº10/2022, apelidada de PEC do Plasma, virar lei, um grupo seleto de grandes players com tecnologia para fracionar o plasma no mundo estaria pronto para faturar com o negócio. Entre eles, apenas um gigante brasileiro: a Blau Farmacêutica.
Na outra ponta, em contato direto com a população, estão os bancos de sangue privados, que têm interesse em ganhar dinheiro com a venda do plasma excedente das doações de sangue. Hoje, eles têm a obrigação, prevista em lei, de repassar esse componente para a única empresa autorizada a processá-lo no país, a Hemobrás (Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia). No entanto, a estatal informou à Pública que apenas um banco de sangue particular cumpre a legislação.
E pior: essa escassa matéria-prima usada para fazer remédios que ajudam a salvar vidas e têm alto valor de mercado está indo parar em aterros sanitários, conforme admitiu o presidente da Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS), Paulo Tadeu de Almeida, em entrevista à reportagem.
A ABBS, que conta com 48 associados, fez uma campanha publicitária massiva nos meios de comunicação e junto aos senadores pela aprovação da PEC 10/2022 na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Às vésperas da votação na CCJ, entre 30 de setembro e 4 de outubro, a entidade investiu em anúncios de páginas inteiras em sobrecapas de grandes jornais do país, como Folha de S.Paulo, Valor Econômico e Correio Braziliense. Além disso, dois representantes da associação circularam nos gabinetes do Senado na tentativa de convencer parlamentares a defender a proposta, conforme apurou a Pública com fontes no Congresso. A atuação da organização junto aos senadores foi confirmada pelo presidente da ABBS.
A articulação parece ter funcionado. O parecer da relatora Daniella Ribeiro (PSD-PB) aprovado na CCJ em 4 de outubro por 15 votos contra 11, permite que a parte do sangue que não é usada em transfusões seja comercializada. A discussão segue para o plenário da Casa e, para o projeto passar, serão necessários 49 votos favoráveis.
O texto aprovado na CCJ ainda abre brecha para a coleta de sangue remunerada, ao que diz ser contrário o presidente da ABBS, que admite que tem conversado com os senadores para ajudar na redação da proposta. “A gente tem visitado vários senadores e mostrado esse nosso lado, do médico, para dizer ‘é importante ter isso, é importante ter essa matéria-prima, mas para isso a PEC tem que ser melhor escrita’”, afirmou Paulo Tadeu.
A PEC do Plasma, de autoria do senador e médico Nelsinho Trad (PSD-MS), começou a tramitar em abril de 2022 e visa mudar as regras do mercado de hemoderivados, em especial a imunoglobulina. Extraída em poucos gramas de cada doação de sangue, a substância concentra nossos anticorpos e é matéria-prima de um dos remédios mais cobiçados atualmente pela indústria farmacêutica, recomendado para tratar diversas doenças que vão de problemas de coagulação a câncer ou aids. Além da imunoglobulina, são extraídos do plasma para fazer remédios a albumina e os concentrados de fator VIII e IX da coagulação, hoje concebidos por meio de engenharia genética.
O negócio mundial de medicamentos derivados do sangue movimentou US$ 32,75 bilhões (R$ 160,5 bilhões) apenas em 2023, segundo a Fortune Business Insights, especializada em pesquisas de mercado. E o mercado tende a aumentar. A previsão é de um crescimento de 62,8% do mercado global de fragmentação do plasma em apenas uma década, até 2032. Fontes ouvidas pela Pública explicam que um dos fatores que aceleram esse processo é a multiplicação das indicações terapêuticas com imunoglobulinas no tratamento de múltiplas doenças.
Atualmente, apenas seis empresas privadas, além da estatal Hemobrás, possuem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para produzir e comercializar imunoglobulina humana (igg 5g), de acordo com o órgão: a espanhola Grifols, a italiana Kedrion, a alemã Biotest, a suíça Octapharma, a francesa LFB – Hemoderivados e Biotecnologia e a Blau Farmacêutica, a única brasileira da lista. A gigante nacional, aliás, adquiriu recentemente participação de uma fábrica de processamento de plasma nos Países Baixos, sendo a única empresa brasileira no mercado fracionador.
Uma das propostas da relatora Daniella Ribeiro que circularam entre os senadores para votação, à qual a Pública teve acesso, beneficiaria diretamente a Blau, mas a empresa negou, em nota enviada à reportagem, ter influenciado na elaboração da redação. O texto determinava que a comercialização do plasma pela iniciativa privada deveria ser feita exclusivamente “por empresa brasileira de capital nacional”, ponto também defendido pela ABBS, segundo o presidente da entidade. Mas, por falta de acordo entre os pares e pressão dos parlamentares contrários, o conteúdo foi alterado.
A senadora disse, durante a votação na CCJ, que tentou construir um projeto baseado no que é feito na Europa, nos EUA e na Ásia. “O que nós queremos é que os pacientes autoimunes, é que os pacientes queimados, traumatizados, politraumatizados tenham acesso ao que a Hemobrás não faz”, ressaltou, referindo-se ao fato de a estatal não conseguir atender o mercado interno de hemoderivados.
Assim como a relatora, o autor do texto, Nelsinho Trad, criticou, durante a mesma reunião no Senado, o fato de o Ministério da Saúde precisar importar hemoderivados. “Nós queremos fortalecer o SUS, tirar o peso das costas do SUS essa questão que ele não deu conta de fazer para atender os pacientes que precisam”, defendeu.
Parte de quem espera por imunoglobulina, escassa em todo o mundo, entende que a PEC representa uma “pressa” necessária. A presidente do coletivo de pacientes com imunodeficiências Associação Eu Luto pela Imuno Brasil, Juçaíra Giusti, por exemplo, acompanha de perto a tramitação no Congresso e participou de sessão na CCJ para pressionar pela aprovação do texto. “Não dá para esperar que a Hemobrás faça, sozinha, em dois anos, o que não fez em 20. Para quem depende de imunoglobulina, a situação é desesperadora e vai crescendo o time de pessoas que vão precisar dela todos os dias”, diz.
O governo federal, no entanto, tem sido firme no posicionamento contrário à comercialização de plasma, uma vez que isso, de acordo com o Ministério da Saúde, desestruturaria a política nacional de sangue – o que inclui múltiplos testes do material doado para garantir a segurança, da coleta à transfusão. “Hoje, a Hemobrás é muito aberta à parceria com o setor privado. Portanto, pode-se estabelecer parcerias público-privadas, mas sem que o sangue vire mercadoria e possa ser, inclusive, exportado em detrimento da saúde da nossa própria população”, afirmou, em entrevista à Agência Brasil, o secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde, Carlos Gadelha.
R$ 131 milhões por ano no lixo (literalmente)
Atualmente, mais plasma brasileiro vai parar em lixões que no fluxo de refinamento que dá origem a medicamentos. De todos os 122 bancos de sangue privados em atuação no Brasil, apenas um, regularizado recentemente, cumpre a Lei do Sangue, de 2001.
Apesar da exigência prevista no inciso segundo do artigo 14 da Lei 10.205/21, fontes do setor confirmaram que as empresas não estariam repassando cerca de 265 mil litros do excedente de plasma arrecadado em doações para que o composto seja fragmentado e transformado em medicamentos que atenderiam ao SUS.
O plasma é descartado quase em sua totalidade e vai parar em aterros sanitários, os conhecidos lixões, como admite o presidente da ABBS, Paulo Tadeu. Esse é o mesmo material que os bancos de sangue privados defendem ser passível de comercialização, caso a PEC do Plasma seja aprovada.
Isso porque o Sistema Nacional de Sangue, Componentes e Derivados (Sinasan), vinculado ao Ministério da Saúde, que tem a competência de fiscalizar os bancos de sangue públicos e privados, não estaria cumprindo o seu papel.
A obrigatoriedade foi reforçada pela Portaria 1710/20, do então ministro Eduardo Pazuello, e fala sobre a necessidade de eles terem que regularmente informar ao Sinasan o estoque de plasma de que dispõe e quanto de excedente foi enviado para a Hemobrás.
Até então, no entanto, os estabelecimentos não fazem o repasse, mas nenhuma denúncia foi feita a procuradores do Ministério Público e a questão não chegou a ser judicializada, de acordo com representantes do Ministério Público Federal em Pernambuco e em São Paulo e do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União.
Questionado sobre os motivos de nenhuma denúncia ter sido feita para buscar a regularização dos repasses, o Ministério da Saúde não respondeu à reportagem.
Os atuais 200 mil litros de plasma anuais encaminhados para transformação em medicamentos pela estatal são provenientes das coletas realizadas em hemocentros públicos. Segundo o Ministério da Saúde, eles são matéria-prima de cerca de 30% dos hemoderivados ofertados pelo SUS. Enquanto a fábrica estatal não começa a operar, o fracionamento é feito por empresa estrangeira a partir de licitação de serviços, atualmente prestados pela suíça Octapharma.
“Sem a PEC, eu jogo fora milhares de bolsas de plasma no ‘lixão’, e isso é matéria-prima para fazer remédio”, destacou Paulo Tadeu. Isso significa dizer que, todos os anos, os aterros sanitários brasileiros recebem R$ 131 milhões em plasma desperdiçado, considerando a cotação do “valor do barril” de plasma bruto a US$ 16 mil.
“Eu acho que a gente tem que dar um jeito como país para utilizar essa matéria-prima, seja na indústria pública, seja na indústria privada, seja numa parceria público-privada, só não pode jogar fora”, acrescentou o presidente da ABBS. Ele diz ainda que apenas 15% do plasma é aproveitado nas transfusões, o que significa, segundo Paulo Tadeu, que os demais 85% estão sendo descartados.
Questionado sobre o descumprimento à Lei do Sangue, o presidente da ABBS afirmou não reconhecer irregularidades e disse que a responsabilidade é da estatal. “Quem tem que recolher isso por dever de ofício é a Hemobrás. Quem tem que fazer a validação do meu serviço é a indústria, não sou eu. Eu tenho que abrir a porta e dizer ‘por favor, entrem’ […] Eu não posso enviar algo para quem não quer receber – e nem tem condições de armazenar. Não adiantaria de nada”, destacou.
De acordo com a Hemobrás, no entanto, apenas um banco de sangue particular, o Colsan, de São Paulo, se disponibilizou, este ano, em se submeter à auditoria da empresa e passar pelas adequações necessárias para fornecer ao SUS.
Para que o repasse seja feito, ABBS e Hemobrás concordam em um ponto: é necessário esclarecer as responsabilidades financeiras. A Lei do Sangue exige a entrega do plasma, mas não há dispositivos legais que indiquem o responsável pelo custeio de refrigeração, armazenamento e logística desse conteúdo. Não há previsão orçamentária do Ministério da Saúde para que essa despesa específica seja arcada pelo governo nem há lei que imponha punições aos bancos de sangue que não a assumam. O que já existe dentro do processo de gestão do sangue é uma remuneração para o processo completo de coleta, hoje bancada por hospitais privados, planos de saúde ou pelo próprio SUS, que os bancos de sangue alegam não contemplar essa etapa final de encaminhamento do plasma.
Venda do “sangue” já foi permitida no Brasil
A Lei do Sangue regulamenta o trecho da Constituição Brasileira que proíbe todo tipo de comercialização de substâncias humanas – uma conquista creditada ao sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que perdeu os irmãos Henfil e Chico Mário para a Aids. Hemofílicos, os três contraíram o vírus HIV após transfusões de sangue.
À época, havia a doação remunerada e os controles de qualidade do sangue não seguiam uma sequência rigorosa de testes após a coleta, como a que foi sendo construída ao longo dos anos seguintes à constituinte e que hoje conta com obrigatoriedade de testagem de inúmeras enfermidades, de hepatite à Aids. O próprio Betinho investiu vários anos de luta por um controle mais rigoroso no controle do sangue, atuando à frente da Associação Brasileira Interdisciplinar da Aids (Abia) – que relaciona a comercialização do sangue à própria história da doença no Brasil.
Betinho faleceu em 1997, 25 anos antes da proposta de comercialização de componentes do sangue voltar a ser discutida no Brasil, com a PEC do Plasma.
Plasma brasileiro, o melhor do mundo?
Sem saber, os brasileiros carregam um líquido valioso em suas veias. Miscigenada em um caldeirão de culturas, exposta a doenças tropicais já erradicadas em outras partes do globo e com um histórico de cobertura vacinal que já nos livrou de doenças incapacitantes, num esquema que chegou a ser modelo mundial, a população do país carrega um dos plasmas mais preciosos do planeta. Literalmente.
Primeiro, é importante tornar menos abstrato do que se trata essa riqueza. Do plasma, se extrai a chamada imunoglobulina, cobiçada pelo mercado internacional, cuja indicação para tratamentos só faz aumentar nas últimas décadas. De infecções de todos os tipos a grandes desafios médicos como aids até câncer, profissionais de todos os países têm experimentado a substância para apostar na recuperação de pacientes.
É na imunoglobulina que ficam contidos os nossos anticorpos, que são os agentes de defesa do sistema imunológico. Na prática, os médicos usam uma quantidade bem pequena (e cara) da substância para “importar” defesas para o organismo do paciente e reforçar sua capacidade de resistir a uma doença — em especial às autoimunes, em que o corpo passa a atacar as próprias células. Uma busca por apenas 5 gramas desse componente em farmácias de três estados brasileiros mostra que o medicamento é comercializado por valores que variam entre R$ 1,4 mil e R$ 3,2 mil.
A desconfiança de que o plasma brasileiro seria diferenciado esteve presente em laboratórios por vários anos, mas foi apenas em 2021 que estudos práticos feitos por uma empresa suíça comprovou seu valor. Na ocasião, se descobriu que 413 mil litros de plasma armazenados por cinco anos tinham as mesmas condições e qualidades de uma “coleta fresca” de um europeu comum. Um ano depois da pesquisa, a PEC do Plasma foi proposta no Congresso Nacional.
Além disso, a pesquisa identificou que o plasma coletado no Brasil rende 4,8 g de imunoglobulina por litro, enquanto os contratos no mercado europeu apresentam um rendimento de 3,5 g – em casos “excelentes”, esse número pode chegar a 4,5 g. Ou seja, o rendimento do plasma brasileiro é 37% acima da média-padrão mundial. Cada grama de imunoglobulina extraída custa cerca de 40 euros (cerca de R$ 215 na cotação atual) e leva nada menos de oito meses entre coleta, transporte, fragmentação, processamento, refino e envase em forma de medicamentos.
A reportagem confirmou os dados sobre o rendimento do plasma brasileiro por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) e com o presidente da Hemobrás, Antonio Edson Lucena. Ele reforçou ainda que nosso sangue “é o melhor” do mercado e que no teste feito pela empresa estrangeira, “nós tiramos nota máxima em segurança e qualidade”. “A gente consegue esse rendimento porque estamos num país tropical. Aqui tem dengue, chikungunya, tem zika, tem tudo que nos gera anticorpos. Nós [brasileiros] somos uma fábrica ambulante de anticorpos”, destacou.
A pesquisa foi realizada pela farmacêutica Octapharma, contratada pelo Ministério da Saúde para fracionar o plasma que ficou estocado na Hemobrás de 2016 a 2020. Isso porque, em 2017, durante o governo do ex-presidente Michel Temer, o então Ministro da Saúde Ricardo Barros (PP) publicou uma portaria retirando da estatal a gestão do processamento do componente. Ou seja, o material coletado até então ficou sem utilização ao longo desses anos na indústria e nos hemocentros.
A norma foi revogada apenas na gestão de Eduardo Pazuello, em 2020, durante a pandemia da Covid-19, após uma representação assinada pelo procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU) Marinus Marsico indicar possível omissão da pasta e responsabilidade na “inutilização de potencialmente milhões de bolsas de plasma sanguíneo”. Em seu relatório, o MPTCU apontou o risco de desperdício de aproximadamente 600 mil litros de plasma.
Esse dado, inclusive, foi usado pelo senador Nelsinho Trad na justificativa da PEC 10/2022 de forma incorreta, uma vez que o desperdício não se efetivou. Assim que a Hemobrás retomou a gestão do plasma, abriu uma licitação para o fracionamento dos 413 mil litros do material armazenado que não havia sido embalado para descarte pela empresa, dando origem à análise realizada pela Octapharma, que concluiu sobre o alto rendimento do plasma brasileiro.
“Cabe salientar que os resultados dos testes do plasma armazenados na Hemobrás foram comparáveis às unidades de plasma austríaco recém coletadas (país onde se realizaram os testes)”, informou a estatal por meio da LAI.
Após os resultados dos testes permitirem o reaproveitamento do material, o não desperdício foi considerado no relatório da auditoria do Tribunal de Contas da União, que embasou a decisão do plenário do órgão, em 4 de outubro deste ano, pelo arquivamento do processo. “Não se verifica nos autos elementos indicativos de omissão ou prejuízo financeiro, com relação aos estoques da Hemobrás aqui tratados, que possa ser atribuída ao Ministério da Saúde”, diz o documento.
“Me surpreende o momento que essa proposta [PEC 10/2022] surge. Por que está surgindo agora? Justamente no momento em que se descobre que o plasma brasileiro é o plasma mais valioso do mundo e em que as fábricas da Hemobrás realmente agora estão funcionando”, advertiu o procurador Marinus Marsico em entrevista à Pública.
Uma relatoria e duas grandes controvérsias da PEC do Plasma
Os dois pontos mais controversos da PEC do Plasma – a possibilidade de doação remunerada e a exclusividade de exploração do mercado do plasma por uma empresa de capital nacional – foram propostos pela relatora do projeto, a senadora Daniella Ribeiro. As duas questões foram retiradas do texto aprovado na CCJ do Senado, mas ainda devem ser alvo de nova rodada de discussão quando a pauta for posta em votação no plenário da casa, que ainda não tem data definida.
Pedagoga, Daniella é claramente a favor da mudança na Constituição e usou estatísticas questionáveis para reforçar o desperdício do plasma no país. “Há medicamentos que precisam desse plasma, e 85% são jogados fora, no lixo. Na realidade, lamentavelmente, apenas cerca de 15% são utilizados – e todos sabem disso – por parte da Hemobrás. O que a gente trata na PEC é a importância de mudar esse parâmetro, de quebrar esse monopólio”, disse, em reunião da CCJ, na segunda quinzena de outubro. A parte que nem “todos sabem” é que esse desperdício é registrado, em sua maioria, em bancos de sangue privados, cujo plasma não é disponibilizado para a Hemobrás.
A senadora é sobrinha de Marisa Peixoto Veloso Borges, ex-gerente da Hemobrás, com sede em Pernambuco, conforme documento judicial sobre partilha familiar, obtido pela Pública. A tia de Daniella foi condenada em caso de delito licitatório, descoberto em 2014, quanto a processos de aquisição que superfaturaram as despesas públicas da estatal em mais de R$ 5 milhões e foi presa à época. A Operação Pulso, do Ministério Público Federal, ficou nacionalmente conhecida pelo caso de chuva de dinheiro do alto das Torres Gêmeas do Recife após a chegada da Polícia Federal à residência do então presidente da estatal Rômulo Maciel Filho, também condenado pelo crime à época.
A primeira das propostas controversas de Daniella à PEC do Plasma foi a da doação remunerada. A camada não óbvia nesse ponto, e que os próprios empresários da área admitiram durante entrevistas à Pública ser algo “mais para o futuro”, após o amadurecimento do setor, se refere à plasmaférese.
Na doação de sangue tradicional, uma bolsa só pode ser extraída a cada mínimo de três meses, em um processo que dura 20 minutos – são extraídas hemácias, plaquetas e plasma. Já na doação por aférese, apenas o plasma é extraído, em um volume até três vezes maior, em processo que dura cerca de duas horas. Em locais como os EUA, é possível repetir doações em quatro dias, o que tornaria o formato mais lucrativo para o setor de hemoderivados. O incentivo financeiro, nesse caso, poderia ser um diferencial para atrair interessados.
A segunda proposta, de valorizar a indústria nacional, por sua vez, faria com que a mudança na Constituição, inicialmente, beneficiasse apenas uma única empresa brasileira, a Blau Farmacêutica, em franca expansão de negócios para fragmentar o plasma, desde o início de 2023. A companhia é a única nacional que detém registro da Anvisa, além da Hemobrás, para produzir e comercializar hemoderivados no país.
Por meio de nota, a Blau informou desconhecer essa proposta da relatora, “razão pela qual se abstém de comentários a esse respeito”, destacou. “A Blau ressalta que nunca se reuniu, por seus dirigentes ou representantes, com qualquer membro do Poder Legislativo para discutir a chamada ‘PEC do Plasma’ e seus desdobramentos”, acrescentou.
Daniella foi designada para ser a relatora da PEC do Plasma pelo presidente da CCJ, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), após seu colega Rogério Carvalho (PT-SE) abrir mão. Ele disse que devolveu a relatoria para evitar constrangimentos, uma vez que o parlamentar, que é médico, construiu uma carreira no SUS. “Eu não tinha condições sequer de relatar uma história dessa porque o meu parecer, de cara, já seria um parecer contrário”, ressaltou.
Daniella Ribeiro, por sua vez, defende que a aprovação da PEC seria uma solução para a escassez de plasma. Na avaliação dela, a participação da iniciativa privada no negócio iria ampliar a oferta dos hemoderivados com preços mais baixos. “Quando a gente fala em abrir para a iniciativa privada, para auxiliar, a gente está falando em baratear medicamentos para o SUS, porque na hora que entra a iniciativa privada é óbvio que a concorrência vai baixar o medicamento e o SUS vai comprar mais barato”, justificou durante reunião na CCJ, usando argumento semelhante ao da nota publicada pela ABBS dias antes.
A Pública tentou ouvir a senadora para saber se ela julga haver conflito de interesses dado o histórico familiar em relação à Hemobrás, bem como se houve influência dos representantes de bancos de sangue privados e da indústria farmacêutica na elaboração da proposta. O contato foi feito, por diversas vezes, presencialmente, por meio de sua assessoria de imprensa, por escrito e por telefone, ao longo de 29 dias, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto em caso de manifestação.
Blau, PEC do plasma e o mercado de milhões
A Blau Farmacêutica vale hoje R$ 2,9 bilhões na Bolsa de Valores de São Paulo e tem 1.700 funcionários nos sete países em que atua: Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Estados Unidos, Peru e Uruguai. A empresa investiu R$ 316 milhões este ano e acumula lucro de R$ 99 milhões, segundo divulgação de resultados da companhia até o terceiro trimestre deste ano.
Além disso, ela investiu em 2023 50 milhões de euros em participação na Prothya, com sede nos Países Baixos, que atua na coleta, fracionamento e produção de hemoderivados, “sendo a primeira empresa brasileira a fazer parte deste seleto grupo mundial de empresas fracionadoras e produtoras de medicamentos derivados de plasma humano”, conforme divulgou em seu site.
Em nota enviada à Pública, a farmacêutica informou que não tem planos “nem interesse em comercializar, no Brasil, seus hemoderivados fabricados na Prothya” e elencou “duas razões principais”: “os baixos preços autorizados pelo órgão regulador responsável no país para este tipo de medicamento e a concorrência desleal deletéria, com medicamentos comercializados em larga escala no país sem que tenham registro junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)”.
No entanto, nos últimos sete anos a empresa enviou representantes para participar de discussões no Ministério da Saúde sobre o beneficiamento do plasma e este ano se reuniu ao menos duas vezes com o vice-presidente Geraldo Alckmin; a mais recente delas, em julho, para reforçar a importância de o governo federal estabelecer parcerias público-privadas com as indústrias brasileiras.
Com o negócio, a brasileira adquiriu 20% da empresa europeia Prothya, que não apenas tem plantas industriais em Bruxelas e Amsterdã, mas quatro centros de coleta na Hungria. Nos Estados Unidos, mais precisamente na Flórida, a Blau já detém quatro centros de coleta, um deles com início de operação previsto para dezembro deste ano. Outros dois pontos na região mais latina em território norte-americano estão em prospecção.
Na América Latina, a Blau detém muito mais que hemoderivados e representa gigantes internacionais — na pandemia, por exemplo, representou a Sinopharm na venda de vacinas contra a covid-19.
Preservar contas públicas ante a escassez global
Desde 2021, o governo federal importa imunoglobulina humana sem registro na Anvisa. A medida foi tomada diante da escassez do medicamento no mundo todo durante a pandemia da covid-19, quando houve queda de doações de sangue. Para se ter uma ideia, em janeiro de 2022, a Cruz Vermelha americana, que fornece parte dos hemoderivados aos centros médicos dos EUA, declarou, pela primeira vez na história, uma “crise nacional” por falta de sangue.
Para mitigar o problema causado pela crise sanitária, o governo brasileiro abriu a concorrência às empresas estrangeiras certificadas por agências reguladoras de outros países. Mas o que foi tratado à época como “excepcional” continua sendo aplicado no país, evidenciando o baixo estoque do mercado nacional.
Mais recentemente, em maio deste ano, o Ministério da Saúde fechou contrato para o fornecimento de imunoglobulina com uma empresa sem registro na Anvisa. A compra, em caráter de urgência, com a participação de fornecedores nacionais e internacionais, foi autorizada pelo TCU – “que considerou a existência de risco de desabastecimento e preços elevados (acima do valor de referência)” – e pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Isso porque, conforme justificou o governo, a gestão passada não concluiu o processo de compra do medicamento em 2022, que foi cancelado pelo TCU no início deste ano.
A aquisição de imunoglobulina sem autorização da Anvisa tem incomodado a indústria farmacêutica que atua no país e os pacientes.
“Como paciente com imunodeficiência comum variável- Hipogamaglobulinemia, senti muita dificuldade todo esse tempo em que recebi a medicação sem registro. Foram inúmeras infecções de repetição e em muitos momentos sentia como se não tivesse recebido a Imunoglobulina que tanto preciso. Sugiro uma avaliação criteriosa de qualidade nas compras a partir de agora, para que os pacientes não sofram mais com esse problema”, ressaltou Vania Miranda durante participação na audiência pública realizada em abril pelo Ministério da Saúde sobre a compra do remédio.
Na mesma ocasião, a Blau Farmacêutica, além de outras empresas do setor, também se manifestou contra a medida. “Manifestamos oposição à forma de realização da licitação, em que se contempla a possibilidade de participação de licitantes nacionais e internacionais visando a oferta de medicamento desprovido de registro sanitário na Anvisa em igualdade de condições com licitantes e interessados que venham ofertar o produto devidamente registrado na Anvisa”, destacou a Blau.
Para a Associação Brasileira de Cirurgia e Imunologia (Asbai), a importação de imunoglobulina sem registros da Anvisa “claramente poderia comprometer a qualidade e a segurança do tratamento dos pacientes que fazem uso deste imunobiológico”. O comunicado da entidade acrescenta que “infelizmente, os argumentos apresentados pelas partes que são responsáveis pelo uso dos produtos e os próprios pacientes não foram considerados”.
Segundo o Ministério da Saúde, a compra do último lote de imunoglobulina contou com a participação de empresas com registro no Brasil. “Contudo, mesmo somando a oferta de todas elas, o quantitativo era insuficiente para abastecer o SUS e evitar a falta do produto”, destacou o órgão.
Pai de um menino de 13 anos que depende de imunoglobulina, Daniel Junqueira Franco teme uma nova onda de escassez mundial pior do que a que ocorreu durante a pandemia e acredita que a PEC pode evitar o desabastecimento no Brasil. “Você vê a guerra na Ucrânia, agora em Israel. Teve guerra, usa-se imunoglobulina. E é possível que muitos mais conflitos aconteçam. Meu medo não é de onde vem a imunoglobulina, eu tenho medo é das guerras. Cada vez mais usam imunoglobulina para tratamentos. Temos que nos preparar para uma escassez mundial”, alerta.
Seu filho, Pedro Dutra Junqueira Filho, faz uso da imunoglobulina humana desde os 7 anos. Desde o início, ele é atendido em clínica particular cujo tratamento é coberto por plano de saúde. São três frascos de 5 g recebidos na veia, um processo que dura 5 horas e precisa ser feito todos os meses. O pai acompanha de perto as discussões sobre a PEC do Plasma e é categórico ao dizer: “Pro meu filho, não importa se o sangue for doado ou pago; o que não pode é não ter”.
Para o biólogo e pós-doutor em imunologia da Universidade de São Paulo (USP) Eduardo Silveira, a ótica do paciente será sempre compreensível, porque o entendimento seria de que o medicamento independeria da Hemobrás e que, quanto mais empresas envolvidas, melhor. E que a busca por imunoglobulina só tende a crescer, justamente porque vem sendo testada em inúmeras terapias, em especial após a experiência com a covid-19, quando médicos em todo o mundo usaram o recurso para combater a doença.
“Imunoglobulina é o nosso famoso anticorpo e é usada em contextos de infecções, de autoimunidade etc. Uma lógica mais ampla se apresenta hoje para um número enorme de doenças, inclusive crônicas, com terapias de anticorpos monoclonais – e essa tecnologia hoje já não é um bicho de sete cabeças –, por isso o uso se estendeu e ela vem sendo até contra alguns cânceres”, explica.
O controle de qualidade é importante para esta e as próximas gerações, especialmente considerando que os novos moldes do teste do pezinho (ampliado) são capazes de detectar, entre 2 e 26 dias após o nascimento, 48 doenças dos erros inatos do metabolismo e 85 doenças dos erros inatos da imunidade. A detecção precoce de condições que afetam a imunidade é um dos fatores de aumento significativo no consumo de imunoglobulina – por mais pacientes e ao longo de mais tempo.
Demanda nunca atendida
A doutora em odontopediatria Juçaíra Giusti, 58, há mais de dez anos depende de aplicações mensais de imunoglobulina para ter qualidade (e expectativa) de vida. A condição, uma imunodeficiência comum variável, foi descoberta em 2011, pouco depois do mesmo diagnóstico no filho, então com 18 anos, após uma série de sinusites de repetição. A condição faz o corpo ter dificuldade de produzir células defensoras do organismo e o deixa vulnerável a infecções — então, 40 g mensais de imunoglobulina “importam” defesas para seu organismo mensalmente. Poucos entendem melhor o que significa a falta do medicamento.
Ao longo de sete anos, ela lidou com desabastecimentos no SUS e com reações adversas no corpo a algumas das marcas disponibilizadas. Hoje, recebe aplicações subcutâneas via plano de saúde. Ela conta que chegou a visitar o interior da fábrica da Hemobrás em 2021, mas se decepcionou quando a inauguração foi mais uma vez adiada.
“Fiquei encantada. Saí de lá com a sensação de que tudo iria se resolver. Agora, penso como acreditar. Países mais organizados, como a Alemanha, estão correndo para sair das mãos dos EUA em produção e nós ainda não avançamos contra esse problema, que é antigo e só piorou com a pandemia”, afirma, ao defender a participação da iniciativa privada no mercado do plasma, hoje restrito à estatal.
A demanda por imunoglobulina no Brasil nunca foi atendida em sua totalidade pela Hemobrás. E, segundo os planos, também não será após a inauguração do complexo fabril da estatal em Goiana (PE), previsto para o fim de 2025. Historicamente, o Ministério da Saúde costumava encomendar a compra de 2 toneladas de imunoglobulina por ano, montante que, em 2023, dobrou.
Atualmente, a estatal recolhe o excedente de plasma dos hemocentros e encaminha para processamento e fragmentação no exterior, por meio de contrato com a Octapharma, de serviço de beneficiamento do plasma. Ou seja, a imunoglobulina disponibilizada no SUS é inteiramente importada — e cerca de 30% dela é feita, de fato, a partir do plasma brasileiro.
Inicialmente, a fábrica da Hemobrás deve começar processando 500 mil litros de plasma. A estrutura pode ser expandida para até 1 milhão nos anos seguintes. Segundo projeção do Ministério da Saúde, a totalidade da produção seria suficiente para atender 80% da necessidade na rede pública. Em outras palavras, a importação do material refinado, adotada hoje, ainda será necessária mesmo após a inauguração da fábrica.
Segundo Frederico Monteiro, um dos gestores técnicos da Hemobrás, R$ 800 milhões estão sendo investidos, via Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para a conclusão das obras e a qualificação da hemorrede. Atualmente, a expectativa da empresa no primeiro ano de funcionamento da fábrica da Hemobrás seria de 500 mil litros de plasma, que seriam atendidos pela rede já em atuação (300 mil via rede pública e 200 mil na privada) — e, no entanto, o volume praticado hoje é de 200 mil por ano, praticamente 100% dos hemocentros públicos. O custo atual para processar esse plasma seria de 225 euros por litro – aproximadamente R$ 1.200.
Conforme o presidente da Hemobrás, Antônio Edson de Souza Lucena, há a expectativa também de que a estatal faça, nos hemocentros públicos, a plasmaférese, tecnologia que possibilita a coleta exclusiva do plasma em volumes até três vezes maior que a coleta de sangue comum. “Isso é o que está interessando aos bancos de sangue privados, porque eles querem ter essas máquinas e o direito de vender o plasma”, aponta.
O custo médio da imunoglobulina adquirida pelo poder público, que é o principal hemoderivado comprado pela pasta hoje, por exemplo, é de R$ 1.400, informa Lucena. Ele diz acreditar que o valor de produção deva cair no país, uma vez que a produção local tenha início, e que isso pode ser feito assegurando a qualidade dos processos de gestão do sangue seguindo a política nacional que deu certo, após tragédias no passado.
“Nenhum país atende 100% da demanda e todos têm risco de desabastecimento. É possível haver contribuição do setor privado em caso de necessidade de complemento de nossa produção, e eu não sou contra discutirmos financiamento para o repasse dos bancos de sangue para a Hemobrás, sou até a favor dessa negociação com o Ministério [da Saúde]. Mas a PEC é uma questão de ‘agora ou nunca’. O projeto seria inviável após a fábrica inaugurar e nós suprimirmos quase toda a demanda do SUS. Viram uma oportunidade”, defende.
Em nota, a Hemobrás se posicionou contra a PEC do Plasma, argumentando, entre outros pontos, que a mudança na legislação aumentaria o custo dos medicamentos fornecidos pelo sistema público de saúde: “O plasma coletado pela hemorrede privada teria um preço dado pelo mercado internacional, que atualmente é fortemente influenciado pela falta desse insumo. Se aprovada, a proposta introduziria a necessidade de aquisição do plasma doado nos serviços privados para que pudessem ser processados pela Hemobrás e distribuídos ao SUS, encarecendo os medicamentos fornecidos ao SUS”, destacou.
PEC do Plasma e os dois lados pelo nosso sangue
A PEC do Plasma tem mobilizado, além do governo federal e o Congresso Nacional, a sociedade civil. Órgãos públicos e entidades de diversos setores se manifestaram sobre a proposta, apresentando argumentos favoráveis ou contrários.
No dia da votação da proposta na CCJ, o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT-SP), fez um discurso no plenário do Senado em que chamou a iniciativa de “vampirismo mercadológico”. “Vim fazer um apelo também aos senadores e senadoras não só como ministro, mas como um médico infectologista para que não se aprove essa PEC, que é a PEC da comercialização do sangue humano. […] É uma PEC que é um verdadeiro vampirismo mercadológico”, afirmou.
O Ministério da Saúde alerta para o risco de redução de doações de sangue, caso a matéria seja aprovada. “Qualquer mudança que afete as doações voluntárias incorre em risco de desabastecimento nas emergências hospitalares e para quem precisa de transfusões regularmente. Inclusive, o caráter voluntário das doações é recomendado pela Organização Mundial da Saúde”, destacou a pasta em nota.
A Fiocruz, que também se posicionou contra a PEC, destacou ainda que há estudos que sugerem que “a comercialização pode atrair pessoas em situações financeiras difíceis, dispostas a vender seu plasma, além de facilitar o acesso a pessoas que podem pagar, em detrimento daquelas que não têm condições”.
Para a Associação dos Servidores da Anvisa (Univisa), aumentar a coleta de plasma, remunerado ou não, não vai resolver o problema de desabastecimento de hemoderivados no Brasil. “Não há no texto da PEC nenhuma descrição sobre a implementação ou fortalecimento da atividade fabril deste plasma. Não há justificativa para se implementar a comercialização da coleta de plasma no cenário brasileiro, sem que se faça antes uma discussão sobre políticas e mecanismos de fracionamento industrial eficiente”, ressalta a organização.
O Ministério Público Federal e o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU) publicaram uma nota técnica que diz que “a alteração do texto constitucional se mostra descabida”. Isso porque, segundo eles, todos os problemas apontados para justificar a proposta já são contemplados pela legislação vigente. “[…] o que não afasta, de toda sorte o pertinente aperfeiçoamento desta, sem prejuízo da edição de novas leis ou atos normativos que melhor norteiam a coleta do plasma sanguíneo, bem como a produção dos hemoderivados no país”, observam.
O procurador do MPTCU Marinus Marsico ressaltou ainda ter receio de que, com a PEC, o plasma brasileiro passe a abastecer o mercado externo. “O que eu estou entendendo é que eles querem comprar um plasma valiosíssimo e levar para fora. Comprar as nossas matérias-primas e simplesmente processar isso, agregar valor para isso”, alertou.
Outro ponto observado pelos opositores da proposta é a possibilidade de mudança da motivação da doação, hoje feita de forma altruísta e com a vontade de ajudar a manutenção da vida, que poderia passar a envolver interesse financeiro e, com isso, comprometer a idoneidade do processo de entrevista anterior à doação, pelo risco de respostas importantes serem suprimidas pelo “dono” do sangue, visando à recompensa.
“Como esse projeto abre claramente a possibilidade da coleta de sangue remunerada, ou a coleta de plasma remunerada, nós podemos voltar ao que havia antes da Constituição de 1988, quando as pessoas recebiam alguma compensação financeira pela doação do sangue e nós tínhamos então doadores que não eram qualificados para fazer essa doação, quantidades de doações exageradas, fazendo com que o próprio doador pudesse ter a sua saúde depauperada”, ressaltou o petista Humberto Costa, ex-ministro da Saúde e um dos senadores que têm se posicionado firmemente contra a PEC.
Esse é o temor da presidente da Associação Brasileira de Pessoas com Hemofilia (Abraphem), Mariana Battazza, que é contrária à PEC do Plasma, apesar de reconhecer que “existe um problema de falta de imunoglobulina”. “Do nosso ponto de vista, nós temos uma política de sangue muito bem construída e, principalmente, com uma base muito sólida em cima de uma segurança sanitária muito grande”, ressaltou.
A entidade representa os hemofílicos, que, no entanto, já não dependem tanto da imunoglobulina, uma vez que o recurso prioritário do tratamento da condição passou a ser com recombinantes – produzidos a partir da engenharia genética e cuja fábrica, da Hemobrás, começaria a operar em dezembro deste ano. “A gente não entende que seja necessário pôr em risco a nossa política [do sangue] para resolver o problema que tem que ser resolvido [da falta de imunoglobulina]”, acrescentou Battazza. A Associação Brasileira de Transplantados (ABTO) e a Associação Brasileira Interdisciplinar da Aids (ABIA) também se posicionaram publicamente contra a proposta de mudança na constituição.
Em contraponto, a ABBS defende que a proposta “não modificará o funcionamento do SUS, garantindo que os pacientes continuem recebendo seus medicamentos gratuitamente”. Ainda segundo a organização, a proposta irá proporcionar uma ampliação de oferta para “todos os pacientes”, uma vez que “a oferta de hemoderivados se expandirá, reduzindo os custos desses medicamentos e melhorando o acesso em todo o país”.
Da mesma forma, a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai) acredita que é necessário modernizar a legislação brasileira para garantir aos pacientes o fornecimento de imunoglobulina. “As preocupações com a comercialização do plasma também são nossas e, justamente por isso, consideramos que a legislação deve ser revista, aprimorada e muito bem elaborada, de maneira que os princípios de nossa Constituição Cidadã de 1988 sejam respeitados, mas que se garanta que nossos pacientes também sejam respeitados e devidamente cuidados”, destacou a organização em comunicado.
A Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) defende que a PEC 10/2022 irá permitir uma resposta mais adequada às necessidades de tratamento dos pacientes, abrindo a possibilidade de participação privada, que, somada às iniciativas públicas já em curso, “permitirá enorme avanço ao país que poderá atingir a autossuficiência em hemoderivados, que foi proposta como objetivo de política de saúde pública pela primeira vez em 1980”.
Ao se posicionar favorável à PEC, o senador Otto Alencar, líder do PSD na Casa – mesmo partido do autor e da relatora da proposta –, justificou que a “comercialização de bolsas de sangue já existe no Brasil”. “A coleta é gratuita”, afirmou o parlamentar durante a votação da PEC.
Já o senador Dr. Hiran (PP-RR), que é médico e defensor da proposta, criticou o fato de a Hemobrás não atender à demanda de imunoglobulina do Brasil. “Isso não é um exemplo de eficiência. Isso está ferindo o princípio balizado no nosso Sistema Único de Saúde. O SUS pressupõe equidade, universalidade e integralidade. Onde está a universalidade, o acesso?”, questionou.
O autor do texto, senador Nelsinho Trad, destacou que a PEC do Plasma “busca modernizar as políticas de saúde, particularmente no processamento de plasma sanguíneo, atualmente monopolizado pelo Estado”. “A proposta visa alinhar a Constituição aos avanços tecnológicos, assegurando o acesso à saúde, incluindo o plasma como um direito social”, acrescentou.
Segundo o presidente da Hemobrás, Antônio Edson de Souza Lucena, a proposta de Trad de incluir o setor privado no processamento do plasma, contemplada na PEC, já havia sido ventilada pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, que é primo do senador, durante reunião com representantes da Hemobrás. “A primeira vez que eu ouvi falar isso foi com o ministro Mandetta. Já era uma demanda lá do início do governo Bolsonaro”, contou. O senador, no entanto, nega. “O ex-ministro Mandetta não teve qualquer influência na construção desse projeto”, informou por meio de nota. Ele também negou influência do setor privado na elaboração da proposta.
Edição: Thiago Domenici