E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, vai fundo no inusitado, contando o surgimento de uma cidade, assim de uma hora a outra. Sem spoiler. Vamos a esta crônica surreal, mais uma, de nosso Gabriel García Márquez de Nilópolis
“Há quanto tempo estou aqui? Olha, senhora, faz tempo, viu? Mais tempo do que a reportagem tem para oferecer. Vou tentar encurtar a história pra ver se cabe.
Bem, certa vez eu estava indo mais a família para o balnerário. À noite, que a gente sabia que de dia poderia ser pior. À noite todos os carros são Porche. Um pouco depois do pedágio, ali onde costumava engarrafar, o terror de todo motorista, foi o que aconteceu. Engarrafou pra valer. Ninguém sabia direito o real motivo de tanta grandeza; mas o fato é que parou tudo. Desligamos os motores e ficamos à mercê dos acontecimentos que nem personagens de conto do Cortazar. Ficamos. Ficamos. Ficamos. Dava pra ouvir os grilos.
Acabamos tendo que fazer amizade. Primeiramente com os mais próximos. Um Santana, uma Besta, um Kadett, uma Kombi, e a gente no Del Rey verde-escuro, o Abacate (todos os carros que tive tiveram apelidos, eram quase da família). Pediu-se açúcar, um tanto de gelo, remédio de mosquito. Jogou-se truco, buraco, paciência (a dois, a três, a mil). Jogou-se bola, volêi, pique-pega entre os carros. Pelo menos, ninguém morrer atropelado iria. Um gozador disse que aquilo ali tava parecendo até Paquetá, uma tranquilidade só, uma calmaria.
Não fosse o sol inclemente, seria bom deitar-se nos campos do acostamento. A patroa mantinha firme o olhar nas provisões. A gente costumava levar muita coisa de casa, o bagageiro do Abacate ia apinhado. Provisão para um mês mais dez por cento de margem de segurança. Mas engarrafamento daqueles dá fome, especialmente nas crianças que passavam o dia inteiro brincando no asfalto quente da rua.
A água era um problema, a gente dependia da solidariedade de estranhos, do escambo, do escambau. Mas foi-se levando, que o pessoal das margens da rodovia são as melhores pessoas do mundo. foi quando se fez um poço artesiano pela claridade de Deus. Que água!
Depois de não sei quantos dias, não sei quantos noites, o trânsito começou a melhorar. Foi um Deus-nos-acuda, como a senhora pode prever. Só a Besta se foi, desembestando-se, que teve gente que se habituou a viver por aqui, com muito orgulho. Gracejava-se dizendo que era mais fácil enfrentar a fila do pão por aqui do que nas cidades do balneário. Aqui literalmente a fila andava. As crianças também a essa altura do enredo já estavam crescidas, já bateram pé, já cheias de vontades.
Poção artesiano é melhor que praia. Onde já se viu uma lua dessas? Piscinão da Rita! Alguns já olhavam comprido um para os outros. Coisa estranha. Era o amor se desenfreando, deixando a infância para trás; Paciências!
Numa situação como essa ou a gente amadurece ou a gente perde o bonde da história.
A primeira Câmara Municipal de Santa Rita do Arrabalde foi ali, debaixo daquele abrigo de ônibus. O cemitério, perto daquele cruz de beira de estrada. O comércio já estava estabelecido. A cidade foi-se embrenhando, mas sempre perto das fontes d´água.
Modestamente, pode-se dizer que eu sou um pioneiro. Ainda durante o engarrafamento, atravessei a rodovia, pulando a mureta. Voltei para a cidade. Comprei mantimentos e mercadorias. Trouxe no lombo. Vendemos tudo. Voltei à cidade. Repeti o processo, pedi mais prazo, paguei em dinheiro vivo, ameacei trocas de fornecedor.
Voltei, vendi mais rápido ainda. Atendi a todas as solicitações. Beneficiei o engarrafamento até onde pude, que já ia ganhando luzes de cidade, tendo o cuidado, porém, de não beneficiá-lo demais, porque senão acabaria com meu negócio.
Acabei abrindo loja de material de construção, padaria, loja de movéis, restaurante, depósito de doces, duas pousadas com piscina de água natural, escola. Ainda vivo virei nome de praça.
É claro que a gente briga por aqui. Eu mesmo não me dou bem com o pessoal da Kombi, com quem me bico somente quando tem eleição e olhe lá. O pessoal do Santana já levou a prefeitura duas vezes, gente muito boa para os negócios. O pessoal do Santana se enrabichou pela cidade também. Demorou mas ficou.
Nos casamos entre si, cartas marcadas desde o início, lá da época do bendito engarrafamento. É deles todo o sistema de transporte alternativo, que leva a turistada do centro da cidade para os poços artesianos mais isolados. Essa onda de EcoTurismo tem salvado a nossa economia em dias difíceis. Visite Santa Rita do Acostamento, a cidade dos poções mágicos!
Quando chegou a hora, eu pelejei para colocar o Abacate na escultura que iria celebrar o engarrafamento, episódio que praticamente fundou a cidade. Fazia questão, que isso, que desrespeito, assim não pode ser. Cederam, convencidos pelos argumentos. Colocaram os carrinhos de estimação deles também.
Assim, além da linha do horizonte, da montanha da Caixa-Prego, dos poços artesianos, há também uma escultura com os quatro veículos das quatro famílias que fundaram o nosso município com o suor do nosso rosto.
Quando a Abacate bateu o motor, foi como o meu batesse também. Ou não batesse, sei lá, agora me confundi. Seja como for, quando a caravana dos presidenciáveis passar por aqui, é de bom tom parar um pouco para conversar com a gente. Fora da barulhada da cidade, perto do ar puro da montanha, das águas cristalinas dos poços artesianos, se conversa melhor, como antigamente.
É sossegado, né? Que assim permaneça. Quase não se ouve o barulho das carretas surgindo para além das curvas. Cada um tem que saber o impacto de cada rodovia na vida de cada um.”
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.