Apesar do seu tamanho, o município, que fica mil quilômetros a sudoeste de Belém, a capital do Estado (o segundo maior do Brasil, com quase 9 milhões de habitantes), não tem mais condições de expandir essa população bovina. Para que ela se formasse, São Félix se tornou o campeão nacional dos desmatamentos. Em 2019, os 9,2 mil quilômetros quadrados de derrubadas nos seus limites (10% do município em um único ano) representaram um terço da floresta que veio abaixo em toda Amazônia.
Neste ano, São Félix recebeu mais outro título negativo, Foi o maior emissor de gases de efeito estufa per capita do mundo. Cada um dos seus moradores emitiu 225 toneladas de dióxido de carbono equivalente por ano. O volume é quase 22 vezes maior do que a média de emissões brutas per capita do Brasil. Segundo dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa, elaborado pelo Observatório do Clima, abrangendo os 5.570 municípios brasileiros entre 2000 e 2018. Os resultados foram apresentados no mês passado.
O alto índice do poluente está diretamente ligado ao desmatamento. Apenas em 2018, São Félix do Xingu registrou 29,7 milhões de toneladas brutas de CO2 equivalente; 25,44 milhões de toneladas devido a mudanças no uso da terra e 4,22 milhões decorrentes da pecuária.
Dos dez municípios com maior emissão bruta no país, sete estavam na Amazônia, quatro deles no Pará, com o primeiro lugar em São Félix e o segundo em Altamira, o maior município brasileiro.
É chocante. Acompanho o que acontece em São Félix do Xingu desde 1976, data da minha primeira viagem ao município. Voltei no ano seguinte. Pouca mudança tinha acontecido. Tive que me hospedar novamente numa pensão, já que continuava a não haver um hotel, dividindo um dos quartos (sem sequer ventilador) com mais três pessoas. Todos nós devidamente deitados em redes. Muito desconfortável, mas a cidade ainda era fluvial, sem qualquer semelhança com sua feição de beira de estrada, apesar do belo e acidentado rio Xingu serpenteando por ali.
Nem o mais pessimista defensor da natureza poderia ter previsto o quanto ela seria maltratada a partir dos anos 1980. Em outubro de 1978 escrevi mais uma matéria sobre São Félix, que demarca a mudança que viria literalmente galopante a seguir. Por isso reproduzo o texto.
Na pré-história
Fazenda de gado em São Félix do Xingu (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
A temporada de caça às terras de São Félix do Xingu está aberta. Dezenas de pedidos de certidão apresentados ao Iterpa (Instituto de Terras do Pará) e o edital de alienação de 400 mil hectares divulgados pelo Incra dia 20 de setembro com prazo de 60 dias, são os principais indicadores dessa nova corrida. Por enquanto, ela tem sido contida pelo fato de não existir ainda ligação terrestre do Médio Xingu com o restante do Estado, mas já evolui subterraneamente.
Fica no Xingu a maior mina de cassiterita do país (não a maior produção, mas a mina mais produtiva individualmente), na qual trabalham aproximadamente 10 mil garimpeiros. Para lá começam a migrar grupos de colonos e de fazendeiros. O próprio Iterpa já parece estar autorizando a venda de terras ao longo do trecho já aberto da PA-279 (90 quilômetros), que estabelecerá a primeira ligação entre São Félix e a PA-150. Os jornais publicaram recentemente dois editais de demarcação de lotes às margens da estrada.
O maior impacto deverá ser causado pela venda de 400 mil hectares, a gleba Carapanã, pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). No final de novembro o instituto deverá encerrar o prazo para o recebimento de propostas apresentadas por empresas de colonização interessadas em adquirir as terras e depois escolherá a vencedora. Ela ficará com o domínio de uma das áreas mais férteis da Amazônia e também uma das mais extensas manchas de terra roxa de que se tem conhecimento na região.
O fato de alienar essa gleba mostra que o Incra já não está mais interessado em executar projetos de colonização dirigida, abrindo mão dessa tarefa para a iniciativa privada. Independentemente de se saber qual dos dois processos é o mais eficaz, cada um produz resultados distintos. O oficial é (ou deve ser) orientado por critérios nitidamente sociais, visando subsidiar – através de crédito, infraestrutura, apoio técnico, etc. – a fixação e a melhoria de vida do colono.
O projeto particular também está (ou diz estar) interessado nessas metas, mas, ao mesmo tempo, pensa também na exploração direta da terra e no lucro que vai obter com a colonização, vista também como um negócio imobiliário. Assume assim duplo papel. Quem deve avalizar a colonização é ele mesmo, um dos colonizadores. Quer ter lucro com o resultado a ser obtido pelos colonos, mas, sobretudo, com seus próprios resultados.
O governo estará desperdiçando, mais uma vez, excelente oportunidade para testar melhor a colonização oficial dirigida. Na Transamazônica, ela foi realizada como subproduto da construção da estrada. Esta, por sua vez, resultante de decisão nitidamente política, ou geopolítica. Não havia estudo prévio sobre a aptidão do solo nem definição da forma de ocupação em bases realmente agrárias. A colonização acabou sendo dirigida apenas porque havia quem transportava os colonos. Mas os critérios de seleção e de assentamento eram inócuos.
Apenas por casualidade havia uma pequena mancha de terra roxa a partir do km 142 da Transamazônica, onde o antigo Ipean (Instituto de Pesquisa Agronômica do Norte) realizara alguns estudos. Mas essa coincidência não favoreceu os colonos. Ainda assim, vários deles tiveram (ou ainda estão tendo) sucesso em seus cultivos, embora o governo pouco tenha contribuído para esse resultado. A força do trabalho é muito mais poderosa do que se possa imaginar.
Em Rondônia, o governo também tem desperdiçado as potencialidades que a natureza, ali particularmente favorável, lhe ofereceu. A colonização no Território [ainda não era Estado ], mais bem estruturada do que na Transamazônica, foi desestimulada pela falta de apoio do Incra, do Ministério da Agricultura e do próprio executivo. Hoje, os projetos estão em flagrante descenso, para o que contribuíram decisivamente as licitações de lotes com áreas maiores promovidas pelo Incra.
O Xingu será mais uma oportunidade perdida. Poucas áreas amazônicas apresentam características tão favoráveis à colonização agrícola feita em padrões mais racionais. A começar pelo solo, com uma camada de húmus bem mais expressiva, possibilitando assim maior suporte. E com o ingrediente de ser uma área nova, praticamente desocupada, na qual a distribuição dos lotes não precisaria seguir o traçado linear de uma estrada, como a Transamazônica, que não foi orientada no sentido da fertilidade da terra. A rigor, não foi orientada para ser ocupada, mas apenas para existir, como ponto de liga&cc edil;ão entre trechos não navegáveis dos rios que atravessa.
O Incra prefere entregar a tarefa às empresas particulares. É uma decisão discutível, ainda que nãos e possa ainda apresentar, como alternativa, exemplos de bem sucedidas experiências de colonização dirigida no Brasil, mesmo porque elas são em número muito reduzido. Mas os métodos comparativos existem para que se procurem os bons exemplos em outros países. E eles existem.
Mas ainda que se aceite o modelo de colonização particular, causa estranheza que o Incra exija tão pouco de uma empresa que passará a exercer o controle de 400 mil hectares. Ela precisa apenas de um patrimônio de 20 milhões de cruzeiros, talvez porque o Incra, estabelecendo o preço mínimo de 45 cruzeiros por hectares, queira se garantir tão somente em relação ao valor da terra nua, o VTN. Contudo, esse valor não garantirá o projeto de colonização, que exigirá investimento de pelo menos 100 vezes a quantia estabelecida pelo Incra.
Além disso, se deve mais uma vez questionar o preço base da terra. Ainda que seja apenas o lance inicial, a ser superado na concorrência, 45 cruzeiros é muito pouco. Principalmente se se considera que a área de terras boas só apresenta maiores dificuldades de exploração por não contar ainda com uma estrada.
Essa rodovia já está sendo construída e atravessará a gleba Carapanã. Um preço tão baixo certamente favorece o uso especulativo da terra e estimula grupos inescrupulosos a elaborar projetos bonitinhos para, através deles, se apropriarem de terras que lhes darão lucros certos e imensos.
No Xingu, agora, vive-se mais um anteato da história amazônica.
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A Construtora Andrade Gutierrez, que já estava na área, venceu a concorrência, Depois de extrair muita madeira, se retirou da área.
A imagem que abre este artigo mostra o gado em uma fazenda em São Félix do Xingu é de autoria de Alberto César Araújo/Amazônia Real