Mais uma viagem da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Nesta jornada, César tira os pés do chão e, mentalmente, volta ao Bairro de Itaquera em São Paulo, destino de muitas de suas viagens de infância.
Em Tupi, Itaquera significa “pedra dura”. E, realmente, é um imenso bairro de periferia, Zona Leste da Capital Paulista, onde a luta de seu povo tanto bate até que fura, ganhando até um grande estádio de futebol, do Corinthians, escola de samba, metrô… Embora a sua gente sofrida ainda padeça muito.
Ah, este editor oferece, com o chapéu de César Cicero, o belo texto para o grande cantor e compositor, amigo do blog, Edvaldo Santana. Olha a sua Itaquera aqui contada por um fluminense de Nilópolis, Edvaldo! (Washington Araújo).
Veja no final do texto um curta sobre o bairro de Itaquera. Boa viagem!
“Para Tia Dadá, Washington Araújo e Adriana do Amaral
Chegava-se a São Paulo de manhãzinha: as crianças ainda estavam mergulhadas em rasgos de sonhos, sem entenderem completamente em que local estavam e que era para desembarcar.
Durante algum tempo na década de 1980, o Terminal Rodoviário foi ainda aquele com coberturas de acrílico, o que dava um tom futurista à década de 1960, quando se imaginava, não sem engano, que o espírito moderno pertenceria a materiais como o nylon, a fibra de vidro e o acrílico. (Quem se lembra que à época se escrevia a giz em um vidro lateral do ônibus o horário de saída e de chegada?)
Em todo caso, aquele Terminal Rodoviário, tão moderno, caducou. Quando se depararam com o novo Terminal Rodoviário, com todo aquele concreto, talvez tenham sentido na pele o desconcerto evocado pelos versos de “Sampa”: talvez tenham achado aquilo tudo de um tremendo mau-gosto, achando feio o que não fosse espelho ou habitual.
Eram muito pequenos para considerar os inúmeros benefícios que a integração entre trem, ônibus e metrô trouxeram a uma megalópole. Não estavam, portanto, em idade de tecer considerações refinadas. Eram crianças, afinal. Olhavam para aquele colosso com os olhos infantis, de espanto, o que nem sempre é vantajoso.
Seguiam os caminhos traçados pelos pais, mais especialmente pelo pai, que parecia ter um mínimo mapa mental para não se perder no labirinto. E assim fizeram por tanto tempo que chegar à São Paulo, mais que destino, não era senão um episódio a mais da aventura que era chegar à casa da tia Dadá em Itaquera.
Levava-se cerca de três horas, em duas ou três conduções, salvo engano. Havia um nome que se destacava: Ferraz de Vasconcelos (hoje município). Era neste lugar onde se tomava o último ônibus para se chegar, de mala e cuia, a uma casa velha, caindo aos pedaços. Uma maloca que não faria feio se fosse transformada em canção de Adoniram Barbosa.
Era estranho chegar a uma casa sem água encanada (bebia-se água de poço), sem banheiro (o banheiro era chamado de casinha e ficava do lado de fora da casa). Tudo isto existia mesmo na maior cidade do país?
É certo que, aos poucos, as pequenas conveniências foram chegando até aquela casa humilde, que ia sendo recortada em puxadinhos para caber mais membros da família com seus filhos. Moravam muitos filhos e netos da tia Dadá com ela. Todos juntos, na alegria e na dor, no frio e no calor. E se frio fazia em São Paulo, mais frio fazia em Itaquera! Só mesmo o coração de alguém como ela para os aquecer.
Puxando pela memória, de Itaquera lembra-se de; um vaga-lume; de uma cobra ziguezagueando no rio que já era bem poluído; do futebol de várzea; de uma Kombi que vendia pastel e caldo de cana; de um passeio de bicicleta Barra Forte; de uma colcha de retalhos; das máquinas de flíper; do fusca que abria com um pancada na porta; de uma bengala com uma caveira no cabo (que um dos filhos de Dadá, o Jânio, recebia seu Exu Caveira); das primas morenas, as casadas, conversando sobre o que faziam na cama com os maridos; dos missionários brancos como um vela, andando de porta em porta, catequizando a periferia. Eles falavam inglês.
Tudo isso são lembranças de Itaquera! E doem tanto quanto um retrato na parede de Itabira.
Dois dos muitos filhos de Dadá se chamavam Jânio e Eloá. Na certa, o marido dela era janista. Os demais: Raimunda, Sandra, Meire, Marcelo. Quem mais? Mércia, Tatá.
Muito antes do Itaquerão, o progresso chegou para os da Dadá. Vieram uns homens de terno e disseram que aquele povo da cor de bronze deveria arrumar outro lugar para morar, que o dono tinha vendido o terreno.
A casa não ficaria de pé, mas na memória.
Os de Dadá continuaram a saga por São Paulo, trabalhando nas confecções, nas fábricas de vidro, jogando no bicho, morrendo de câncer, se casando, se desquitando, tendo filhos, batizando os netos, se embrenhando, se perdendo e se achando, enricando quase nunca.
A cidade bem que tentou os engolir, mas eles eram muitos. Eles eram também a cidade, e ainda por cima eram protegidos por ela, a tia Dadá, a mulher que, apesar de ter passado por poucas e boas, nunca se deixou levar pela tristeza.
Terra de Gugus e de Dadás! Viva a banda Dá Dá!”
Veja aqui o curta “Itaquera Especial”
Não temos a ficha técnica sobre quem fez o filme e a trilha sonora. Quem souber, por favor, nos comunique.