Por Mariana Ceci* Lição de Casa, compartilhado de Projeto Colabora –
Atividades pedagógicas para Evelize, de 3 anos, são enviadas por Whatsapp mas mãe e professora temem atraso no desenvolvimento da criança
“O Tiago eu costumo dizer que é o ‘super-grupo de risco’, então você imagina como a gente ficou [com a Covid-19]?”. Quem fala é a esposa dele, Mariana Luz, de 38 anos, que doou um rim para Tiago Luz, de 36 anos, fazer um transplante, em 2014. Ele é imunodeprimido – os mecanismos normais de defesa do seu corpo contra infecções estão comprometidos Os dois são pais de Evelize, de 3 anos, Eduardo, 9, e Henrique, 17. Foi principalmente pelo medo do contágio do pai que, quando a pandemia chegou ao Brasil, os três passaram a não botar nem a cabeça para fora da rua em Parnamirim – a maior das cidades que compõem a região metropolitana de Natal, no Rio Grande do Norte.
Cumprir o isolamento à risca não é uma opção para a família, é regra de vida ou morte. “Até hoje [seis meses depois] a gente não saiu: não teve praça, não teve festa, não teve nada”, acrescenta Mariana. Antes da chegada do coronavírus, Evelize, a caçula da família, teve dois episódios de asma, que não foram investigados à fundo pelo medo de ir ao médico e voltar trazendo o vírus para dentro de casa.
O retorno das crianças à escola, afirma a mãe, está condicionado à chegada da vacina. Caso contrário, toda a configuração familiar precisaria mudar para manter Tiago seguro do contágio. “Ele teria que ir dormir na casa dos pais, e aí como eu ficaria? Sozinha, com três crianças? Com o risco de elas ficarem doentes, de eu ficar doente?”, desabafa Mariana.
A pandemia foi sentida pela família em várias dimensões. Logo nos primeiros dias, Mariana, que trabalhava na área de telemarketing, foi demitida. O sustento passou a ser exclusivamente pelo salário de Tiago, que trabalha com supervisão de vendas em alimentos. E Mariana investiu no crochê para ajudar a complementar a renda familiar com encomendas. Os dois estão trabalhando de casa e dão conta dos três filhos e das atividades domésticas.
Elogios à rede pública
O ano de 2020 foi de muitas mudanças para a família. Mariana decidiu não renovar a matrícula dos dois filhos mais novos na instituição particular, para colocá-los na rede pública, após uma boa experiência com o mais velho, adolescente. “Eu estava me matando para pagar a escola deles, e fiquei encantada com a estrutura e o projeto pedagógico da unidade infantil de Evelize”, conta.
Nas primeiras semanas de aula no Centro Municipal de Educação Infantil (Cmei) Profa. Francisca Reinaldo, Mariana já viu os avanços na autonomia da filha. “Ela chegava dizendo do que brincou com os colegas, que já comia sozinha com eles. Ela ia tão feliz, dava gosto de ver”, lembra, e narra um episódio marcante na estreia na nova escola, quando Evelize chegou em casa e pediu para ir ao banheiro. Até então, os pais não haviam conseguido fazer com que a caçula abandonasse as fraldas. “Ela chegou dizendo que queria ir ao banheiro, que já era uma menina grande”.
A experiência, no entanto, precisou ser interrompida um mês depois de começar. No dia 18 de março, a rede municipal de Parnamirim decretou a suspensão das aulas, sem data para retorno. Os três filhos, que antes gastavam ao menos um turno inteiro fora de casa, passaram a ficar em casa o dia todo.
Em julho, a Fundação Oswaldo Cruz divulgou uma nota técnica que afirmava que cerca de 9,3 milhões de brasileiros são idosos e adultos com problemas crônicos de saúde (grupos de risco de Covid-19), que vivem na mesma casa de crianças e adolescentes em idade escolar, como é o caso da família de Evelize. A professora da garota, Milena Alves Teixeira, percebe que muitos pais fazem parte ou vivem com algum familiar do grupo de risco. O retorno das atividades escolares pode dificultar o isolamento dessas pessoas, já que muitos moram com crianças e adolescentes.
O Cmei Profa. Francisca Reinaldo tem cerca de 120 crianças matriculadas, parte dos mais de 6 mil alunos da Educação Infantil do Município. A estrutura da unidade é elogiada pelos pais, mas a instituição esbarra em problemas comuns à rede pública, como falta de profissionais suficientes para supervisionar e tomar conta das turmas em uma situação excepcional como a de pandemia.
A turma de Evelize, por exemplo, tem 20 alunos, e muitos ainda estão deixando as fraldas e aprendendo a comer por conta própria. “Eu, sozinha, não tenho como garantir esse processo de reinserção deles na escola, nesse novo momento que a gente vai viver, porque vai ser realmente um desafio”, teme a professora Milena. Nas escolas municipais de Parnamirim, como em todo o Rio Grande do Norte, as aulas presenciais só voltam em 2021.
O grupo de WhatsApp está ajudando na comunicação das educadoras com as famílias para tentar dar continuidade a alguns trabalhos pedagógicos que desenvolviam em sala. Mas, como tem-se visto Brasil afora [e adentro], a ferramenta ainda é insuficiente. “A criança vai para a escola para ter contato com outras pessoas, ter acesso a um repertório diferente daquele do ambiente familiar. E como conciliar isso com a criança permanecendo em casa?”, questiona Milena.
Uma das principais preocupações é em relação ao desenvolvimento da linguagem. “Nessa fase, as crianças ainda têm aquela fala muito próxima à do bebê”, explica. Segundo Milena, muitos pais enviam vídeos e fotos das crianças fazendo atividades. Não houve grandes regressões, mas “a gente identifica que os avanços poderiam ter sido maiores se eles estivessem na escola, é claro”.
*Lição de Casa
Foto: Evelize na escola antes da pandemia: menina de 3 anos está confinada com a família em casa desde março (Foto: Arquivo Pessoal)