A Constituição prevê que a Lei Orçamentária seja composta por orçamento fiscal; orçamento de investimento das estatais; e seguridade social.
Por Paulo Kliass, compartilhado de Jornal GGN
O complexo processo de superação da ditadura militar em nosso País só foi plenamente concluído com a adoção de uma nova carta constitucional. Em 5 de outubro de 1988 foi promulgada aquela que o deputado federal Ulysses Guimarães chamava de Constituição Cidadã. O parlamentar eleito pelo PMDB/SP presidiu os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, evento que coroou o fim do período autoritário iniciado com o golpe de 1º de abril de 1964. Porém, além de enterrar aquela triste fase da tragédia política e social, o novo texto também lançava as bases de um projeto de sociedade porvir, com uma inegável preocupação com o bem-estar de sua população e com o futuro de uma nação desenvolvida e justa.
O desenho inovador completará 35 anos de vigência no mês que vem. No entanto, desde o início de sua vigência a nova Constituição contou com a oposição dos setores vinculados ao grande capital e ao sistema financeiro. Assim, ao longo dessas três décadas e meia os descontentes poderosos patrocinaram uma série de emendas e alterações no texto maior. O objetivo declarado sempre foi o de reduzir o espaço para o protagonismo do Estado e estimular a transferência ao setor privado daquelas responsabilidades pela oferta de serviços públicos e direitos de cidadania. Essa estratégia de privatização se apoia na entrega de setores de atividade típica do Estado ao capital e no estrangulamento das capacidades do setor público em continuar cumprindo com suas missões de oferecer políticas públicas à maioria da população.
Um dos mecanismos concebidos pelos constituintes para assegurar as condições para implementar as políticas sociais consideradas essenciais foi a vinculação expressa de recursos orçamentárias para as mesmas. Mais do que isso, nossa Constituição prevê que a Lei Orçamentária Anual seja composta por 3 peças: i) orçamento fiscal; ii) orçamento de investimento das empresas estatais; e, iii) orçamento da seguridade social. Este último deve conter o detalhamento de receitas e despesas da previdência social, da saúde e da assistência social. No entanto, desde o início da vigência da nova ordem essa importante organização das finanças públicas tornou-se letra morta e o orçamento da seguridade social converteu-se, na prática, em uma mera rotina para cumprimento formal da exigência constitucional.
Constituição de 1988 e os avanços sociais.
Por outro lado, a Carta contém também dispositivos para viabilizar a montagem e a sobrevivência dos sistemas das políticas sociais. Trata-se de destinar de forma direta recursos financeiros para a previdência social, para a saúde e para a educação. No primeiro caso, temos a contribuição previdenciária sobre a folha de pagamentos, com recolhimento dos empregados e dos empregadores. No caso da saúde, o art. 198 da Constituição estabelece que a União deve aplicar no sistema um mínimo de 15% da receita corrente líquida do mesmo exercício. No que se refere à educação, o art. 212 prevê que a União destine o equivalente a 18% das receitas auferidas com impostos para as diferentes áreas do sistema educacional.
Essas garantias de recursos orçamentários sempre foi objeto de crítica por parte das correntes ortodoxas da economia e dos “especialistas” em finanças públicas a serviço dos interesses do capital. Ao clamar contra esse tipo de “dirigismo” a favor dos serviços públicos, os proponentes da privatização e da austeridade fiscal recorrem à imagem do engessamento da peça orçamentária e sugerem a desconstitucionalização de tais medidas. Afinal, a lógica da extração de superávit primário a todo custo e a implementação de outras medidas como a Lei de Responsabilidade Fiscal, o extinto teto de gastos e o atual novo arcabouço fiscal apontam para a necessidade de reduzir as despesas de natureza social. Tudo passou a ser resumido na pérola falaciosa e tendenciosa: “a Constituição não cabe no Orçamento”.
A realidade dessas mais de 3 décadas foi o crescimento paulatino da oferta de serviços privados de previdência, de saúde e de educação. A redução do teto dos benefícios previdenciários abriu um enorme campo para o crescimento dos planos de previdência complementar, seja por meio dos planos individuais oferecidos pelas instituições abertas, seja através dos fundos de previdência fechado. Na área da saúde, apesar da enorme contribuição e da brava resistência oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS), os sucessivos governos sempre cederam às pressões dos grandes grupos privados nacionais e internacionais. Assistiu-se a uma impressionante elevação do número de beneficiários de planos de saúde privada, além de um aumento expressivo da quantidade de hospitais particulares. Pouco a pouco os serviços de saúde são transformados em mercadorias, em uma dinâmica que atende mais a critérios de avaliação como preço e lucratividade dos empreendedores e menos a indicadores como qualidade de vida e saúde pública.
Previdência, saúde e educação são sabotadas desde então.
No setor educacional verificou-se um movimento semelhante, de forma que o capital privado expandiu sua participação em todos os níveis do sistema de educação, desde a infantil até a superior. Fundos financeiros nacionais e estrangeiros ampliaram de forma bastante agressiva sua presença no conjunto das atividades do setor. A tradição da educação pública e gratuita foi sendo substituída pela presença crescente do ensino privado e pago. A exemplo do que ocorre na saúde, os critérios que passam a nortear os rumos dos conglomerados são associados à lucratividade, de forma que o balanço entre custos e receitas dos empreendimentos educacionais são mais relevantes do que a qualidade do serviço oferecido.
Pois agora, mais recentemente, a política de teto de gastos desde 2016 e a entrada em vigor do novo arcabouço fiscal durante este ano trouxeram de novo à agenda a questão dos pisos constitucionais de saúde e educação. À medida que a lógica da austeridade fiscal cega e burra ganha espaço, um dos resultados é a compressão generalizada das despesas orçamentárias não-financeiras. No entanto, a existência dos pisos vinculados às receitas da União assegura um mínimo de recursos para saúde e educação. Assim, a sanha austericida encontra um obstáculo nos dispositivos constitucionais que preveem essa garantia. Como o bolo total das despesas não pode crescer como deveria por conta das imposições do extinto teto escancarado e do novo teto disfarçado, as demais áreas sociais acabam sendo ainda mais comprimidas.
Nem Guedes ousou eliminar os pisos da Constituição.
E aí surgem os arautos do catastrofismo para apresentar soluções tão milagrosas quanto trágicas. Paulo Guedes falava em seus famoso “ 3Ds”: desestatizar, desvincular e desconstitucionalizar. Nesse roteiro de destruição completa do Estado, o ex ministro propunha privatizar todas as empresas estatais e eliminar as garantias mínimas para saúde e educação. Apesar de toda essa bravata, não conseguiu avançar o quanto desejava. Promoveu terra arrasada das instituições públicas, vendeu algumas estatais, mas não conseguiu mexer nos pisos de saúde educação.
A grande surpresa, porém, tem sido a política econômica leva a cabo por Fernando Haddad no terceiro mandato de Lula. Para fazer referência ao título do artigo, causam apreensão nos setores progressistas as declarações de integrantes dos Ministérios da Fazenda e do Planejamento apontando para necessidade de eliminar os tais “engessamentos”. Ao assumir para si o discurso derrotado da direita, o governo corre o risco de fazer o serviço sujo que os neoliberais e ortodoxos não ousaram ou não conseguiram implementar enquanto estiverem no poder.
O atual Secretário do Tesouro Nacional já afirmou que será necessário eliminar essas garantias previstas na Constituição. Rogério Ceron, subordinado a Fernando Haddad, garantiu que o governo vai encaminhar uma PEC para solucionar esse “problema”. Mais recentemente o Secretário do Orçamento também caminhou no mesmo sentido, mas ofereceu uma saída ainda mais equivocada. Paulo Bijos, subordinado à Ministra Simone Tebet, sugeriu que o governo encaminhasse uma solicitação ao Tribunal de Contas da União (TCU) para que o órgão de controle autorizasse o descumprimento daquilo que a Constituição obriga. Uma loucura!
Lula precisa assumir o comando da economia.
Mas as iniciativas em prol da austeridade não pararam por aí. A jogada mais recente foi uma emenda apresentada pelo deputado federal do Partido dos Trabalhadores à lei orçamentária para o presente ano. Zeca Dirceu (PT-PR) apresentou de última hora uma medida para liberar o governo de cumprir o mínimo de 15% para o total de gastos com a saúde em 2023. A malandragem foi estabelecer que deverão ser utilizados para o cálculo os valores das receitas da União estimadas em janeiro e não os valores reais da arrecadação federal, que vêm crescendo ao longo dos meses.
Face a essa situação que mistura trapalhadas com doses de oportunismo e pitadas dos interesses pesados do capital privado, é fundamental que o Presidente Lula assuma para si a tarefa de orientação da política econômica. Ela já assistiu no passado a episódios semelhantes com Antonio Palocci e Joaquim Levy no comando do Ministério da Fazenda. Lula sabe que a implementação de seu programa de governo depende de uma flexibilização desta abordagem ortodoxa de austeridade fiscal a todo custo. Não combina com sua biografia substituir o “fazer 40 anos em 4” por medidas que vão colocar a pá de cal nos sistemas de saúde e educação públicas do Brasil.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.