Rogério Cerqueira Leite, em seu blog –
Pertenço àquela geração cuja juventude teve a fantasia povoada pelas figuras enormes de humanidade de Gandhi, de Einstein, de Schweitzer e tantos outros. Eram todos exemplos magníficos, mas Schweitzer tinha a atração adicional do mistério inextricável. Era, por certo, possível compreender a coragem e o desprendimento de Gandhi como resultado do imenso amor pelo seu povo. E a cosmovisão humanística de Einstein seria consequência natural da amplidão de sua inteligência. Mas a renúncia de Schweitzer, o maior organista de seu tempo e musicólogo de sucesso, era incompreensível. Se, por outro lado, admiramos o gesto magnânimo, a vida posterior de dedicação objetiva e a intransigente convicção ideológica, não podemos deixar de alarmar-nos com a contestação a um sistema de valores fundamental para a civilização. Um artista e intelectual de grande sucesso abandonava sua carreira e voltava aos bancos escolares para, após anos de estudo de medicina, poder fundar e dirigir um hospital na África e lá dedicar a vida à assistência de um povo injustiçado e miserável. Perturbadora opção, que abalava nossos sonhos juvenis de glória. E foi Schweitzer que me introduziu à música para órgão de Bach, uma interpretação fervorosa e intelectualmente ambiciosa, autenticamente espontânea e ao mesmo tempo plena de retoques técnicos. O livro de Schweitzer* sobre Bach revela as razões do sucesso e das insuficiências do artista como intérprete de Bach. É uma obra inestimável, obrigatória para todo estudioso de música. São mil páginas de leitura fascinante e insubstituível, não apenas pela competência musicóloga do autor como também pela revelação do pensamento musical de Bach. Mas hoje, as concepções interpretativas de Schweitzer estão em parte ultrapassadas, senão no plano teórico, pelo menos no da realização prática. É claro que insisto em que o aficionado, tendo oportunidade, adquira o que encontrar da música de Bach com Schweitzer. Um toque complacentemente romântico é o que me parece hoje dispensável nas interpretações de Schweitzer de muitas das peças de Bach.
São atualmente encontráveis pelo menos três versões da obra completa para órgão que, em extensão, é comparável àquela para cravo que examinei em meu último artigo** nesse espaço. Em primeira instância essas três coleções se equivalem e, embora seja possível recompor uma coletânea otimizada pela escolha das peças mais bem-sucedidas de cada intérprete, sou de opinião que a unidade de concepção de um único intérprete tem também valor próprio. Marie-Claire Alain nos fornece uma série imaginativa e musicologicamente perfeita, com um conjunto de órgãos escolhidos para cada peça, com extrema felicidade. Chapuis conserva todo o cuidado de Marie-Claire, mas é ligeiramente preferível pela limpidez do fraseado. Se Lionel Rogg até certo ponto representa um retrocesso do ponto de vista da clareza, por outro, alcança momentos de introspecção dignos de Schweitzer, de Günther Ramin e de Noeren. Para aqueles que estão confusos eu aconselho a aquisição da obra completa por Chapuis em vinte discos da Telefunken ou Valois. Aos quais se adicionariam as Grandes Tocatas com Rogg e as Trio-Sonatas com Marie-Claire, como também os Quarenta e um coros para dois órgãos com os irmãos Alain. Para osConcertos Transcritos de Vivaldi, Marie-Claire também é incomparável. E obviamente tudo o que for reeditado com Ramin, Noeren e Schweitzer.
Alternativa aceitável seria Walcha, o organista cego que dominou o cenário da música de Bach para órgão na década de 60. Certamente um intelecto superior e um profundo conhecedor de música para teclado de Bach. Intérprete sensível e inteligente, gravou pelo menos dois terços da obra de Bach. É especialmente bem-sucedido nas Trio-Sonatas e Duetos e nos Corais Prelúdios.
Karl Richter nos dá uma esplendorosa visão da Tocata e Fuga em Ré Menor e dos Prelúdios e Fugas em Ré Maior e Sol Menor (532 e 535). São, entretanto, realizações esporádicas. Em geral as interpretações de Richter são pesadas e enfadonhas.
Chorzempa, Downes, Heiller e Pierre são intérpretes eventuais de Bach que merecem consideração. Kraft nos dá exuberante interpretação dos Corais Prelúdios da época de Natal.
Walcha foi, suponho, o primeiro a gravar O Cravo Bem Temperado no órgão e me parece uma opção interessante. A Arte da Fuga já foi gravada por muitos organistas e minha preferência fica com Rogg, pelo vigor e Tachezi pela precisão e limpidez. Marie-Claire é aceitável. Walcha, preferiu o cravo.
E para terminar temos que considerar as obras combinadas para órgão e coros (Corais Prelúdios) para as quais existem gravações aceitáveis. São aquelas de Hurford e de Rilling com o Alban Singers e o Coro da Gedächtniskirche, respectivamente.
Como se vê, mudou muito o cenário da música para órgão de Bach dos tempos de Schweitzer para cá, quando os órgãos mastodônticos dos séculos XIX e XX eram usados para a música desse compositor. Hoje há razoável número de opções e a busca de um instrumento adequado para cada peça é regra quase geral. As obscenidades perpetradas por um Power-Biggs já são universalmente rejeitadas. Schweitzer, por certo, ficaria feliz com esse progresso.
*Albert Schweitzer, J. S. Bach, vols. I e II, ed. Dover Publications, N. York, 1966. Trad. Ernest Newman.
**Ver artigo: “Bach e o terceiro participante” – 15/01/1984 http://rogeriocerqueiraleite.com.br/bach-e-o-terceiro-participante/
Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 22/01/1984.