Por Gelipe Betim, publicado em El País –
ANS não regula o reajuste de planos coletivos, que são maioria no mercado, e seguradoras e operadoras chegam a aplicar aumentos que vão desde 18% até mais de 100%
Nos primeiros dias de julho deste ano, Leonardo Borges recebeu em sua casa uma carta notificando que seu seguro de saúde, da Sul América, havia subido 18,98%, o que elevaria a mensalidade de 433,63 reais para 515,93. As justificativas para este aumento foram vagas: “Frequência de utilização do plano, maior longevidade da população, ampliação de coberturas com a incorporação de outras tecnologias, entre outros”, dizia o documento da administradora Qualicorp, que atua como intermediária entre clientes de planos coletivos por adesão — como o de Leonardo — e seguradoras ou operadoras. “Estou vendo a possibilidade com um advogado de entrar com algum recurso”, conta o rapaz, de 33 anos. A mensalidade do plano de saúde de Clarice Corrêa, de 28 anos, teve um aumento similar. Desde que assinou o contrato, em abril de 2014, o valor que paga mensalmente deu um salto de 93%, de 396 reais para 768,23. “Eu pedi cotação para a Amil, mas vi que está ainda mais caro que meu plano atual. Também mandei e-mail para a Qualicorp para saber se algo poderia ser feito. Acho difícil que consiga mudar, mas ficar sem plano não vai rolar”.
Aumentos muitas vezes considerados abusivos viraram rotina para os 47,7 milhões de pessoas, praticamente um quarto da população brasileira, que têm planos de saúde no país. Mas em dezembro de 2014, a cobertura chegava a 50,4 milhões de brasileiros. Desde então o desemprego em alta e os aumentos descolados da inflação oficial vêm tornando o serviço privado proibitivo. As histórias se repetem: em determinado dia, chega uma carta avisando que o preço do contrato subiu. Às vezes de forma ainda mais dramática. Stéfanie Ribeiro, 28 anos, por exemplo, sofreu um reajuste de 39% neste ano; Daniel Ximenes, 28 anos, de 46,2%; Catharina Torres, 32 anos, de quase 30%. São porcentagens muito maiores que a da inflação oficial, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que fechou em apenas 2,71% nos últimos 12 meses, a menor alta de preços desde 1999.
“Há uma falha de regulação. Os dados que temos não justificam um aumento tão expressivo nos valores cobrados”, argumenta Heron do Carmo, professor da USP e economista especializado em processos inflacionários. Os dados aos quais se refere também são do IPCA: nos últimos 12 meses, remédios e outros produtos farmacêuticos tiveram um aumento de apenas 5,12%, enquanto que os serviços hospitalares subiram 4,31%.
Atualmente, a Agência Nacional de Saúde Complementar (ANS) estabelece um teto de reajuste — que hoje é de 13,55% — apenas para os planos individuais, que hoje raramente são ofertados pelas seguradoras. São apenas 9,4 milhões de clientes em contratos, geralmente mais antigos, deste tipo. Os outros 38 milhões estão em planos coletivos, empresariais ou por adesão, que podem ser reajustados de forma livre. A ANS diz que que “as pessoas jurídicas possuem maior poder de negociação junto às operadoras, o que, naturalmente, tende a resultar na obtenção de percentuais vantajosos para a parte contratante”. Ana Carolina Navarrete, pesquisadora em saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), discorda desta tese e argumenta que “mesmo uma instituição forte tem o poder de barganha pequeno” na hora de negociar. Além disso, o fato de uma administradora como a Qualicorp atuar como intermediária entra clientes e planos acaba “encarecendo o processo produtivo”, explica a especialista. O IDEC defende um teto de reajuste também para os planos coletivos e recomenda que a ANS, “para garantir a sustentabilidade do sistema, considere a capacidade de pagamento do consumidor”. Em nota, tanto a Qualicorp como a Associação Nacional das Administradoras de Benefícios (ANAB) esclarecem que os aumentos são definidos pelas operadoras de planos de saúde e que o papel das intermediárias é o de negociar a “aplicação do menor índice possível e também oferecer alternativas mais acessíveis para que os usuários continuem assistidos”.
Ainda assim, a média de reajuste dos planos coletivos ultrapassa 14%, segundo dados da própria ANS. Tanto esta entidade como as operadoras, através da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) e da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), contestam os dados oficiais do IPCA e explicam que os reajustes não levam em conta apenas a variação dos custos na saúde, mas também a maior utilização dos serviços, a incorporação de novas tecnologias caras, além do envelhecimento da população e da existência de desperdícios ou fraudes. A FenaSaúde destaca que, em 2016, o número de procedimentos cresceu 6,4%, totalizando 1,5 bilhão. Ao mesmo tempo, o segmento perdeu 2,7 milhões de clientes em dois anos. José Cechin, diretor-executivo da FenaSaúde, admite que esta queda não é a principal explicação para maiores aumentos de mensalidades, mas acredita que há um risco de que cada vez mais pessoas abandonem seus planos e a cobertura se elitize, aumentando por sua vez o risco de colapso do próprio setor. Esta tendência, ele explica, vem deixando as empresas em “polvorosa”. “Mas se o preço da ressonância magnética aumenta 20% e a quantidade de exames em 25%, o efeito combinado disso é um aumento de quase 50% na despesa. E é esse o valor que está embutido nos aumentos”, explica.
Em outras palavras, os aumentos de despesa são passados diretamente para o consumidor e as operadoras não assumem riscos, segundo avalia Mario Scheffer, da USP. “Não há crise para planos de saúde. Eles reclamam, falam de inflação maior no setor, mas eles vão muito bem, obrigado”, diz o especialista, que ainda questiona: “Quem calcula esses reajustes, essa inflação médica? Eles próprios? Isso não está claro, não é transparente”. Para Navarrete, do IDEC, as empresas também repassam para o consumidor “não apenas o que foi gasto a mais, mas também os problemas de gestão e desperdício”. “A ANS trabalha com dados fornecidos pelas seguradoras e operadoras. Não há problema nisso, mas usá-los como única fonte de informação, sem um sistema de fiscalização mais ativo, prejudica o trabalho da agência”, explica a pesquisadora.
Em 2016, a receita de seguradoras e operadoras subiu 12%, para quase 180 bilhões reais, segundo os dados da ANS. Subtraídas as despesas (assistenciais, administrativas e de comercialização), ficaram com um lucro de 390,5 milhões, em contraste com os 930 milhões do ano anterior — os ganhos, portanto, diminuíram. Segundo a Abramge, “desde 2007 a saúde suplementar opera com margens operacionais inferiores a 1%”, o que resulta na “dificuldade das operadoras em alcançarem o equilíbrio econômico-financeiro necessário”.
Judicialização e regulação
Os sucessivos aumentos dos planos, assim como exclusões de coberturas ou outros fatores, têm provocado uma enxurrada de ações judiciais contra as operadoras e seguradoras. Um levantamento do Observatório da Judicialização da Saúde Suplementar, liderado Scheffer, mostra que nos primeiros cinco meses de 2017 o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou um total de 11.713 ações contra planos de saúde. Não param de crescer ano após ano: nesse mesmo período de 2011, o mesmo tribunal julgou 2.589 processos desse tipo.
O levantamento aponta ainda que em 90% dos casos os clientes ganham a causa. No escritório Vilhena Silva Advogados, especializado em Direito à Saúde, mais de metade das demandas são causadas por reajustes considerados altos. “Pegamos casos com aumentos de 80%, 130%… E o consumidor não tem acesso às contas, é uma caixa preta. Há uma omissão absurda da ANS”, explica o advogado Marcos Patullo. Mesmo sem um teto estabelecido pela agência para planos coletivos, os magistrados do escritório costumam argumentar diante do tribunal contra cláusulas de sinistralidade que passam a conta de eventuais prejuízos ao consumidor. Os juízes, diz Patullo, vêm ficando mais sensíveis ao assunto e costumam dar razão ao cliente quando “sentem que a operadora está omitindo informação ou está de fato repassando todo o risco” para ele.
Outros casos muito comuns que o escritório recebe são os de pessoas que estão prestes a completar 60 anos, uma faixa etária na qual as seguradoras costumam concentrar um alto aumento uma vez que, depois dessa idade, os reajustes estão regulados e devem ser menores. Um deles foi o de Roberto Reis Fernandes. Em 2009 pagava uma mensalidade de 468 reais, mas naquele mesmo ano viu sua fatura dar um salto para 1.222 reais. Um aumento de 160,88% que recebeu de aniversário. Hoje está com 68 anos e sua mensalidade alcançou 2.632 reais. “Isso sem contar o plano que pago para a minha esposa e minha filha. Somando tudo dá mais de 4.000 reais”, conta. Finalmente decidiu entrar na Justiça quando, ao ficar doente, a seguradora se negou a arcar com um tratamento caro. Em decisão liminar, a Justiça decidiu que a sua nova mensalidade deverá ser de 1.008 reais.
Ainda que a Justiça venha oferecendo alguma esperança para consumidores que se sentem lesados, o horizonte parece ser mais promissor para as seguradoras e operadoras. Elas se fizeram influentes em Brasília através de doações milionárias para campanhas que, em 2014, chegaram a um total de 54,9 milhões de reais, distribuídos a 131 candidatos a presidente, deputado federal, senador e governador. O aumento foi de 263% com relação às eleições de 2010, quando as doações somaram 11,8 milhões, segundo os dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) reunidos em pesquisa feita por Scheffer e a professora Lígia Bahia (UFRJ).
Financiados pelo setor, parlamentares debatem hoje na Câmara propostas para desregulamentá-lo ainda mais. O ministro da Saúde, Ricardo Barros — um dos que recebeu generosas doações — defende a liberalização de planos populares que não ofereçam uma ampla cobertura. A FenaSaúde é contrária a esta proposta concreta, mas defende, por exemplo, a existência dos planos com franquias. “Protegem as pessoas dos altos gastos com saúde e faz com que elas paguem por coisas menores, até chegar na franquia. Isso torna o cliente mais consciente na hora de usar os serviços e evita desperdícios”, argumenta o diretor-executivo Cechin, que diz que o caminho a ser seguido é o da diminuição de custos. Para isso, defende uma maior participação dos clientes nas decisões e um debate entre a comunidade médica para evitar gastos com tecnologias desnecessárias. Ele rejeita veementemente a ideia de que a ANS estabeleça novos tetos de reajuste.
Já Scheffer acredita que as propostas que estão na mesa representam uma volta aos anos 90, quando as regulamentações eram muito fracas. Ele propõe que, a curto prazo, os reajustes de planos coletivos e individuais sejam equiparados. “Estamos falando do sistema de saúde. A meu ver, deve haver um financiamento adequado para que o SUS amplie serviços em quantidade e qualidade. E que os planos de saúde sejam de fato suplementares. Mas hoje ele é maior do que deveria ser. Deveria ser mais rigorosamente fiscalizado e regulado”, diz. O especialista da USP reclama da “omissão” da agência. “É preciso melhorar algumas lacunas, olhar para as exclusões de coberturas e expulsões de idosos. A ANS tem força para isso.” Diante da mudança da pirâmide social brasileira, com a redução da população jovem e o aumento de idosos, que farão maioria, em breve, o dilema do custo da saúde privada vai ficar ainda mais complexo.