Autora do livro “E se as Mulheres Projetassem as Cidades?”, May East esteve em Porto Alegre e se surpreendeu com bairros onde não há padaria
Por Luciano Velleda, compartilhado de Sul 21
na foto: Urbanista May East em entrevista ao Sul21 sobre cidades planejadas por mulheres, urbanização e sua pesquisa sobre mulheres em cidades. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Designer de projetos regenerativos, educadora, urbanista. Artivista, vocalista e musa da banda de new wave Gang 90 & as Absurdettes, nos anos de 1980 quando, junto com o jornalista Julio Barroso e o produtor musical Nelson Motta, trouxe ao Brasil o “iê-iê-iê antropofágico”, um toque tropicalista ao new wave, estilo musical de sucesso na época. A banda ganhou notoriedade após vencer o Festival Shell, em 1981, com a música “Perdidos na selva” – que tempos depois ficaria também conhecida na versão da banda Barão Vermelho. Em 1983, o grupo emplacou a música “Louco amor” na abertura da novela de mesmo nome, da Rede Globo.
Reconhecida como “Mulher da Década em Sustentabilidade e Liderança” pelo Women Economic Forum, essa é a paulistana Maria Elisa Capparelli Pinheiro, mais conhecida como May East – nome de batismo artístico surgido por morar no East Side de Nova York numa época em que os outros integrantes da Gang 90 moravam no West Side.
Essa mulher camaleônica, como já definida por ela mesma, esteve no último dia 9 de novembro na livraria Cirkula, em Porto Alegre, falando sobre seu livro “E se as Mulheres Projetassem as Cidades?”, fruto da sua tese de doutorado. O trabalho partiu de entrevistas feitas com 274 mulheres em três cidades da Escócia: Edinburgh, Glasgow e Perth. O resultado é um convite à reflexão sobre como seriam as cidades se fossem projetadas por mulheres, revelando a importância de suas vozes e experiências na construção de bairros mais inclusivos e regenerativos.
“Caminhei muito em Porto Alegre desde o dia em que cheguei e, em muitos bairros residenciais, dei dez mil passos e não encontrei ninguém na rua. As casas e os prédios bem cercados, como que dizendo: ‘Aqui não é seguro, aqui a gente cria segurança’. Mas a verdadeira segurança encontrei no bairro Cidade Baixa. Me senti totalmente segura porque os olhos da cidade fazem o lugar ficar seguro”, analisou May East, em entrevista exclusiva ao Sul21.
A Escócia entrou em sua vida em 1992, quando conheceu a ecovila de Findhorn e o projeto que incluía geração de energia renovável, produção de alimentos orgânicos, entre outros princípios sustentáveis. Na comunidade, May morou por 14 anos num barril de whisky transformado em habitação. Com o tempo, sua trajetória a levou a assumir a direção do Gaia Arts, da instituição internacional Gaia Foundation, e a trabalhar na ONU após ter colaborado na Eco 92. Em 2009, May conheceu o projeto “Cidades em Transição” (Transition Towns), na Inglaterra, e ainda dirigiu o projeto Educação Gaia, cujo objetivo era ensinar a perceber aspectos de cidades, sociedades e organizações insustentáveis e oferecer ferramentas de redesenho da presença humana.
Sentada no Jardim Lutzenberger, na Casa de Cultura Mario Quintana, May comenta ter se surpreendido ao caminhar em Porto Alegre por bairros residenciais sem nenhum comércio local, nem mesmo uma padaria. “Como é que você mora num lugar que não tem onde comprar pão?”
Confira os principais trechos da entrevista:
Sul21: Como as cidades foram sendo construídas de modo a não serem benéficas para as mulheres?
May: Olhando a história, as cidades medievais, depois teve a Primeira e Segunda Guerra Mundial, em que as cidades europeias foram bombardeadas e tinham que ser reconstruídas, o modernismo emergiu, houve o baby boom, crianças nascendo e se precisava de muita moradia. Quando o modernismo nasceu, naquela época se imaginava que o grande upgrade da população era sair daquelas cidades medievais que não tinham saneamento. O modernismo chegou para sanitizar, organizar, colocar todo o planejamento urbano em sessões e junto nasceu o fordismo. Os carros nasceram com o modernismo, então foram duas mega tendências que começaram a conversar e as cidades passaram a ser desenhadas para a mobilidade e não para a proximidade.
A questão era que se precisava construir muito rapidamente e, junto com os carros, houve o movimento de fazer com que a vida urbana ficasse mais funcional. A maior parte dos arquitetos, engenheiros e engenheiros de tráfego, eram homens e não que os homens dos anos de 1960 e 1970, que começaram a planejar as cidades e o plano diretor, não que eles tenham falado ‘Vamos desenhar cidades que não funcionem para as mulheres’, é que não havia a referência. A referência foi uma experiência do homem. O quanto mais rápido posso sair da minha casa, chegar no lugar do trabalho e voltar? É assim que se desenhava a cidade. Não se desenhava para a proximidade, mas para a mobilidade veicular. Então é uma coisa que tem raízes históricas.
Sul21: Por que você acha que agora há um cenário favorável para mudança?
May: Agora essa conversa acontece na intersecção de três mega tendências. São três tendências que a nossa geração está trabalhando e essa conversa de ‘cidades projetadas por mulheres’ emerge da rápida urbanização da população humana. Hoje temos 52% da humanidade morando em cidades. Agora, se você colocar todas as cidades do mundo juntas, elas cobrem só 4% da superfície da Terra, entretanto, são responsáveis por 80% do consumo global de energia e de emissão de 75% de carbono e mais de 70% dos recursos naturais. Estou convencida de que o futuro da biosfera e da humanidade vai ser decidido nas cidades do século 21.
Então a rápida urbanização da população humana é uma mega tendência. A segunda é o reposicionamento da mulher na sociedade. E a terceira mega tendência é o imperativo da descarbonização do nosso estilo de vida. Nós vamos ter que começar a redesenhar as nossas cidades para a proximidade. Se as mulheres desenhassem as cidades, elas seriam desenhadas para a proximidade. Os carros seriam bem-vindos como convidados, mas o tráfego seria evaporado. As mulheres têm esse padrão de relação com a cidade que é ir numa padaria, levar os filhos no colégio e depois encontrar uma amiga, ir na farmácia, é uma coisa de trabalhar e viver no bairro.
Sul21: Seu livro fala em 33 pontos de alavancagem, resultado das entrevistas com 274 mulheres. O que são esses pontos e qual sua importância?
May: Caminhando com essas mulheres em cada cidade, de bairro popular e também afluente, para que não fosse a visão de só um setor da sociedade, eu tinha muita informação espacial, visual e auditiva. Utilizei a moldura do pensamento sistêmico da Donella Meadows, que fala que existem pontos num sistema complexo que se você fizer uma interferência, ele pode ter impacto no sistema como um todo. Entendi que muitas ideias que estavam surgindo das conversas itinerantes, diziam respeito a pequenas intervenções que poderiam realmente resultar numa cidade que funcionaria melhor para mulheres e meninas. E quando funciona melhor para mulheres e meninas, funciona melhor para idosos, para deficientes, para todos os outros gêneros.
Trabalhei com quatro temas, um deles é senso de pertencimento. Como exemplo, as mulheres falaram que se elas tivessem desenhando as cidades, as cidades teriam lugares para as pessoas se encontrarem para estar juntas e não para consumir juntas. Isso cria um vínculo. Elas dizem que a profundidade e a saúde das relações entre mulheres e entre os membros da comunidade num território, são proporcionais à disponibilidade de espaços para encontros. Outro exemplo do senso de pertencimento foi as mulheres perceberem que não há nada mais poderoso do que uma comunidade descobrir aquilo que ela gostaria de cuidar. Isso vale para qualquer bairro de Porto Alegre. Se uma comunidade despertar para uma coisa e dizer ‘Isso é importante para nós’, não há nada mais poderoso, a comunidade consegue.
Sul21: As cidades europeias estão melhores para as mulheres? Algo desse estudo tem sido colocado em prática por lá?
May: Sim, totalmente. Em Lyon, na França, eles assumiram uma prática que é o orçamento sensível ao gênero. De cada linha do orçamento público, eles checam o quanto promove a inclusão da experiência da mulher na cidade ou reforça a experiência do homem na cidade. Um que também se tornou um dos pontos de alavancagem em Lyon se refere aos espaços públicos. Quando você vê os espaços públicos na Europa, muitos deles eram mais dedicados para esportes competitivos do que para espaços para as pessoas estarem juntas. Então eles começaram a medir o tamanho das praças, o quanto é para futebol, para golf, coisas assim, apesar de que mulheres também jogam, mas o quanto é para as mulheres e para as meninas, principalmente as meninas, que não têm espaço.
Em Paris, a prefeita assumiu a ideia da cidade de 15 minutos. Existem várias pesquisas que dizem que o máximo que as pessoas se dispõem a caminhar ao sair de casa para fazer uma atividade e voltar, são 800 metros. Depois disso, elas pensam duas vezes e pegam um carro. A não ser que o lugar seja muito inseguro. Outra forma de falar isso são os bairros de 20 minutos, onde em 10 minutos você faz uma coisa a pé e volta. Esse movimento dos bairros de 20 minutos é muito forte na Europa Continental, na Grã-Bretanha e na Irlanda.
Muitas cidades também fazem trabalhos junto com mulheres para transformar zonas de ansiedade por zonas de relaxamento. Eu faço muito esse trabalho. Vou com as mulheres para lugares que são mais tensos à noite para caminhar e elas vão sentindo como seria se estivessem sozinhas. Aí a gente conversa sobre o que poderia ser feito para tirar a ansiedade e ficar mais fácil. E a questão da proximidade também está ligada à segurança.
Sul21: Viena tem sido um bom exemplo, certo?
May: Viena é o grande exemplo. Há mais de 30 anos eles assumiram um planejamento urbano de gênero. Você anda na cidade e se sente totalmente reconhecida. Você nem sabe como, mas um dos exemplos são as travessias com o semáforo para pedestres de 40 segundos e para carros de 20 segundos, porque você já mudou a hierarquia. A hierarquia das ruas foi mudada totalmente, de acordo com a necessidade das mulheres que vão com carrinho de bebê e das crianças para atravessarem a rua. Aqui (no Brasil) você tem que atravessar correndo. A hierarquia das ruas tem que mudar. Pedestres, ciclistas e carros têm que renegociar a divisão do espaço comum.