Por Roberto Tardelli em Justificando –
Na história do boi, cuja carne parece ser fraca, a primeira questão que me veio à mente foi como estabelecer a competência da Polícia Federal, em uma questão que – a nós, carnívoros colossais – tem todo o matiz de uma questão de consumo, cuja competência se aliaria à Justiça Estadual e, portanto, às suas polícias respectivas. Bem, mas esse tema de competência tem sido um fracasso de crítica junto aos tribunais, tendo-se a impressão que qualquer um pode investigar qualquer coisa, desde que esse um possa fazer traquinagens investigatórias, como grampos telefônicos, delações premiadas ou premiadíssimas. Do chefe da guarda municipal de Cabrobó, com todo respeito à família cabrobense, à Polícia Federal, qualquer um pode meter o bedelho e sair investigando por aí. O Brasil se transformou em um enorme distrito policial.
A segunda coisa que me marcou foi algo que tenho observado e compartilhado com amigos, os poucos que ainda prezam a regularidade institucional, processual.
Divulga-se uma conversa tenebrosa, em que um executivo manda alguém moer cabeças. Credo, ainda que fossem cabeças suínas, de porcos já sacrificados. Quase como a Rainha de Alice (moam as cabeças!) determinou algo que seria traduzido como uma das fases do processo de produção desde a farinha de osso, salvo engano, com algum teor permitido nas salsichas, mortadelas e embutidos que fazem a festa dos balcões de padaria.
Ao que parece, imaginou o delegado federal que as cabeças foram atiradas a um enorme moedor, esmigalhadas com cérebros, olhos, membranas, tudo em sangue e atirado depois dentro das embalagens e levadas a consumo. Na produção bruta e desalmada da indústria da carne, tudo se aproveita. Desde criança, diziam-me que da vaca só não se aproveita o berro. Por mais duro e impiedoso que isso soe aos ouvidos veggies e veganos, a vida é assim, de moer cabeças.
O que me ressalta é que o delegado caiu no conto da retórica processual, conversas capturadas em interceptações telefônicas que não poderiam substituir a prova pericial, qual seja, saber efetivamente se o lote de carnes apreendidas constituía um perigo à saúde humana ou não. O barulho infernal que se fez, sem que se houvesse prova técnico-pericial apta a demonstrar a materialidade delitiva pode transformar a polícia federal em um órgão de trapalhões investigadores, que, na pressa de verem garantido um lugar ao sol Fantástico Global, podem ter acarretado irresponsavelmente bilhões de dólares de prejuízos à economia brasileira.
A razão de ser de os diretores darem asinhas de frango de presente ou grana aos fiscais não pode conduzir à conclusão de que comercializariam carne podre. Temos uma burocracia que enlouquece o bastante todo aquele que depender de uma autorização de um desses empoderados fiscais; quem já tentou aprovar uma planta de construção ou reforma de casa na prefeitura já passou por todos os níveis de desespero possíveis à alma humana. Imagino quem esteja com toneladas de carnes que devem ser postas em circulação, pelo singelo motivo que outras toneladas estão chegando e que não há espaço para toneladas se amontoarem por aí.
Ninguém se questionou porque nenhum bife exportado foi devolvido por estar bichado, por estar podre, por ter ácido conservante, por ter mais sal ou água. Se o Brasil é um dos maiores exportadores de carne do mundo, se houvesse tamanha negligência, algum país-vítima teria dado o alarme, apresentando laudos técnicos suficientes a concluir que se negociou carne putrefada.
A conversa telefônica nada pode provar, relativamente à existência material do crime, sob pena de prescindir-se de prova que a própria determina como essencial, como, de resto, determina o art. 158 do CPP, não sendo suprível sequer pela confissão, pergunta que nenhum candidato à vaga de estágio pode errar.
Nessa era de retóricas judiciais, ninguém mais se detém para a efetiva necessidade de prova material, valendo o juízo moral desfavorável como suficiente para iniciar outra máquina de moagem: a moagem da credibilidade e da presunção de inocência. Até onde vi, ninguém apontou para um lote de carnes e dali retirou papelão prensado; em matéria processual penal, a convicção vale apenas até a página dois, transformando-se em mera antipatia pessoal se dessa convicção não surgirem provas válidas e objetivamente consideradas.
Nessa febre persecutória, esqueceu-se da necessidade de ter a prova pericial em mãos, esqueceu-se da necessidade de apreender ao menos um pão com salame envenenado, um bife de papelão, que fosse.
Pelo que vi, até agora, o papelão será da Polícia Federal, que se não exibir prova pericial, laboratorial, terá que se defender de não querer, culposa ou dolosamente, quebrar de vez o país, uma vez que ninguém deterá as ondas de desistências da carne brasileira.
Papelão só menor que o de Temer na churrascaria.
Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway. Procurador de Justiça do MPSP Aposentado.