Se o bicho avançar, vamos encarar de pé, diz Ailton Krenak

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Publicado em Carta Capital – 

Principal líder do movimento indígena nos anos 1980 fala sobre o desafio atual para evitar o retrocesso dos direitos e o avanço dos interesses antiindígenas

Ailton Krenak
Ailton durante a gravação do programa Índios em Movimento, que estréia no segundo semestre pela SescTV

Ailton Krenak é um dos mais destacados intelectuais do Brasil, principalmente no que se refere ao sentido pós-colonial das formas de pensar o mundo. Foi a liderança central na luta indígena dos anos 1980 que culminou com a garantia de direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal de 1988 – momento em que pronunciou um discurso histórico na tribuna do Congresso, que integra o belo filme Índio Cidadão, de Rodrigo Siqueira. Sendo um dos fundadores da União das Nações Indígenas e a Aliança dos Povos da Floresta, além do Núcleo de Cultura Indígena, o Programa de Índio, e diversas iniciativas de luta pan-indígenas.




Estive com Ailton, em janeiro, no Rio, numa roda de conversas junto do indigenista Vincent Carelli e da antropóloga Betty Mindlin, em um programa dirigido por Marco Altberg que se chama Índios em Movimento, e que deve estrear no segundo semestre no SescTV. Para mim, foi um momento especial de aprendizado junto a pessoas que admiro muito.

Ano Passado, também no Rio, Ailton foi um dos palestrantes do prestigioso seminário internacional Os Mil Nomes de Gaia, organizado pelo antropólogo do Museu Nacional, Eduardo Viveiros de Castro, e a filosofa da PUC/Rio, Deborah Danowski.

Nessa próxima semana em que acontece a Mobilização Nacional Indígena (de 13 a 16 de abril, convocada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib) Ailton vai lançar um livro da coleção Encontros, da Azougue Editorial, com apresentação de Viveiros de Castro, que reúne diversas entrevistas concedidas ao longo de sua vida, entre 1984 e 2013, e organizadas pelo editor Sérgio Cohn, e inclui o belo discurso no Congresso em 1987 (Ailton Krenak / organização Sérgio Cohn. Encontros. Azougue Editorial, 264 p., R$ 36,00, disponível na loja da editora no facebook). Sobre a obra, que considero imperdível e uma das grandes publicações do ano, escreve Viveiros de Castro: “Ailton empreende um análise fulminante dos esquemas de invasão da Amazônia, desde os negros tempos da ditadura civil-militar até os tristes anos da presidência Dilma Rousseff”

Nesse depoimento abaixo, concedido numa conversa por telefone, Ailton fala da importância dos xamãs, das trajetórias de lutas das grandes lideranças, dos bichos mágicos e assustadores que são os ruralistas e as grandes mineradoras, e do bem comum e do bem viver como formas de luta e de esperança.

Depoimento

1: A memória dos antigos que estão morrendo: são indivíduos, mas sujeitos coletivos

Incomoda a gente sentir que vamos perdendo pessoas cuja memória depende da tradição de oralidade. Eles partem não deixam muita coisa de referência para a gente conhecer o pensamento deles. São como as árvores no outono; as folhas vão caindo e a gente fica frustrado com as perdas.

Por outro lado, hoje há a nova geração. Essas pessoas estão transitando para a escrita, estão começando a publicar, a escrever. Mas ainda não tenho uma ideia do que vai sobrar daqueles que estamos perdendo. Me pergunto o que é que vamos herdar desses seres que cantam, seres que são mágicos, pessoas com a visão magica do mundo e que alimentam nossa esperança.

Aniceto Tsudzawere Xavante, Payaré Gavião, Geraldino Rikbatsa, Mro’ô e Kañon Kayapó, esses são alguns que perdemos mais recentemente. No entanto, mais longe, tivemos o querido Marçal de Souza Tupa’i, assassinado em 1983 na porta da sua casa. Mesmo quando a gente lembra dele, a gente tem poucas coisas que ficaram registradas de seu pensamento. O que ele anteviu na sua luta, é o que os guarani estão vivendo hoje.

Parecia que o Marçal era uma pessoa fora do tempo dele, principalmente com relação à questão fundiária. Nem os guarani, naquela época, colocavam essa questão de terra dessa maneira, não havia essa demanda da terra há 40 anos atrás, isso foi se construindo mais recente, nos últimos 20, 30 anos, até se configurar nessa situação trágica do xeque mate dos ruralistas no Mato Grosso do Sul. E o Marçal já imaginava que, do jeito que a coisa estava, iria chegar uma hora em que eles iriam estar encurralados da maneira como estão hoje. Ele não iria arriscar a vida dele se não estivesse já, no início dos anos 1980, não estivesse antevendo esses perigos todos para seu povo.

Outra pessoa que me vem na memória é o Mario Dzururã, o Juruna. A visão dele de sair daquela vida que tinha na aldeia para se meter nessa confusão que é a politica brasileira, a atração que sentiu para ter essa experiência no Congresso Nacional. E, desde então, a gente não conseguiu em nada se aproximar daquele momento. Não houve uma evolução daquele quadro com relação à presença indígena na cena política. O lugar que os índios puderam ocupar no debate politico ficou parecendo um apêndice da realidade politica. Uma via paralela. Se alguma novidade foi produzida, foi no sentido de ter o desejo de se descolar da tutela. Mas para o Juruna isso não era mais um problema, para ele a questão da tutela já estava superada.

Tanto o Marçal, quanto o Juruna, um na questão da terra, outro na cidadania, foram dois grandes exemplos de pensadores que não deixaram muitas anotação sobre suas ideias. Eles foram, partiram, e puxaram uma fila de grandes lideranças que foram sem que tivesse ficado registrado uma parte importante de seus pensamentos. E a cada década a gente tem perdido essas possibilidades.

Eu acho que há uma necessidade de se fazer biografia dessas pessoas. Se eu me sentisse capaz de me dedicar a um trabalho desses, faria isso.

Vai sair por uma editora de Belo Horizonte um pequeno trabalho que me dediquei a fazer, mais focado família, contando histórias da vovó Laurita. É ela quem puxa a nossa visão de mundo, a história da trajetória dos Krenak até agora, nesse tempo que estamos vivendo. Vai se chamar O Livro  da Vovó Laurita. A narrativa é ela contando histórias para os filhos. Nesse caminho deu até para voltar lá naquele decreto de guerra do extermínio aos botocudos do D João VI, no início dos 1800. Mostra um pouco como os Krenak de hoje são os sobreviventes da guerra do século XIX, passaram o século XX se reconstituindo, e estão agora, na sexta ou na oitava geração de pessoas interagindo com os colonos, os municípios, as vilas, a mineração.

Através da trajetória dessas pessoas a gente conta a história de vida desses sujeitos, mas também de seu grupo e do contexto que eles viveram e tiveram que se reorganizar para viver a vida. O choque de encontrar com os colonos, o choque de perder língua, de perder espaço inteiros da sua visão de mundo, compartilhar a visão de mundo com outras culturas, e todos os conflitos decorrentes disso. As biografias são fundamentais para a gente continuar tendo a presença desses indivíduos coletivos. Digo coletivos porque eles não viveram para eles sozinhos, mas para suas famílias, seus povos. Não são histórias e memórias de indivíduos, mas de coletivos.

Nesse sentido, quando falamos do Payaré, estamos falando dos Gavião da Montanha, como se descolou dos outros grupos, as escolhas para sobreviver, quando ficaram só ele, a sua mãe e alguns primos. O caso dos grupos que ficam apenas com algumas dezenas de pessoas para abrir caminho para o mundo. O risco de extinção que enfrentam. São temas muito fortes.

2: Sobre o atual momento de luta: cantar, dançar e suspender o céu.

Eu não quero ficar travado nessa engrenagem que estão passando por aí. Se a gente sabe que essa pressão tem conexão com tudo que esta acontecendo no mundo, na economia, esse aspecto macro, também penso que a política não teve criatividade de sair dessa roda, está subordinada ao mercado. Eu prefiro olhar para a janela que me inspirou no encontro que o Eduardo Viveiros de Castro e a Deborah Danowski fizeram no rio, Os Mil Nomes de Gaia. Lá, os colegas estavam olhando para a perspectiva do fim de mundo. Essa coisa que acaçapa o pensamento de muita gente, de que estamos no fim da picada. Para mim, ainda existem visões de mundo que cantam e dançam para suspender o céu. Quando o céu esta fazendo uma pressão muito grande sobre o mundo, uma parte desses humanos está cantando e dançando para suspender o céu. Se não fizerem isso, a pressão fica demais para nossa cabeça e ficamos sem saída. Eu não aceito o xeque-mate, fim do mundo ou fim da historia. Esse momento difícil para mim é quando eu mais evoco esse pensamento: cantar, dançar e suspender o céu.

Estive semana passada junto dos Yawanawá, la no Acre. Lá no terreiro, com os dois velhos pajés, o Yawá e o Tatá, e ao lado, aquela geração linda de meninas e meninos crescendo na floresta, vendo isso a gente consegue despachar esse fantasma da assombração econômica para longe. É como se a gente pudesse habitar outros mundos.

Não quero com isso negar a nossa solidariedade e corresponsabilidade com o que esta acontecendo com o mundo real. Mas a gente não precisa ser prisioneiro dessa visão fechada a ponto de não ter mobilidade. Mas ter uma visão equidistante. Saber que é possível avistar outras terras. Senão, a gente parece que está enfiado num tubo.

Essa utopia é o que me anima.

Não posso viver de uma maneira de que eu falo uma coisa e vivo outra realidade, digo uma coisa e vivo outra. Tem que haver uma harmonia entre o que eu vivo no cotidiano, e o que eu falo faço com as outras pessoas. Essa sintonia é para mim saúde. Significa a frase que muita gente tem falado: o bem viver. Para mi, isso tem que ser o bem viver.

Bem viver não depende de um monte de bugiganga que se adquire no mercado. Deve estar apoiado num fundamento próprio de uma visão de mundo que se herda de algum coletivo. No nosso caso, é a comunidade, povo, família. E as demandas da comunidade. Se a demanda é pelo território que está sendo predado, a água poluída, isso me incomoda. Mas eu não vou deixar esse ataque insidioso tirar a beleza de cada dia que amanhece, faça sol ou faça chuva. No meu caso, tem um menino aqui em casa, meu filho, que me diz todo dia: pai, levanta que o dia esta lindo lá fora. Ele fala isso mesmo quando chove, ou quando tá sol. Ta um sol lindo, ou tá uma chuva linda lá fora. Uma chamada dessas do filhotinho é a coisa mais importante para mim.

3: A ideia do bem viver

O conceito do bem viver chegou para gente principalmente pela experiência do Evo Morales, na Bolivia, e dos parentes Quechua, no Equador, que começaram a difundir em diferentes meios, colocaram nas constituições deles, uma visão de mundo que não esta subordinada ao mercado, às logicas do mundo financeiro, de ficar vendendo a terra para pagar divida de ontem. A lógica de vender a terra hoje para pagar a divida de ontem; trabalhar hoje para pagar o que comeu ontem. Nem ficar preso nessa besteira de que precisamos de tanta coisa para sobreviver que o século XX enfiou na cabeça.

A ideia que me atrai na mensagem do bem viver é a de se tirar do lugar onde está, seja do sítio, da gleba, da horta, o que é necessário para viver, comer, ter saúde. As relações serem suficientemente caras para não ficar doente de tanto conflito, conflitos internos e com as pessoas com quem convive. Independente de onde estiver, fazer exercício de autonomia, não criar tantas dependências. As relações não podem virar dependência. Se relacionar por autonomias. Essa ideia pode parecer uma coisa muito difícil de experimentar e de compartilhar com um número muito grande de pessoas, parece uma coisa que só pode acontecer em pequenos coletivos. Mas não é a ideia de ecovila, não é a ideia de ficar numa ilha separada no mundo. É diferente: pode interagir com o mundo, mas não precisa ficar subordinado a essa lógica que domina tudo, a lógica do mercado.

Tem gente que se preocupa quando lê, quando acorda, que o mercado esta nervoso. Ora, foda-se o mercado. Mas tem gente que tem infarto quando escuta alguém dizendo que o mercado esta nervoso. A expressão objetiva desse mercado nervoso são as petroleiras, mineradoras, as corporações invadindo tudo. É um bicho que se expressa nessas formas todas.

Se o bicho vier avançar nos nossos territórios, vamos encarar de pé.

4. Os extrativismos predatórios: o monstro

A prática que vem construindo desde da segunda-guerra mundial para cá, de que o mundo foi concebido de que está tudo dominado e tem que entrar nesse esquema, constrói uma visão tão abrangente que é como se não tivesse saída no mundo para além das corporações e engenharias. Essa é uma lógica que é constantemente atualizadas para sugar o planeta.

Acontece que do outro lado ainda tem gente que acha que a terra é a nossa mãe. Essa violência e essa agressão incide sobre um corpo vivo, que respira, que ama, que tem sentimento. E seus filhos, que são essa gente espalhada mundo afora, não querem ver sua mãe esquartejada, na forma de grandes buracos na terra, ou de rastelos rastelando todas as áreas possíveis, que chamam de agriculturáveis. Esses, esquadrinharam o planeta inteiro onde o extrativismo pode sacar alguma coisa, e espalharam gerência mundo afora para garantir que o suprimento está sempre no fluxo certo. Mas tem que gente que não quer isso. Eu não quero isso. E conheço milhares que não querem. Milhares que se expressam de diversas maneiras para dizer que não querem. Muitos pagam com a própria vida. Os que estão mais expostos, nos lugares onde a violência que não tem nenhum controle, são simplesmente mortos.

Essa imagem do monstro, do bicho que é o extrativismo predatório, dessa mineração, desse agronegócio, pode ser uma coisa cheia de significado mágico. Mas na verdade é isso mesmo. E a gente tem que ser capaz de enfrentar e brigar com esse bicho.

5: O ataque aos direitos dos povos indígenas

Percebi que esse ataque massivo que está acontecendo é porque perderam o instrumental que estava na mão deles. Perderam o que acharam que estava seguro. E nós conseguimos avançar, pelo menos na formalidade, na garantia desses direitos. Se temos uma boa legislação ambiental e direitos sociais, é porque avançamos em 1988. Como se esse pessoal da direita tivessem cochilados e acordaram agora, acordaram nervosos e querem morder todo mundo que está na frente. Certamente, eles queriam ter evitado isso 30 anos atrás. Não conseguiram, e esperaram.

Hoje temos uma lista de PECs, diferentes propostas de emendas à Constituição que desembocam na PEC-215, todas visando retirar direitos da Constituição Federal que foi chamada de cidadã por Ulisses Guimarães. Esta conspiração contra os direitos sociais é o único motivo de a direita ter formado maioria no Congresso, juntando os interesses mais escusos numa mesma frente golpista. Querem mesmo é rasgar a CF.

Parece que a direita no mundo inteiro é assim. Quando sentem que há uma conjuntura favorável, eles saem arrasando a terra. Até que se estabelecem, florescem, e dominam tudo.

A gente também tem que ter capacidade de avaliar o momento que estamos vivendo para fazer o contraponto. Se estamos sendo atacados, temos que nos defender. E avançar para cima dos territórios que eles acham que estão dominando.

Uma virada seria limitar as áreas aonde o agronegócio pode atuar. Nós não queremos acabar com eles, acabar com o agronegócio, isso não faz sentido. Mas eles também não podem acabar com a gente, como estão querendo. Tem que ter um limite: limitar uma área para eles aonde possam fazer o seu desenvolvimento, praticar o desenvolvimento deles.

Parece recorrente a ideia, mas nesses 500 anos a gente não conseguiu fazer com que aquelas canoas voltassem. Se a gente tivesse jogado aquelas canoas, embarcações, tudo mudo no mar, seria outra história, mas a gente não fez isso. Agora é disputar o avanço, a crescimento dessa população, que vai implicar em mais gente disputando terra, disputando água. Parece que não vai ter folga. As futuras gerações vão ter que estar cada vez mais capacitadas para garantir um lugar para viver. A agronegócio não pode sair comendo todo mundo. A mineração não pode sair comendo todo mundo. Desse jeito vai chegar uma hora em que eles vão sair comendo eles mesmo. Mas até para continuar tendo com quem brigar, eles precisam respeitar algumas autonomias.

As Unidades de Conservação, os quilombos, as terras indígenas, são lugares que a gente acha que precisam ser preservados como um bem comum. Acontece que eles estão tratorando tudo. E no campo jurídico também, estão quebrando tudo. São uns vândalos. Eles apontam o dedo para os outros, mas eles são os vândalos: os mineradores e ruralistas. Acham que podem arrasar com tudo. Isso é uma burrice. Estão queimando material importante para qualquer futuro comum.

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