Sem água e sem raiz: a saga das famílias desalojadas pela transposição do Rio São Francisco

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Por Marco Zero Conteúdo, compartilhado de Projeto Colabora

Remanejada para Vilas Produtivas Rurais, população não tem recursos hídricos para plantação ou pecuária e, algumas vezes, nem para abastecimento das casas: “Hoje não tem nem para beber”, diz moradora

(Por Inês Campelo e Sérgio Miguel Buarque) O termômetro do carro marcava 44 graus. O alaranjado do chão pedregoso, a poeira e o azul do céu sem nuvens pareciam intensificar o calor. Logo no início da conversa com José Antônio Ribeiro, o convite para entrar em sua casa veio acompanhado da frase que resume a insatisfação dele com o lugar onde vive:  “Aqui não tem um pé de sombra”.




Dez anos se passaram, e Zé Ribeiro, como é conhecido, não se acostumou com o que ele ainda chama de “casa nova”. Aos 84 anos, ele é o morador mais velho da Vila Produtiva Rural Junco, a mais antiga do Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional. Antes de se mudar para a VPR, em maio de 2010, morava em um sítio no Baixio dos Grandes, no município de Cabrobó, no sertão pernambucano. O sítio, onde passou cerca de sessenta anos da sua vida, era uma das 1.889 propriedades rurais afetadas pela obra. No lugar da antiga casa agora existe um reservatório que abastece parte do município de Terra Nova (PE).

José Antônio Ribeiro, da Vila Produtiva Rural Junco: ele sente falta da casa onde viveu por décadas (Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

Zé Ribeiro sente falta da vida antiga. Da roça, das frutas e de tomar banho de rio. “Isso aqui é uma ilusão. Foi uma ruindade que fizeram comigo. Mudou muito a minha vida”. Esse sentimento de não pertencer ao novo lugar, em maior ou menor grau, está presente na maioria dos moradores das dezoito VPRs espalhadas pelo sertão de Pernambuco, Ceará e Paraíba. É como se a vida daquelas 848 famílias que trocaram suas terras pela promessa de um futuro melhor em uma vila estivesse pausada.

Muito do sentimento de “não pertencimento” vem da lógica das VPRs. As vilas são uma espécie de condomínio fechado e, quase sempre, isolado. Cada família realocada recebeu uma casa de alvenaria com 99 m² de área construída em um lote de meio hectare (5000 m²), além de rede de água, sistema sanitário, energia elétrica, posto de saúde, escola, espaço de lazer e áreas destinadas ao comércio e à construção de templos religiosos, tudo previsto no Programa de Reassentamento das Populações (PBA08), documento do Governo Federal. Para ter uma ideia do tamanho das vilas, a  maior delas, Vassouras (Brejo Santo/CE), tem 145 casas. A menor, Ipê ( Jati/CE), tem 10.

As famílias também receberam cinco hectares de terra para a agricultura, sendo dois e meio irrigado e dois e meio sequeiro (terreno não regado utilizado para plantar nos períodos de chuva ou para criação de animais), com pequenas variações em alguns casos específicos e acordados. Da parte irrigada, porém, apenas um hectare seria entregue pronto para o plantio, com toda estrutura montada, o que ainda não aconteceu. Os lotes produtivos, sorteados entre os novos proprietários, ficam em uma área afastada das casas e não contínua. Ou seja, os lotes irrigados estão separados dos sequeiros, o que dificulta uma expansão do sistema.

Muito vizinho…

O problema é que as VPRs, muitas vezes com estrutura material melhor que as das moradias antigas, possuem aspectos de um espaço urbano que se distingue totalmente do espaço rural que as famílias remanejadas estavam habituadas. Nos sítios, quase sempre as casas ficavam distantes centenas de metros umas das outras, e era comum que os vizinhos mais próximos fossem parentes. A mudança compulsória transformou radicalmente a vida dos moradores e suas relações sociais.

Mudanças que afetam os mais velhos e os mais novos. José Gomes da Silva tem 23 anos e chegou na VPR Junco com 13. Ele é um dos netos de Zé Ribeiro e mora com os avós desde os 3 anos de idade. Como o avô, prefere a antiga casa no Baixio dos Grandes e a vida que levou na infância com banhos de riacho e pescarias. “Aqui não tem lazer”. Mas reclama mesmo é dos vizinhos, e dos pequenos conflitos, como som alto ou roubos de galinha.

Além das galinhas, cria no quintal de casa “umas cabras” para reforçar a renda familiar. As cabras, por sinal, são outro motivo de queixa da família. “Temos que buscar a água de longe”. A seca, que impõe uma dieta restrita, está fazendo os animais adoecerem por falta de cálcio. “Falta verde para elas comerem”. A falta d’água também é a principal queixa de Elizabete Damascena dos Santos, moradora da VPR Pilões, em Verdejante/PE. “A gente só planta quando chove. Criamos dez cabeças de gado. Quando tá seca, temos que comprar o ‘pasto’ fora”.

Pouca água

A falta d’água é o problema central para os moradores das dezoito Vilas Produtivas Rurais. Valdirene Bernardino dos Santos, 44 anos, mora desde dezembro de 2010 na VPR Uri, em Salgueiro/PE. Depois de quase dez anos de espera, ela sintetiza o sentimento das pessoas que tiveram suas vidas afetadas pelas obras da transposição: “O grande gargalo é a água. Hoje mal tem água para beber”.

A situação que ela conta em Uri, não difere muitos das outras vilas. “No início éramos abastecidos por carro-pipa, que jogava a água na caixa d’água. Há três anos começou a passar para a Compesa (Companhia Pernambucana de Saneamento). Mesmo assim, só chega água a cada oito dias e por poucas horas. Só dá tempo de encher a cisterna”. Na VPR Negreiros, vizinha de Uri, a situação é ainda pior. As 26 famílias que moram lá esperam até 15 dias para terem água na torneira. Para Maria Letícia da Silva, que foi morar na vila em novembro de 2010, até agora, tudo foi “só promessa”.

Valdirene Bernardino dos Santos e Joaquim Francisco de Assis, da VPR Uri, em Salgueiro PE, com 45 casas: eles reclamam da falda d’água (Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

De todas as vilas, a de Malícia, também em Salgueiro, era a que tinha a pior situação hídrica. Quando a reportagem da Marco Zero visitou a VPR, os moradores já estavam há 22 dias sem receber água. Segundo Damião Vieira dos Santos, 43 anos, que mora na vila desde dezembro de 2014, ele e os vizinhos têm que recorrer aos carros pipas que custam, em média, R$ 120. “Estamos reivindicando à prefeitura cavar um poço, mas até agora nada”.

A falta de água para plantar, manter os animais ou, em alguns casos, até para abastecer a casa, vem acompanhada de uma sensação de impaciência e até revolta. Mesmo com boa parte dos canais, reservatórios e açudes cheios, ninguém recebeu ainda os lotes irrigados e nem pode usar a água por conta própria. É terminantemente proibido o uso da água dos canais e reservatórios da transposição para consumo (humano, animal ou para agricultura), pesca ou mesmo recreação.

O caso dos moradores da VPR Junco é emblemático. “A área destinada para nós plantarmos está a 200 metros da barragem do Livramento, que foi entregue em 2017 por Michel Temer. Nós estamos assentados há dez anos e, mesmo estando tão próximos do canal, a gente ainda não recebeu a água. Mais de dois anos depois de entregue a barragem a gente ainda não tem água para trabalhar”, desabafa Webston Parente Gonçalves, 30 anos, que vive desde 2010 em Junco e atualmente é presidente da associação de moradores da vila.

Obra sem fim

Para Valdirene, o grande atraso na conclusão da transposição é a origem de todos os problemas. “A realidade foi totalmente diferente do que foi prometido. Até hoje a gente espera”. As obras começaram em 4 de junho 2007. Pelo cronograma inicial, era para ficar pronta em 2012. Depois foi remarcada para 2016 e, hoje, na melhor das hipóteses ficará pronta em 2021. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, 97,44% de execução física do Eixo Norte já foram entregues. No Eixo Leste, a água já chegou ao destino final, em Monteiro/PB, faltando a correção de alguns problemas estruturais e obras complementares para possibilitar o tratamento e a distribuição da água para a população.

Nunca parei de insistir. Eu gosto da terra. Mas é muito difícil a vida aqui. Antes tinha muitas fruteiras. Aqui só tem pedras. As terras são poucas

Manuel Joaquim
Morador VPR Pilões (PE)

Perda da identidade

O atraso nas obras e a consequente demora para a entrega dos lotes irrigados têm contribuído para um outro problema: a desconstrução do modo de produção familiar e a perda da identidade camponesa.  “Com a demora houve o afastamento das pessoas da agricultura. Estamos perdendo o vínculo com a terra”, relata Valdirene dos Santos. Ela, que desde criança trabalha com a terra, nos últimos dez anos tem se limitado a plantar no quintal de casa ou manter uma roça de subsistência nos raros períodos de chuva.

Sem os terrenos irrigados, muitos moradores das VPRs, ao longo da última década, foram trilhando outros caminhos.  Webston Gonçalves é um exemplo. “Cresci trabalhando com a terra, seguindo os passos do meu pai”, faz questão de lembrar. Mas, em 2014, passou em um concurso para professor do município de Cabrobó/PE e, até hoje, dá aula de matemática na própria escola da vila de Junco, a poucos metros de casa.

Concurso público também foi o caminho seguido por Maria Lívia, moradora da VPR Vassouras. Há nove meses ela foi aprovada em uma seleção feita pela prefeitura de Brejo Santo/CE e atua como  agente de saúde no posto da vila onde mora. Mas trabalhar em um emprego público, estável e perto de casa é exceção. A maioria foi buscar trabalho nas cidades próximas, principalmente no comércio. Zé Ribeiro sintetizou em uma frase o que ele acha dos vizinhos depois de dez anos longe da roça: “Hoje ninguém mais sabe plantar cebola”.

O agro não é pop

Mas as dificuldades, claro, não se restringem aos problemas de adaptação a um novo estilo de vida ou à espera da água. Quem deseja trabalhar na terra tem enfrentado problemas concretos para se manter.  Para Manuel Joaquim, 65 anos, há quase dez anos morando na VPR Pilões, o custo da produção em um terreno pequeno e de pouca qualidade é uma equação que não fecha. “Essa água vai custar caro. Não tem como se sustentar em um terreno pedregoso”.  Ele lembra que antes, quando morava a dois quilômetros, atrás do açude de Pilões, na Baixa do Riacho, também no município de Verdejante/PE, tinha água o ano inteiro. “Nunca parei de insistir. Eu gosto da terra. Mas é muito difícil a vida aqui. Antes tinha muitas fruteiras. Aqui só tem pedras. As terras são poucas”.

O prejuízo que Manuel Joaquim está prevendo Francisco Fágner já sentiu no bolso. Fágner tem 28 anos e mora com a mulher Maiara Gomes (25), desde dezembro de 2016, na VPR Descanso, no município de Mauriti/CE. Depois de trabalhar por cinco anos nas obras da transposição e ser demitido, ele resolveu investir em agricultura.

Maiara Gomes e Francisco Fágner da vila Descanso em Mauriti (CE), onde há 80 casas: eles sofrem para conseguir plantar (Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

A exemplo do que fazia quando vivia no distrito de Uburama, que fica a dois quilômetros da casa atual, resolveu plantar feijão. “Gastei R$ 600 de energia para bombear a água. Isso sem contar o trabalho e o custo das sementes. No fim, deu dois sacos de 60 quilos e arrecadei R$ 400”, lamenta. A ideia dele agora é plantar milho. “O quilo da semente custa R$ 36, mais ou menos. Quando colher, vou vender o quilo por R$ 0,80”.

Ao juntar os demais custos de produção até a colheita, as chances de um novo prejuízo na empreitada de Fágner são grandes. Por isso, a esposa Maiara prefere investir em algo mais garantido.  Para complementar a renda familiar, o casal abriu uma pequena mercearia na frente da residência: “Quando chegamos e vimos esse tanto de casa (80) percebemos a oportunidade”.

Recorte de classe

Quem teve a propriedade afetada pelas obras da transposição poderia escolher receber uma indenização pelas terras e benfeitorias ou ser remanejado para uma das dezoito Vilas Produtivas Rurais. De maneira geral, quem tinha propriedades maiores preferiu receber o dinheiro e mudar para áreas não afetadas da propriedade ou tocar a vida em outro lugar. As que aceitaram ir para as vilas, em sua maioria, eram as mais vulneráveis.

Minha vida melhorou porque antes era metade (da produção) pra gente e metade pro patrão (dono da terra). A gente morava de favor. Agora a gente tem a liberdade de dizer que tá morando em cima do que é da gente

Lucimar Araújo Pereira
Moradora da VPR Cacaré (PB)

Muitas das famílias que hoje estão nas VPRs sequer eram proprietárias. Quase 70% eram meeiras (que dividiam a produção com os proprietários da terra) ou posseiras (ocupam as terras sem as respectivas escrituras) e, segundo diagnóstico feito pelos técnicos do Ministério do Desenvolvimento Regional no documento PBA08, “apresentam alta vulnerabilidade diante de processos de mudança em função da baixa escolaridade e capacitação profissional e do tênue vínculo com o mercado”.

Lucimar Araújo Pereira encaixa-se nesse perfil. Desde março de 2016 mora na VPR Cacaré, em São José de Piranhas/PB.  Até se mudar, “trabalhava de meeira plantando feijão e milho”. Queixa-se de promessas que ainda não foram cumpridas e de ter que pagar R$ 58,50 pela água na torneira de casa. Mas não se arrepende da mudança. “Minha vida melhorou porque antes era metade (da produção) pra gente e metade pro patrão (dono da terra). A gente morava de favor. Agora a gente tem a liberdade de dizer que tá morando em cima do que é da gente”.

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