Sem educação, a internet apenas reforça as estruturas de poder e ameaça a democracia

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Por Bruno Barros Ferreira, publicado em Justificando – 

Informação não é conhecimento: o acesso à internet não implica a subversão da ordem das coisas e sobretudo das estruturas de poder que as conduzem

O discurso apologético da internet enquanto instância democratizante do conhecimento e dos processos de tomada de decisão ordinariamente celebra a ampliação dos meios de acesso à informação, a atenuação das assimetrias que antes embaraçavam o alcance do saber científico e a dilatação do espaço de debate público, encontrando importante adesão da opinião pública e da grande mídia que, de uma maneira geral, endossam os principais argumentos que consagram a narrativa democratizante propugnada.

Relativização dos limites geográficos; reconfiguração do tecido social à luz do trânsito da informação gratuita, ampla e instantânea; redimensionamento das plataformas de informação para além dos tradicionais meios escritos; espaços virtuais de interação social e confluência de interesses, autorizadores do engajamento coletivo em projetos de interesse comum; viabilização de um ambiente de reflexão e construção de conhecimento a partir da exposição à diversidade; instrumentos, professores, livros, colaboração, compartilhamento, iniciativa, voz, pertencimento, adesão política: tudo direcionado ao reforço da perspectiva hegemônica que defende a existência de um mundo mais inclusivo e democrático.




Não sem razão, aliás. Afinal, todo e qualquer horizonte de sentido é permeado pelo novo mundo virtual inaugurado (e seus desdobramentos), que circula em uma frequência e dinâmica inéditas, instaurador de um outro nível de interação, mais viva, movimentada e fértil. Com infinitas novas potencialidades de criação e organização do mundo social, qualquer recuo seria impensável quando a vida parece mesmo melhor e, em alguns aspectos, facilitada.

A despeito do acerto de boa parte das conclusões hauridas da reflexão, consensualmente encampada pelo discurso médio, a análise crítica (e menos apressada) dos pressupostos adotados denuncia aspectos importantes ocultados pela irrestrita adesão à tese, como, por exemplo, a manutenção das estruturas tradicionais de exercício do poder e a persistência das instâncias consagradoras dos discursos e práticas socialmente legitimadas. Se, por um lado, a pretensão não é objetar aquilo que o discurso majoritário elegeu como a melhor narrativa, encampá-la integralmente e sem qualquer temperamento parece, no mínimo, inocente.

Não há, pois, apesar da inscrição em um mundo ilimitado de recursos e ferramentas facilitadoras da vida, uma subversão fundamental da ordem das coisas e sobretudo dos fatores reais de poder que as conduzem. As estruturas que definem os sentidos legítimos e que consagram (ou deixam de fazê-lo, a depender da conveniência das contingências e dos interesses envolvidos) as práticas e discursos socialmente autorizados [1] são absolutamente as mesmas e, portanto, embora reconfigurado, o mundo é essencialmente o mesmo e todas as conquistas democráticas, embora importantes – não há como negar que ampliação do espectro participativo redimensiona a vida em seus múltiplos aspectos -, reforçam, em alguma medida, a ocultação das assimetrias reais que caracterizam a sociedade, em especial no que diz respeito ao conhecimento e à forma como as decisões mais sensíveis são tomadas.

A primeira evidência desse ocultamento pode ser entendida a partir do processo de atribuição de sentido, ou, mais precisamente, o processo pelo qual os eventos do mundo (textos, acontecimentos, pessoas) são transformadas em conhecimento. Com efeito, a atribuição de sentido diz muito mais sobre o chão teórico de cada um – repertório individualizado de conhecimento pressuposto no processo de entendimento do conteúdo proposto – do que do texto interpretado propriamente.

Não que ele (o texto) seja desimportante ou possa ser simplesmente desconsiderado: o objeto interpretado representa, em si mesmo, um horizonte próprio de sentido; mas a fertilidade da interpretação depende muito mais da bagagem (articulada e inarticulada [2]) do intérprete do que do texto propriamente dito; e, assim, a interpretação será tanto mais criativa quanto maior o aparato teórico disponível e o entendimento, fruto da fusão entre os horizontes [3] propostos – do intérprete e do texto – será tanto mais rico quando maior a rede de associações e inferências realizadas.

Daí decorre que, como o acesso à educação é dramaticamente fragmentado e, portanto, desigualmente disponibilizado, não há como imaginar que as capacidades intelectivas operam em um nível de igualdade e, claro, existe uma diferença abissal na distribuição das ferramentas teóricas. Ainda que apresentado, como contraponto, dados indicativos do aumento dos índices de escolaridade e alfabetismo – sugerindo, assim, um mundo cada vez mais democrático -, é irrefutável que os indicadores de qualidade do ensino não acompanham o incremento do acesso [4] e que a escolaridade primária ofertada pela rede pública padece de falhas estruturais importantes, e, assim, não há espaço razoável para defender a homogeneização das condições de acesso ao conhecimento, porque, mais uma vez, os pontos de partida são radicalmente diferentes.

Nesse sentido, da mesma forma que o acesso à informação (sem refutar sua importância) não acarreta necessariamente o acesso ao conhecimento – o que fica bastante claro ao perceber que, desacompanhada do aparato teórico do conhecimento, a informação é desnaturada e invariavelmente transmutada em desinformação -, a possibilidade, amplificada pela internet, de integração à vida política e emissão de opiniões (o que também é importante) não autoriza a conclusão de que existe uma participação (no sentido forte do termo) do indivíduo na vida política e que os argumentos por ele veiculados são aptos a influenciar substancialmente os processos de  tomada de decisão ou, ao menos, são em alguma medida levados em consideração.

Dentro da primeira perspectiva (acesso ao conhecimento), o distanciamento do indivíduo em relação ao conhecimento pode ser melhor compreendido à luz da confusão entre os conceitos de informação e conhecimento. Quando a informação é (erroneamente) encarada como conhecimento e, nessas condições, sistematicamente reproduzida – destituída de uma análise sóbria, contextualizada e refletida sob um ângulo crítico – ,  o debate racional parece seguir um curso hostil, perdendo espaço para o caos epistemológico no qual, como bem denunciado há muito pelo professor “Lenio Streck”, passa a ser aceitável dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa e, quando não há mais argumentos, questões complexas são reduzidas a uma questão de opinião; ao final, o aprimoramento do conhecimento cede diante de uma perspectiva de puro enfrentamento, autorizando um cenário caracterizado pelo reducionismo de questões sensíveis e desnaturação das ideias.

Exemplos não faltariam: no Direito, a prática jurídica, no lugar da produção autêntica de conhecimento e sua reflexão à luz das situações concretas do mundo da vida, encampa uma prática nociva de reprodução de ideias abstratas e pré-jurídicas que carregam, em si mesmas, as respostas antes mesmo das perguntas (fatos) [5], promovendo uma espécie de mecanização do saber jurídico; na política, as ideias são apresentadas em uma perspectiva binária de pensamento – direita ou esquerda e um milhão de conclusões pressupostas a partir  daí -, carregado por um conjunto de estereótipos que verdadeiramente empobrecem o diálogo; no debate público, noções esclarecedoras como lugar de fala, fundamental para contextualização das narrativas e revelação da dimensão simbólica a elas inerente, passam a ser instrumentalizadas como mecanismo de deslegitimação do interlocutor e interdição da fala.

Dentro da segunda perspectiva (participação nos processos de decisão), é preciso entender que no ato da fala está contida a expectativa de ser ouvido. Uma dimensão verdadeiramente democrática de participação popular exige muito mais do que simplesmente a possibilidade de emitir uma opinião; exige, pois, que os argumentos sejam considerados a ponto de influenciar as instâncias decisórias e, não sendo o caso, sejam racionalmente rechaçados dentro de uma lógica que abriga pontos e contrapontos. Caso contrário, tem-se apenas uma dimensão formal de participação, muito mais simbólica do que efetiva e, portanto, sem qualquer efeito prático relevante

Mas, claro, definitivamente não é o que acontece: os fatores reais de poder, materializados pelas instâncias legitimadas (da grande mídia ao mercado financeiro) a  influenciar de fato os processos de tomada de decisão, conservam-se e, portanto, em um contexto em que as coisas são fundamentalmente as mesmas e a última palavra é outorgada aos dominantes de sempre, de antemão autorizados, a permeabilidade do debate às novas narrativas e perspectivas assume uma conotação cosmética, que, além de não concorrer para a consecução de novas pretensões (naturalmente antitéticas às dos dominantes), reforça o processo de dissimulação da realidade subjacente e, em última instância, sugere a existência de uma realidade que ainda não é.

Longe de se tratar de uma cruzada contra as consecuções haurida pela (e a partir da internet), a ideia é tão somente temperar o discurso hegemônico consagrador, no sentido de evidenciar o evidente (cada vez menos assim) e chamar a atenção para aquilo que, intencionalmente ou não, é camuflado.

Bruno Barros Ferreira é graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás e Ex-Assessor do Ministério Público do Estado de Goiá

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