Jovem negro foi preso dentro de casa em Pintadas, no interior da Bahia, em agosto de 2021, um dia depois de crime e após ter fotos apresentadas por policiais e ser reconhecido sozinho e algemado, o que viola Código de Processo Penal
Por Jeniffer Mendonça, compartilhado de Ponte Jornalismo
Na foto: Tulio de Jesus Silva, 24, foi preso em 18 de agosto de 2021 após reconhecimento irregular em Pintadas (BA) | Foto: arquivo pessoal
Quando pergunto sobre o filho, a lavradora Nilza Pereira de Jesus, 44, não consegue conter as lágrimas. “Eu só consegui ver meu filho nas audiências [que aconteceram online]”, lamenta. Desde agosto de 2021, Túlio de Jesus Silva, 24, está preso na carceragem da delegacia de Ipirá, no interior da Bahia, acusado por homicídio qualificado e por roubo ocorridos em um bar na cidade de Pintadas, onde mora com a família, que fica a 272 quilômetros de Salvador.
Em um processo cheio de contradições, sem prisão em flagrante e com reconhecimento que só se descobriu irregular quando as testemunhas foram ouvidas durante as audiências, a Defensoria Pública e a lavradora buscam provar que o rapaz é inocente. “Não é porque eu estou falando como mãe, mas basta ler o processo para ver”, garante Nilza. Túlio é mais velho de três filhos. “Não tenho o que reclamar dele, sempre foi muito caseiro, nunca me deu trabalho”, lembra ela, que conta que ele fazia “bicos” com serviços gerais.
À Ponte, Tulio enviou uma carta encaminhada aos parentes contando que tem passado por “dias de muita angústia, incredulidade, raiva e tristeza”. “O que me conforta é saber que minha família não desistiu de mim e segue lutando, apesar das dificuldades”, escreveu. “Aos que se anteciparam ao julgamento espero que nunca passem pelo que agora fazem comigo.”
Em 17 de agosto de 2021, uma mulher, gerente do bar Beira Rio, que também funcionava como um bordel, foi morta a tiros por dois homens, que teriam levado seu celular e pertences de um rapaz que estava do lado de fora do local. Além dele, que estava acompanhado de um vizinho do estabelecimento, o primo da vítima e outras três mulheres que trabalhavam no local presenciaram a ação.
O bar está localizado numa área rural, distante 1,7 quilômetro da casa de Túlio. Naquele dia, Nilza conta que ele ficou a tarde toda na residência e saiu à noite de bicicleta para encontrar a namorada na Praça Anacleto Gonçalves, retornando por volta de 20h. “Depois disso, ele não saiu mais de casa”, afirma. A companheira dele confirmou em audiência que eles se encontraram por volta das 19h30, permaneceram na praça por cerca de 20 minutos e comeram um lanche. Ele retornou para casa e ela foi na casa de uma amiga antes de encontrá-lo novamente já na residência de Nilza.
Ela apontou para a Defensoria Pública, que representa o filho, que Tulio saiu de casa vestindo uma camiseta azul escura, shorts jeans e boné vermelho. A família conseguiu imagens da câmera de segurança de uma loja na Avenida Osório Batista em que ele aparece de bicicleta às 19h26 e depois às 19h50, como se tivesse indo a um local e retornando em seguida. Uma conta no Twitter foi aberta pedindo a liberdade do rapaz.
No dia seguinte, por volta das 18h, Nilza conta que todos ficaram surpresos quando apareceram na sua porta o delegado Marcione Santos de Azevedo, o sargento Gilmário Silva Pereira e o soldado Willian Silva Freire, da 98ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM). “Em nenhum momento disseram porquê estavam levando ele, que ele só ia prestar esclarecimentos, não disseram por que levaram ele algemado”, lembra a mãe.
Prisão em flagrante sem flagrante
O horário do crime não é preciso, já que as testemunhas passaram a divergir sobre o que foi colhido na delegacia de Pintadas quando passaram a ser ouvidas em juízo, ou seja, nas audiências diante do juiz Marcon Roubert da Silva e da promotora Laise de Araújo Carneiro. Mas o intervalo citado pela maioria é entre 20h e 21h.
No boletim de ocorrência, o sargento e o soldado afirmam que foram acionados por volta das 20h30 do dia 17 de agosto de 2021 por “populares” que “teriam ouvido disparos de arma de fogo vindo do estabelecimento conhecido como Bar Beira Rio, na Rua São Bento”. A dupla foi ao endereço e se deparou com um corpo no chão que aparentava ter sido atingido por disparos. A equipe de saúde do Hospital Municipal Maternidade Santa Maria foi até o local e constatou o óbito.
Segundo eles, testemunhas, sem especificar quais, relataram que haviam aparecido dois indivíduos, “ambos de estatura mediana, um de cor clara e o outro de pele morena”, que entraram no bar “portando armas de fogo tipo pistola”, colocaram-nas deitadas no chão e recolheram celulares. Depois, um deles se dirigiu até a vítima e disparou contra ela. E, antes de saírem do local, o outro ainda atirou contra ela mais uma vez.
No registro, é dito que, “segundo informações”, sem dizer a fonte, a vítima teria relação com o tráfico de drogas e que os assaltantes estavam “de cara limpa” quando cometeram o crime, sendo que um deles usava boné de cor preta.
No depoimento dos policiais militares quando da prisão de Tulio, eles apontam que houve os relatos e reconhecimento por foto pelas testemunhas e que, ao ser conduzido para a delegacia, também ocorreu o reconhecimento presencial por elas, momento em que o delegado o autuou em flagrante pelos crimes.
No pedido de prisão preventiva (sem tempo determinado) ao Tribunal de Justiça, o delegado Marcione Santos de Azevedo justifica que Tulio tem passagem por tráfico de drogas, “além de investigações apontarem que ele faz parte de organização criminosa contumaz na prática do crime de tráfico de entorpecentes”. No entanto, há menção a um boletim de ocorrência de 2018 sobre abordagem por tráfico, mas não há nos autos nenhum processo que Túlio responda por isso ou relatório investigativo da Polícia Civil anexado que demonstre a a investigação.
Uma das fontes de Azevedo é “informações dos policiais que atuam na cidade” que relataram que Tulio não trabalharia e viveria do tráfico. Além dos reconhecimentos feitos por quatro testemunhas, ele argumenta que a “comunidade está com uma grande sensação de impunidade diante do quadro que está se instalando com presos que cometem crimes bárbaros e em pouco tempo são soltos”.
Tanto o Ministério Público Estadual, na figura da promotora Laise Carneiro, quanto o juiz Marcon Roubert da Silva reconheceram que a prisão não aconteceu em flagrante e que ocorreu de maneira ilegal, ou seja, Tulio não foi pego com objetos do crime ou em uma perseguição policial logo após o homicídio. Porém, entenderam que ele deveria ser mantido preso por questão de “ordem pública”, já que além desse antecedente indicado pelo delegado, Tulio responde a um processo por furto de celular em outra cidade e poderia “trazer perigo à sociedade”.
Ambos relevam que Tulio denunciou na videoconferência de audiência de custódia, que aconteceu dois dias depois da prisão, ter recebido um tapa na cara por um policial militar dentro da delegacia mesmo que não tenha deixado lesão. “Ficaram fazendo perguntas e eu falei que não ia responder o que eles queriam e ocorreu a agressão”, relatou. O magistrado perguntou se foi policial civil ou militar, o rapaz respondeu militar. “Ok, você não quer declinar o nome dele, né? Tudo bem”, respondeu Roubert da Silva. A promotora questiona se a agressão aconteceu na presença do delegado, o que Tulio confirma. O exame de corpo de delito feito no dia da prisão não constatou lesões em Tulio, mas nem o MPBA nem o juiz solicitaram apuração da agressão.
Esses são dois pontos questionados pela Defensoria Pública e por Pedro Bertolucci Keese, advogado voluntário do Instituto Pro Bono, a quem a Ponte pediu para analisar o processo. A audiência de custódia tem como razão de existir desde 2015 fazer com que uma pessoa presa em flagrante seja conduzida em 24h para que um(a) juiz(a) verifique a legalidade da prisão e se ocorreram violações de direitos humanos praticados pelos policiais. E a realização por vídeo desse tipo de audiência foi muito criticada por especialistas por dificultar a verificação de abusos, por exemplo. No caso de Tulio, não é possível ver se há policiais na sala em que se encontra. “A prisão deveria ter sido relaxada porque não teve flagrante. Na teoria, não deveria manter a prisão com base nos antecedentes, mas na prática isso acontece bastante”, critica Keese.
À Ponte, Nilza afirma que Túlio era abordado e agredido com frequência. “Ele já foi agredido algumas vezes pela polícia, Tulio, na verdade, não tinha sossego. Não sei o que eles viam em Tulio que incomodava tanto eles, eu fico sem entender”, denuncia. “Se o vissem dez vezes na rua, as dez vezes tinha que parar Tulio, diziam que era abordagem, que era o trabalho deles”. Ela conta que nunca formalizou uma denúncia por medo de represálias, por serem policiais que patrulham na cidade, e que não conhecia os órgãos responsáveis para receber atendimento jurídico, como a Defensoria.
Branco, negro, moreno ou grisalho
O delegado Marcione Santos de Azevedo ouviu cinco testemunhas cujos depoimentos têm as descrições dos suspeitos de terem cometido o crime, mas consta apenas que quatro fizeram o reconhecimento: o primo da vítima e três mulheres que trabalhavam com programas no local.
Um ponto que chama a atenção é que todos os autos de reconhecimento têm a mesma descrição das características dos assaltantes e é indicado que foram colocadas pessoas parecidas numa sala para serem reconhecidas: o primeiro seria de “cor parda (moreno)”, estatura alta, aproximadamente 1,80m, cabelos curtos pretos cacheados, compleição física magro, aparentando 22 anos, e o segundo elemento como sendo de cor negra, estatura baixa, compleição física normal, medindo aproximadamente 1,70m, aparentando ter idade de 38 anos”. Pelo documento, em tese, as normas do artigo 226 do Código de Processo Penal estariam sendo seguidas: primeiro é feita uma descrição, depois apresentadas pessoas com características semelhantes para o reconhecimento. Porém, não foi o que aconteceu, segundo os depoimentos durante as audiências.
Tanto os policiais militares quanto as testemunhas e o próprio Tulio disseram que ele foi colocado sozinho para ser reconhecido e que foi visto algemado na delegacia pelas testemunhas. Além disso, primeiro teria ocorrido o reconhecimento fotográfico no local do crime, depois na delegacia e só no dia seguinte Tulio foi preso e apresentado às testemunhas.
Já nos depoimentos escritos, existem algumas contradições. O primo da vítima relatou que não conseguiu ver o rosto dos criminosos, e descreveu que um era “moreno escuro, com aproximadamente 1,70 m, forte, cabelo preto cacheado estilo VO, sem deficiência, voz mediana, nem fina nem grossa, estava vestido de shorts jeans escuro e jaqueta preta” e o outro seria branco, magro, com 1,65 m, “corte normal”, vestindo camiseta azul escuro e shorts jeans”. O auto de reconhecimento aponta que ele reconheceu Tulio como sendo o “moreno alto”. Na audiência, porém, reiterou que não conseguiu ver o rosto, mas acredita que seja Tulio “pelos comentários” na região. Ele também declarou que as testemunhas foram orientadas a fazer o reconhecimento pessoal “calados e quietos”, pois em caso de “movimento brusco”, o acusado poderia reconhecer que todos estavam lá.
Uma das mulheres, segundo o depoimento em delegacia, disse que um dos criminosos era um “homem alto, magro, com as orelhas abertas, usando brincos e vestindo um moletom de cor preto”. Esse homem teria aparecido dois dias antes e ela ouviu o chamarem de Danilo. Na audiência, contudo, disse que lhe perguntaram sobre Tulio e ela disse que ele passou no bar dois dias antes, mas não era o autor do crime porque não esteve no estabelecimento no dia. Tulio confirmou em audiência que foi ao bar dois dias antes para comprar cigarro. Além disso, a mulher descreveu que o autor dos disparos era de “raça branca, com cabelo cacheado na altura do ombro, cabelo meio branco ou grisalho” e que não fez reconhecimento de Tulio na delegacia, apesar de constar um auto de reconhecimento apontando que ela o reconheceu. “Só me deram o papel e eu assinei”, disse.
Outras duas garotas de programa que estavam no local também relataram em audiência que não viram os rostos dos criminosos e não conheciam ninguém da cidade porque estavam trabalhando há poucos dias no local e que estavam bebendo quando a dupla chegou armada. Uma delas também mencionou características de um homem branco com cabelo na altura do ombro, o que diverge do auto de reconhecimento da delegacia.
As fotos que teriam sido mostradas às testemunhas antes da prisão de Tulio não constam no processo, e nas audiências elas dizem que eram imagens de redes sociais e que policiais mostraram fotos no celular também. Não dizem com clareza se o reconhecimento aconteceu com todas as testemunhas juntas ou separadas.
O homem que teve o celular roubado do lado de fora do bar disse que um “rapaz moreno” com boné o mandou entrar no estabelecimento e deitar no chão e que um outro que era “claro” que pegou seu aparelho. Ele disse que não viu os rostos da dupla e nem fez o reconhecimento.
O vizinho do bar que estava com esse homem não chegou a ser ouvido na delegacia, apenas em audiência após ser arrolado como testemunha pela Defensoria, atestando que Tulio não foi um dos assaltantes porque ele o conhece e vive há oito anos em Pintadas. As testemunhas também apontam que o estabelecimento seria de propriedade de um policial militar conhecido como Lima, que não foi procurado pelas autoridades no processo.
Para Pedro Keese, do Instituto Pro Bono, pela forma como as testemunhas descreveram, o reconhecimento foi “viciado” e a irregularidade é “uma nulidade gritante desse processo”. “O réu foi descrito de maneira padronizada, o reconhecimento foi bem equivocado principalmente porque as testemunhas viram o réu chegando na delegacia e acho que o ponto principal que anularia esse caso, na minha visão, é o fato do réu ter sido reconhecido sozinho na sala da delegacia”, aponta. “É uma nulidade que o STJ tem reconhecido e tem sido muito enfático porque se coloca só uma pessoa na sala para ser reconhecida, é óbvio que vão falar que foi ele”.
O advogado se refere a uma decisão de 2020 do Superior Tribunal de Justiça em que o ministro Rogério Schietti argumentou que reconhecimento por foto não é suficiente para condenar alguém ao conceder liberdade para um homem condenado por roubo em Tubarão, em Santa Catarina, cuja única prova tinha sido o reconhecimento. A determinação tem sido usada como jurisprudência em casos que chegam até o STJ.
Schietti citou que o reconhecimento de pessoa, seja presencial ou por fotografia, só é apto quando segue as formalidades do artigo 226 do Código de Processo Penal e quando tem outras provas colhidas durante a fase judicial.
O entendimento é o mesmo da Defensoria Pública, que representa Tulio, ao apontar “contaminação, sugestionabilidade e manipulação” do reconhecimento. “Ocorre que são várias as irregularidades detectadas no presente processo quanto aos reconhecimentos fotográfico e pessoal, razão porque tais procedimentos e todas as provas deles derivadas, ainda que confirmadas em juízo, devem ser considerados ABSOLUTAMENTE NULAS E ILEGAIS”, escreveu o defensor Bruno Botelho de Souza Aguiar.
No entanto, o juíz Marcon Roubert da Silva determinou que Tulio seja levado a júri popular pelo homicídio. Ele argumenta que embora “os reconhecimentos fotográfico e pessoal na fase inquisitorial não terem observado o procedimento legal”, o fato de o primo da vítima ter dito que “mora há muitos anos na cidade e conhece Túlio perfeitamente; sabe quem é sua família, que ele morava no [endereço omitido pela Ponte], era um cara humilde como todo mundo e que nunca soube do envolvimento dele com droga” afastaria “os riscos de um reconhecimento falho” e que bastaria indícios de autoria do crime pelo principio in dubio pro societate para ser julgado por um júri, ou seja, fica a cargo da sociedade decidir sobre a dúvida da autoria do crime.
Para Pedro Keese, esse é um princípio questionável porque coloca o ônus da prova ao acusado, confrontando a presunção de inocência que é prevista na Constituição Federal e tirando do Ministério Público a atribuição de levantar elementos concretos que corroborem a acusação. “Deveria ser aplicado o in dubio pro reo [na dúvida, a favor do réu], do que o in dubio pro societate, que é ‘na dúvida se a pessoa cometeu um crime é melhor apurar, é melhor levar para júri porque é melhor defender a sociedade’, mas é um princípio inventado, não tem fundamento legal”, analisa o advogado. “É um caso que não deveria chegar a júri”.
À Ponte, a assessoria da Defensoria Pública disse que “vai continuar dando todo o suporte necessário a Túlio e à sua família para que seja inocentado de todas as acusações”.
O que diz a Polícia Civil
A Ponte solicitou entrevista com o delegado Marcione Santos de Azevedo, mas a assessoria disse que ele não tinha disponibilidade. Enviamos, então, questionamentos sobre a investigação e o reconhecimento. A pasta não respondeu e encaminhou a seguinte nota:
O inquérito foi concluído pela Autoridade Policial, o suspeito foi indiciado e a prisão decretada pelo magistrado. Para obter mais informações sugerimos que entre em contato com o Tribunal de Justiça.
O que diz o Ministério Público
A reportagem também procurou a promotora Laise de Araújo Carneiro, que respondeu as perguntas por e-mail via assessoria de imprensa:
O pedido de prisão em flagrante feita pelo delegado na ocasião aponta que Tulio seria investigado por tráfico de drogas, mas nos autos não existe indicação de relatório sobre o assunto. A prisão aponta ter sido feita em flagrante, mas Tulio foi preso um dia depois dos fatos e sem ter sido encontrado pertences das vítimas de roubo no caso em que ocorreu o homicídio da vítima. Por quê?
A prisão em flagrante de Tulio foi relaxada porque realizada fora das hipóteses legais. Porém, foi decretada a prisão preventiva de Túlio em razão da reiteração delituosa, pois tem outro inquérito policial na cidade de Juazeiro/BA.
Tulio afirma na audiência de custódia que foi agredido com um tapa no rosto por um dos policiais que o conduziu ao local dentro da delegacia. Por que não houve investigação sobre essa denúncia?
O laudo pericial de exame de corpo delito e as fotografias de Túlio juntados no auto de prisão em flagrante apontam para ausência de lesões corporais, não confirmado a fala dele de que foi agredido.
Nos autos do processo não constam as fotografias que teriam sido apresentadas às testemunhas que fizeram o reconhecimento nem de onde foram retiradas. Por quê? Além disso, apontam que fotos inclusive foram mostradas no local do fato, antes do reconhecimento fotográfico e pessoal em delegacia, o que contamina o procedimento.
O Código de Processo Penal (art. 6º) determina que o Delegado, ao tomar conhecimento da prática de crime, deverá colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias, bem como, proceder a reconhecimento de pessoas. As testemunhas relataram que foram exibidas várias fotografias de suspeitos visando identificar o autor e prendê-lo em flagrante delito, logo após o homicídio. Após, foi formalizado o reconhecimento fotográfico que não embasou a sentença de pronúncia.
As testemunhas e os policiais militares confirmaram durante as audiências que Tulio foi colocado sozinho na sala de reconhecimento na delegacia, embora a prática viole as previsões do artigo 226 do CPP. Por quê?
O reconhecimento fotográfico realizado em Delegacia de Polícia, ainda que eventualmente irregular, não anula a ação penal e a sentença de pronúncia de Túlio não está embasada nesse reconhecimento policial.
Todos os autos de reconhecimento feitos na delegacia apontam a mesma descrição para as características dos suspeitos do homicídio, embora sejam testemunhas diferentes as quais relataram, durante as audiências, descrições de fisionomia completamente diferentes. Por exemplo, a testemunha [primo da vítima], inclusive, diz não ter visto o rosto do suspeito e [mulher que trabalhava no bar] relata que assinou o termo de depoimento sem ler, na ausência do delegado e não fez o reconhecimento. Em audiências, algumas das testemunhas mudaram inclusive as características dos suspeitos, como a própria [mulher]. A Defensoria Pública aponta que houve “manipulação” dos depoimentos das testemunhas por isso.
Para a sentença de pronúncia, conforme art. 413 do CPP, basta a existência de indícios de autoria extraídos da prova produzida perante a autoridade judiciária e não dos elementos colhidos no inquérito policial.
O inquérito aponta que a vítima teria envolvimento com o tráfico de drogas, mas não consta investigação sobre esse ponto. Por quê?
Com a morte da pessoa, extingue-se a punibilidade, impedindo a investigação dos crimes por ela praticados.
Há dois BOs na ficha do auto de prisão em flagrante que apontam Tulio como autor em caso de tráfico de drogas, mas não consta investigação nem ação penal. Apenas o caso de furto que o MP propôs acordo de não persecução penal [quando pessoas acusadas por crimes sem violência formalizam um acordo em podem ser responsabilizadas pelo delito sem a necessidade prisão ou um processo]. Qual seria o envolvimento de fato de Tulio com o tráfico de drogas?
No processo que apura o homicídio de [nome da vítima omitido pela reportagem] não há elementos de prova acerca da ocorrência tráfico de drogas. A polícia civil é responsável pelas investigações dos boletins de ocorrência registrados em nome de Tulio para posterior remessa ao Juízo criminal.
Há referência de um policial militar conhecido como Lima seria dono do Bar Beira Rio, onde o crime aconteceu. Por que essa pessoa não foi chamada para depor na delegacia, bem como vizinhos do estabelecimento? [Nome da testemunha], por exemplo, apenas foi ouvido em juízo. Também não consta nos autos verificação sobre a propriedade do bar nem do terreno onde está sediado.
Para elucidação do crime de homicídio não é indispensável a oitiva do proprietário do local onde ocorreu o crime se ele não presenciou o fato. O suposto envolvimento de policial militar em atividade privada irregular deve ser apurado (na seara disciplinar) pela própria corporação.