Milly Lacombe, 53, é jornalista, roteirista e escritora. Cronista com coluna nas revistas Trip e Tpm, é autora de cinco livros, entre eles o romance O Ano em Que Morri em Nova York. Acredita em Proust, Machado, Eça, Clarice, Baldwin, Lorde e em longos cafés-da-manhã. Como Nelson Rodrigues acha que o sábado é uma ilusão e, como Camus, que o futebol ensina quase tudo sobre a vida.
Por Milly Lacombe, compartilhado de sua Coluna
Em 2018, logo depois do título mundial francês, o comediante sul-africano Trevor Noah disse na TV que a África tinha vencido a Copa do Mundo de futebol masculino. Isso porque, do time campeão, 17 dos 23 jogadores estariam aptos a jogar por outra nação, quase todas africanas.
Dias depois, o embaixador francês nos Estados Unidos, onde Noah mora e trabalha, mandou uma carta dura para a emissora que o emprega dizendo que o comunicador estava redondamente enganado, que todos os jogadores da seleção tinham sido educados na França, socializados na França e que eram expressão da diversidade francesa.
No ar, Trevor leu a carta e explicou que os jogadores eram, isso sim, expressão do colonialismo francês.
A carta do embaixador ofendido exigia que os jogadores negros fossem chamados por Noah de franceses e não de africanos.
Noah argumentou que quando o imigrante é um desempregado nas ruas de Paris ele é chamado de africano pelas instituições; quando é um vencedor de Copa do Mundo vestindo a camisa da França ele deve obrigatoriamente ser chamado apenas de francês.
O comunicador perguntou se era justo que fosse assim.
Não me parece que seja justo. E cá estamos nós, em 2022, diante da mesma realidade: a França desponta como um dos melhores times da Copa outra vez.
Sem seus imigrantes, não estaria onde está e não teria o respeito que tem.
Os grandes deslocamentos das populações refugiadas é um dos maiores problemas do mundo atual.
Há centenas de campos de refugiados hoje pelo planeta.
São espaços onde cidadãos de países destruídos por práticas coloniais se encontram aprisionados, tratados como uma sub-categoria humana, adoecendo e padecendo num limbo diplomático que não permite que eles permaneçam em suas casas e nem tolera que entrem em outros países. São pessoas largadas para definhar e morrer.
Em 2018, Noah disse ao embaixador que os jogadores negros da seleção francesa podem e devem ser chamados de africanos e que isso não exclui de cada um deles a cidadania francesa. Que podem ser ambas as coisas.
Antes de acolher a imigração para fins futebolísticos, a França era uma nanica no esporte.
Depois da geração de Zidane, filho de argelinos cujo país foi explorado até a última gota por violentas práticas de colonização francesa, a França é hoje uma das gigantes do futebol. Antes de Zidane, nunca chegou perto de ser sequer mediana.
O jogo é um espelho da vida. A imigração não nos eleva apenas dentro das quatro linhas.
A imigração nos eleva enquanto espécie. Nas universidades, na comunicação, na arte, na cultura, na tecnologia.
Borrar a dureza das fronteiras, pensar em políticas públicas de inclusão, falar do que o colonialismo europeu fez com o mundo, exigir reparações, contar a história pelos olhos dos dizimados.
Seria importante que essa fosse a narrativa.
Que falássemos mais sobre o que a imigração fez pelo futebol da França, tirando ele da completa insignificância esportiva e colocando na dimensão de um dos maiores times do mundo.
The French ambassador to the U.S. @GerardAraud criticized Trevor for congratulating Africa on France’s World Cup victory. Trevor responds #BetweenTheScenes: pic.twitter.com/5nJklXRyY8— The Daily Show (@TheDailyShow) July 19, 2018