Sem recreio: desmonte de políticas públicas prejudica combate ao trabalho infantil

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Por Luiza Muzzi e equipe Lição de Casa, compartilhado de Projeto Colabora – 

Especialistas apontam que esforços articulados das instituições e do governo e engajamento da sociedade são urgentes

Adolescente faz serviço de entrega em bicicleta em Belo Horizonte: por sobrevivência, jovens se arriscam como entregadores de aplicativos durante a pandemia (Foto: Joana Suarez/Lição de Casa)

A covid-19 não era uma ameaça, nem sequer imaginada, quando a ONU decidiu que 2021 seria declarado o Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil. O pedido para que os países intensificassem os esforços para erradicar essa violação, ainda em julho de 2019, não contava com uma pandemia dessa proporção. No Brasil, a luta pelo fim dessa violação, já complexa, esbarrou em um desafio anterior ao fechamento das escolas: o desmonte de políticas públicas.




No momento em que se agrava a crise, serviços responsáveis por proteger famílias vulneráveis, como os Centros de Referência de Assistência Social e os Conselhos Tutelares, estão fragilizados. Além dos cortes orçamentários, inclusive com a redução de equipes, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) – instância máxima de deliberação de políticas para os menores – atualmente funciona por força de liminar.

Essa sequência de retrocessos afeta diretamente o combate. “A pandemia encontrou o Brasil em situação de imunidade baixa”, reflete Tânia Dornellas, assessora do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).

Quadros de mendicância e trabalho tendem a se agravar com reduções ou fim do auxílio emergencial. “Todos os casos que tínhamos atendido e que teoricamente já tinham sido resolvidos estão retornando”, constatou o conselheiro tutelar Nélio Lobato, de São Luís (MA), no princípio do ano.

Sem prioridade

O governo brasileiro claramente não trata essa pauta como prioridade, analisa a procuradora Ana Maria Villa Real, coordenadora nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente no Ministério Público do Trabalho (MPT). A procuradora cita as reduções de gastos na assistência social feitos ano a ano, desde 2017, e a revogação, por quase dois anos, do decreto que instituía a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti) – retomada apenas em dezembro de 2020, mas excluindo a participação de entidades e da sociedade civil.

A equação não fecha. Estamos falando de um país que já havia saído do mapa da fome, e agora passa a conviver com déficits progressivos no momento em que a população está mais precisando

Elias Sousa Oliveira
Presidente do Conselho Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social

O Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, se estivesse com sua comissão vigente, explica Ana Maria, poderia ter possibilitado o estabelecimento de estratégias de enfrentamento para os períodos durante e pós pandemia. Mas isso não aconteceu.

Procurado pela reportagem, o governo federal, por meio do Ministério da Cidadania, negou cortes orçamentários no Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Mas um levantamento do Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (Congemas) com base nas Leis Orçamentárias Anuais (LOA) apontou que 2020 teve o pior montante para a área desde 2012: R$ 1,36 bilhão, contra uma média de R$ 2,27 bilhões dos últimos nove anos. Em 2021, a redução de repasses pode chegar a 59,3%.

O governo justificou ainda que, em 2020, garantiu R$ 2,5 bilhões de recursos emergenciais para aumentar a capacidade de resposta do SUAS durante a pandemia. O problema é que, conforme o Congemas, a verba extraordinária não foi suficiente, já que os créditos ordinários já tinham sofrido redução.

“A equação não fecha. Estamos falando de um país que já havia saído do mapa da fome, e agora passa a conviver com déficits progressivos no momento em que a população está mais precisando”, alertou Elias Sousa Oliveira, presidente do Congemas. Ele complementou que as prefeituras, hoje, têm atuado no limite de suas capacidades para manter de portas abertas os serviços de proteção social.

Na luta contra o trabalho infantil e pela promoção dos direitos das crianças e adolescentes a gente tem que esperançar sempre”, afirma a procuradora do trabalho Ana Maria Villa Real. A saída começa pelo engajamento da sociedade em torno do tema.

A procuradora destaca a necessidade de cobrarmos dos governos, nos três níveis, a articulação de atores e políticas que protejam os pequenos cidadãos antes mesmo de a violação acontecer. “O voto é uma ferramenta de mudança estrutural. Isso significa eleger parlamentares que tenham compromisso efetivo com a infância”, afirma Ana Maria.

Se não mudarmos de atitude, estaremos cada vez mais sujeitos a retroceder a patamares já superados há mais de 30 anos, avalia Luciana Coutinho, procuradora do trabalho em Minas Gerais.

O número de trabalhadores precoces no Brasil vinha em uma tendência de redução. “Isso não foi de graça, houve muita luta, mobilização social e investimento em políticas públicas”, detalha Luciana. Ela cita programas de distribuição de renda – como o Bolsa Família, que tem a frequência escolar como um dos condicionantes para recebimento do recurso –, bem como a inserção das crianças em atividades de contraturno.

rabalho precoce priva meninos e meninas de vivenciarem sua infância e adolescência da forma como deveriam (Foto: Larissa Burchard/Lição de Casa)
Trabalho precoce priva meninos e meninas de vivenciarem sua infância e adolescência da forma como deveriam (Foto: Larissa Burchard/Lição de Casa)

Soluções paralisadas

Uma das principais políticas da área, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) está com os repasses paralisados desde 2019 e sem expectativa de retomada, lembra a procuradora. A iniciativa foi criada pelo governo federal para proteger crianças e adolescentes através de estratégias que incluem um auxílio financeiro pago às famílias.

Por meio de nota, o Ministério da Cidadania alegou que os recursos são transferidos desde 2014 e que há saldo em conta de mais de R$ 41 milhões do Fundo Nacional de Assistência Social que não foram acessados pelos estados e municípios, “por motivos diversos”. Quem trabalha na ponta contesta. Os repasses mensais foram interrompidos, sendo as últimas transferências do PETI feitas em 2018, assegurou Elias Oliveira, presidente do Congemas.

Embora alguns poucos municípios ainda tenham um pequeno saldo de valores recebidos em anos anteriores, o gestor explicou que a manutenção dos repasses teria sido fundamental em um contexto de agravamento da pobreza. Segundo Elias, o Ministério da Cidadania havia se comprometido a apresentar uma nova proposta de repactuação para o PETI, o que não aconteceu.

Os recursos teriam possibilitado, por exemplo, a compra de chips de celular com mais capacidade de internet que pudessem garantir a continuidade dos estudos. Mas não se faz política pública e proteção social sem verbas. “Infelizmente chega o momento em que os recursos se esgotam e começamos a fazer uma política pobre para o pobre”, lamentou Elias Oliveira.

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