É necessário oferecer condições que respeitem a dignidade do trabalho dos professores
Por Valter Mattos da Costa*, compartilhado de ICL Notícias
Não há projeto eficaz na educação sem considerar a valorização salarial dos professores e dos profissionais da educação de um modo geral, não se pode esperar que esses profissionais sejam eternos abnegados. Como professor, vejo a educação brasileira, hoje, mergulhada em uma contradição — a exigência de compromisso sem o devido reconhecimento profissional e salarial — que prejudica seu desenvolvimento e, por isso, subestima, infelizmente, seu papel social.
Para um sistema educacional eficaz, não basta cobrar compromisso dos professores; é necessário oferecer condições que respeitem a dignidade de seu trabalho. No entanto, o que se vê é uma tentativa persistente de minimizar o papel dos educadores, relegando-os a uma posição periférica, sem voz no processo de decisão. Reformas vêm sendo impostas por agentes externos que desconhecem a realidade das salas de aula e que, movidos por interesses mercadológicos, interferem na prática pedagógica.
A série de reportagens “Missão Professor”, da Folha de São Paulo, ilustra bem esse cenário. Em 15 de outubro de 2024, a manchete “Brasil patina na melhoria salarial” destacou a precariedade dos salários dos professores. O Plano Nacional de Educação (PNE) estabeleceu que, até 2024, os salários dos professores da rede pública deveriam se equiparar aos de outros profissionais com ensino superior. Em 2012, esses docentes recebiam 65,2% desse valor, subindo para 86,9% em 2023, mas devido a perdas salariais em outras áreas de nível superior, e não a um aumento real para os professores, que continuam com rendimentos abaixo do que é considerado justo para seu trabalho.
No Rio de Janeiro, o descaso se revela na falta de cumprimento do piso salarial nacional pelo governo do Estado. A Lei nº 11.738/2008 garante um piso salarial para os professores, atualmente fixado em R$ 4.580,57 para uma jornada de 40 horas semanais. No entanto, o piso é tratado como uma “complementação” pelo governo Cláudio Castro, sem incorporação ao vencimento base. Assim, reajustes dependem da vontade política do governo estadual, perpetuando a defasagem e a precarização do trabalho docente.
Agravando esse cenário, na rede estadual fluminense poucos professores de nível superior possuem carga de 40 horas; a maioria trabalha com 18 horas semanais e recebe R$ 1.940,69, um valor incompatível com a importância de sua atuação. Essa situação, infelizmente, reflete um padrão nacional de descaso com a educação pública.
A desvalorização dos professores no Estado do Rio de Janeiro reflete-se, também, na repressão de suas reivindicações por melhores condições de trabalho. Em 2023, o Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (Sepe) convocou uma greve para exatamente exigir o cumprimento do piso salarial, mas o movimento foi declarado ilegal pelo Tribunal de Contas, numa tentativa de cercear o direito de manifestação. Sob ameaça de cortes de ponto, os professores encerraram a greve e repuseram as aulas – como sempre fazem. Isso ilustra a pressão enfrentada ao buscarem apenas o cumprimento de condições mínimas de trabalho.
Além disso, o desgaste físico e mental decorrente da sobrecarga profissional tem levado a afastamentos recorrentes e ao aumento de problemas de saúde, como síndrome de burnout, distúrbios musculoesqueléticos e desgaste vocal causado pelo uso contínuo da voz em salas barulhentas. Mesmo o regime de aposentadoria especial, criado para amenizar esses impactos, foi restringido pela reforma previdenciária de 2019, que aumentou a idade mínima e o tempo de contribuição. Ignorar o impacto dessa profissão é desconhecer a realidade vivida nas escolas.
Outro agravante é o aumento da violência nos colégios, afetando tanto professores quanto alunos. Casos de agressão estão em ascensão, criando um ambiente de insegurança que compromete o processo de aprendizado. Sem protocolos de apoio e acolhimento, muitos professores se veem obrigados a deixar a profissão, gerando um ciclo vicioso de abandono e precarização.
A sobrecarga burocrática também interfere no trabalho pedagógico. Antes, cabia às secretarias das escolas consolidar e encaminhar os dados para as secretarias de educação. Hoje, além dos diários de papel, os professores são obrigados a inserir esses dados diretamente nos sistemas eletrônicos, desviando o foco da prática pedagógica para tarefas administrativas que deveriam ser secundárias.
Mais um exemplo de intervenção descontextualizada em relação às práticas de sala de aula é o Novo Ensino Médio. A reforma, sancionada pela Lei nº 13.415 de 2017, no governo Temer e implementada em 2019, no governo Bolsonaro, prometia modernizar a educação e reduzir a evasão escolar, mas não melhorou a situação. Aprovada sem diálogo com os professores, a reforma flexibilizou o currículo e reduziu o espaço de disciplinas essenciais ao desenvolvimento crítico, como Sociologia e História, enquanto introduziu novos componentes curriculares (como inúmeras “eletivas” etc.). Com a diminuição da carga horária de disciplinas importantes para o ENEM, o modelo prejudica os alunos e orienta o ensino para demandas de mercado, ignorando a estrutura precária das escolas públicas e as condições de trabalho dos educadores.
Antes que pedagogos acadêmicos critiquem, o objetivo não é valorizar um conteudismo desatualizado e distante das realidades atuais. Em grego, “metodologia” quer dizer “caminho”, e essas disciplinas, consideradas “tradicionais”, possuem as metodologias necessárias e adaptáveis para atender às demandas sociais contemporâneas, desde que os professores recebam o suporte necessário – sabemos o caminho que devemos seguir. No entanto, ao contrário, com a sobrecarga imposta pelos novos componentes curriculares, muitos professores têm sacrificado o pouco tempo livre que possuem.
Os problemas da educação pública no Brasil se evidenciam nos resultados do IDEB de 2023. Esse índice, calculado com base no desempenho dos alunos nas provas do SAEB (Português e Matemática) e nas taxas de aprovação escolar, monitora a qualidade da educação. Considerando a capacidade dos alunos de dominar habilidades básicas de leitura, escrita e o raciocínio lógico fornecido pela Matemática, em 2023 as médias do SAEB foram 5,33 para o 9º ano e 4,67 para o 3º ano (anos que encerram o ciclo de aprendizagem), revelando deficiências preocupantes no aprendizado e na progressão dos alunos ao longo do ciclo escolar.
Nos dois maiores estados do país, São Paulo e Rio de Janeiro, o desempenho no SAEB evidencia o despreparo da educação pública. No 3º ano do ensino médio, escolas paulistas obtiveram média de 4,52, enquanto as do Rio ficaram com 4,1. No 9º ano do ensino fundamental, a média na rede pública do Rio foi de 5,36, mostrando leve crescimento em relação à avaliação anterior, o que foi usado na campanha de reeleição de Eduardo Paes. Ainda assim, esses índices indicam que os alunos dominam menos de 50% do conteúdo básico, perpetuando o analfabetismo funcional e limitando o futuro dos estudantes, especialmente das classes populares.
A infraestrutura precária das escolas públicas brasileiras exemplifica o descaso com a educação, prejudicando o ensino e o ambiente escolar. No município do Rio de Janeiro, o problema da climatização é um exemplo. Embora o secretário de Educação, Renan Ferreirinha, afirme que 90% das escolas estão climatizadas, a realidade relatada por professores e alunos é outra: muitos aparelhos de ar-condicionado estão inoperantes, e a rede elétrica frequentemente não suporta a carga. Em um ambiente tropical, essa falha compromete a concentração dos alunos e dificulta o trabalho dos professores, evidenciando a falta de investimentos estruturais básicos necessários para um ambiente de aprendizado adequado.
Além da precariedade na infraestrutura, a interferência de agentes externos na educação pública intensifica os desafios enfrentados nas escolas. Fundações privadas, ONGs e “especialistas” de áreas como economia, jornalismo, direito etc. – frequentemente sem experiência prática no ambiente escolar – moldam a educação com uma visão distante das reais necessidades dos alunos e das condições das escolas. Ignorando a experiência dos professores e o contexto social dos estudantes, essa interferência transforma a educação em um produto de mercado, desvirtuando seu propósito essencial e perpetuando uma estrutura educacional desconexa das demandas concretas da escola pública.
Outro exemplo de ingerência enfrentado pelos professores foi o movimento “Escola Sem Partido”, criado para combater uma suposta doutrinação ideológica, mas que, na prática, era uma tentativa de cercear a independência dos docentes para limitar sua liberdade de cátedra. Na esteira de suas consequências, hoje, medidas como a vigilância semanal dos diretores sobre o trabalho dos docentes, implementada pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, reforçam o controle sobre os professores, exigindo relatórios de desempenho e dificultando a autonomia em sala de aula.
Neste ano, na cidade do Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes, logo após vencer a eleição, enviou à Câmara um projeto que, entre outras medidas de caráter neoliberal, amplia a carga horária dos professores, reduz seu tempo de planejamento, divide suas férias em dois períodos distantes (15 dias em junho e 15 dias em janeiro) e extingue direitos históricos, como a licença especial. É inconcebível que um professor do ensino básico permaneça na mesma posição após anos de serviço público, sendo esta uma carreira de Estado que exige tempo de experiência e formação especializada para a ascensão. Não surpreende, portanto, que os profissionais da rede municipal estejam se mobilizando para uma greve que promete ser histórica, em resposta ao desprestígio e ao desrespeito demonstrado pelo atual prefeito do Rio de Janeiro.
Diante de um cenário tão hostil, pergunto-me quem desejará seguir a carreira docente, especialmente na rede pública, onde a profissão está cada vez mais precarizada. Se nada mudar, continuaremos a perder talentos valiosos para outras áreas, comprometendo o futuro da educação no Brasil.
*Professor de História, mestre em História pela UFF e doutor em História Econômica pela USP