Sempre houve feira em meu caminho

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Mais uma edição da coluna “A César o que é de Cícero” do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista.

E tem feira aí também?




Dei-me conta recentemente que sempre morei perto de uma feira. Foi assim em Vila Isabel, na Rua Barão de Cotegipe, cuja feira de sábado preenchia as minhas madrugadas de sexta. Eu acordava com os telecotecos da montagem das barracas. Com a proximidade do Carnaval, dava para ouvir de onde eu morava os ensaios da Vila Isabel, que à época eram no campo do América. E de vez em quando eu ouvia os atabaques e os tererês de um centro espírita das redondezas: “Vai, César, ser Cícero na vida”.

Era muita informação sociológica para uma criança só…

Depois da feira, lá pra tardinha, a gente jogava futebol na rua, parando para a passagem dos carros. Coisa fina, com muito carro tirando fino de moleque instante sim, instante não.
Aquele “Parou, parou” era a senha para a interrupção do jogo, que , creio, levava menos tempo que o que se leva com o VAR hoje.

Se ninguém foi atropelado, foi pela mais absoluta sorte.
Meus pais me tiraram de Vila Isabel em direção ao Engenho Novo. A frase anterior indica um pouco do meu contentamento com a mudança.

No Engenho Novo, a feira era pertinho. Ficava na Rua Porto Alegre. Era modesta, mas dava pra tomar um caldo de cana com aquele pastel de carne que, avant la lettre, cumpria certo distanciamento social: um grãozinho de carne aqui, outro acolá, como diz a piada.

Na Praça Seca, havia uma feira menor praticamente na minha rua, na Rua Doutor Bernardino, na quarta ou na quinta. Rua importantíssima, com Biblioteca Popular e tudo.
É claro que frequentei o espaço, como não? Lembro-me de ter lido Cortázar ali, tanto “O jogo da amarelinha” quanto um livro de contos do qual não me recordo o nome.

E, havia outra feira, grande, lá na Rua Barão, no domingo. Essa era boa devido à venda casada. A gente fazia uma caminhada pra tirar o peso da consciência e caía dentro da cerveja.
Atualmente, moro na cidade Beija-flor (Nilópolis), em uma rua perpendicular à Avenida Mirandela, que é a rua da feira dessas bandas.

Antes da Covid-19, era batata: acordava cedo, e com dinheiro trocado, uns vinte caraminguás, ia na feira a pé comprar suco de laranja, água de coco, tapioca, biscoito para as crianças. Era o tal do café da manhã reforçado.

Confesso: até de olho na Kombi de revistas e livros usados eu ficava. Sabe como é que é, de repente, você encontra, além da “Playboy” da Maitê Proença, aquele livro que faltava da série “Vaga-Lume” ou dos “Pensadores” ou algum clássico da literatura nacional e internacional, de capa dura e letras douradas da Abril Cultural.
Para essas coisas, eu tenho um olhar tão aguçado quanto o dos caçadores de relíquias:Fala aí, parceiro. Por acaso, tu tem aí o vagalume da Maitê Proença?

Como se misturam as emoções! Mais raramente, eu levava a família pra saborear um churrasco a quilo em um bar que espalhava inúmeras mesas sobre a Praça dos Estudantes. O churrasco e o boteco são independentes, cada um faz a sua parte.

Acompanhavam-me, além da família, as Brahmas geladas, consumidas com a moderação do domingo e da grana. Tinha até música ao vivo, com levada à maneira de Bebeto e tudo.
A covid-19 me afastou da feira da Avenida Mirandela por quase um ano. Voltei aos poucos, com medo, não fui um daqueles que retomaram a rotina de domingo quando ela foi reaberta, depois de cumpridos os três primeiros meses de quarentena, intervalo no qual tudo por aqui realmente ficou fechado, em cumprimento à risca das recomendações sanitárias.

Digo mesmo com pesar, porque uma feira é mais do que necessária: ela é o lugar dos batalhadores, desta suposta nova classe social que o Jessé Sousa apontou. E eu gosto de passar despercebido pelos lugares.
Enfim, quem pensa em qualidade dos produtos, em preço ou em rigorosos padrões de higiene, não está pegando o espírito da coisa.

Deve-se ir à feira como quem vai a uma exibição de coisas nossas, de gente cuja necessidade refinou o espírito, o gracejo, a bom humor com e sem finalidade e o trabalho duro.
O espírito popular bate ponto na feira. Talvez ele não saiba, mas ele é capaz de nos salvar.
Pois é, a feira é um dos cantos da rua.

Imagem do post: pintura de Antony Holdsworth

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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