Senhora de duas pandemias

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Por Patricia Andrade, compartilhado de Projeto Colabora – 

Sobrevivente da Gripe Espanhola, dona Elba, 110 anos, enfrenta a covid-19 com lucidez e coragem, como narra sua neta, num emocionante relato de luta e vitórias

Dona Elba com a neta, Patricia Andrade, em encontro antes do isolamento: histórias em torno do café, do chimarrão e do insperarável vinho do Porto

No tempo em que o tempo era outro tempo, e minha avó Elba, hoje com 110 anos, tinha apenas 8, a “Espanhola”, como ela chama, assolou o mundo. Ela, que morava na estância Lagoa Verde, na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, conta que mais ou menos um mês após o dia 2 de maio de 1918, quando nasceu Maria, a caçula de seus sete irmãos, sua mãe, Dindinha, que acabara de parir, foi acometida pela doença.




Com o estado de saúde se agravando dia a dia, meu bisavô, Benício, resolveu chamar um médico, talvez o único, da cidade mais próxima, Santana do Livramento. Não era tarefa fácil: sete horas a cavalo para ir e mais sete pra voltar. A chegada do doutor Beltrão foi cercada de expectativas. Mas, depois de examiná-la e diagnosticá-la com uma forte congestão pulmonar, ele a desenganou.

Sem ter mais o que fazer, minha avó lembra que a avó dela, Manoela, a Nenela, tentou reanimar a filha com xícaras de leite quente, a grande sustentação daquela cultura da pecuária, em que os alimentos vinham das hortas e dos currais. Mas de nada adiantou. “Ela estava morta”, recorda a minha avó.

Minha avó garante que nunca viu nada parecido com o que estamos vivendo nessa pandemia. Acha o atual presidente um mal educado, sem compostura, e se preocupa muito com o aumento do desemprego que está por vir. Um dia, me confessou que, se no seu tempo, mulher pudesse escolher profissão, gostaria de ser comentarista econômica.

Patricia Andrade
Jornalista e roteirista

Foi então que alguém pensou num senhor das redondezas adepto da medicina homeopática, fundamentada na Lei dos Semelhantes, na qual acredita-se que as mesmas substâncias naturais capazes de desenvolver sintomas e doenças têm o poder de curá-las. Na época, vale ressaltar, não existiam antibióticos.

Esse homem passou a cuidar da minha bisavó, e ela foi se animando a ponto de conseguir levantar da cama e ser levada, numa charrete coberta, a Montevidéu, onde havia mais recursos do que em Porto Alegre. Lá, recebeu aplicações diárias de ventosas e mochas – chamadas pela minha avó de pontas de fogo – e se curou. “Graças a Deus, ela viveu muito, morreu com 102 anos e meio”.

A homeopatia foi a grande herança deixada pela minha bisavó Dindinha. Ela tinha uma caixa de madeira no quarto, dividida em pequenos nichos, nos quais os remédios ficavam separados por princípios ativos. E foi com eles que ela tratou os sete filhos, os netos que criou e os bisnetos. E suas três meninas, Gessi, Elbinha e Maria foram, como ela, mulheres centenárias.

Hoje, minha avó vive bem longe da Estância Lagoa Verde, mais precisamente em Copacabana, que ainda era a Princesinha do Mar quando ela chegou casada e com dois filhos. Mora no mesmo apartamento há 70 anos e, infelizmente, não pode mais caminhar pelas ruas, ir ao supermercado e ver gente, algo que adorava. Sua rotina não é tão divertida quanto na época em que passava as tardes e noites jogando biriba e pontinho com uma turma enorme de amigas, da qual só ela sobreviveu.

Lúcida, ainda controla a casa, quer tudo do seu jeito e faz as refeições à mesa como manda o figurino. Sempre adorou comer mas dieta, apenas a natural da vida, uma alimentação mais pastosa, que foi se impondo com a idade. Foi para o hospital uma vez, quando caiu e quebrou o fêmur aos 105 anos. Após a cirurgia, surpreendentemente, voltou a andar.

Minha avó adora acompanhar as notícias, tem opinião sobre tudo e garante que nunca viu nada parecido com o que estamos vivendo em meio a essa pandemia. Acha o atual presidente um mal educado, sem compostura, e se preocupa muito com o aumento do desemprego que está por vir. Um dia, me confessou que, se no seu tempo, mulher pudesse escolher uma profissão, gostaria de ser comentarista econômica.

Sua grande alegria são os bisnetos, Luiza, Bel, Bruno e Rita. Sempre carinhosa, dá conselhos sobre namorados às mais velhas e entra nas brincadeiras dos mais novos. E como, no momento, não pode estar perto deles, se conforma com a comunicação virtual, mesmo não enxergando nem ouvindo tão bem. Mas se esforça por seus “gurizinhos”.

No decorrer da vida, minha avó sempre nos contou histórias de outros reinos antes de dormir e reais nos fins de tarde, enquanto tomava café, chimarrão ou o seu inseparável vinho do Porto. Tudo em detalhes, com muita verdade e delicadeza. Minha avó é a melhor contadora de histórias que conheci. Seja pela imaginação ou pela memória, é assim que ela atravessa o tempo. E, seja qual for o tempo, é assim que eu a levo sempre comigo.

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