Por Joana Oliveira, compartilhado de El País –
Um bebê que nasce em Marsilac, no extremo sul da cidade, tem 23 vezes mais chances de não chegar aos 12 meses do que outro de Perdizes, na zona oeste
Ingrid, de seis anos, corre pelo barro para pegar sua boneca favorita dentro de casa. São 15h de uma quarta-feira, mas, para ela, o ano escolar não começou. Enquanto seu irmão, Moisés, de quatro anos vai à creche, Ingrid fica em casa porque não conseguiu uma vaga na escola de Engenheiro Marsilac (distrito no extremo sul de São Paulo) que fica na rua de trás da sua. “Ela já perdeu uma semana de aula, porque aqui não tem vaga. Mandaram ela para a [Escola Municipal] José Duarte, que fica em Guaianases, e eu não tenho condição de levá-la até lá. São dois ônibus e mais de duas horas para chegar”, lamenta a mãe, Cristiane Ramos, de 34 anos.
Ingrid mora com os pais e o irmão menor em uma pequena casa no fundo de um terreno que pertence à avó —cuja moradia fica na parte da frente do local—. No quintal lamacento, a menina divide espaço com um pequeno galinheiro improvisado e uma casinha compartilhada por dois cães. Marsilac, apesar de fazer parte da maior cidade do país, é assim: lembra a zona rural de um interior, com muitas ruas sem calçamento ou iluminação. E, apesar das dificuldades, Ingrid e seu irmão já superaram uma das estatísticas mais cruéis da região: um a cada 40 bebês que nascem em Marsilac não chega a completar um ano de idade. Uma criança nascida no distrito tem 23 vezes mais risco de morrer antes de completar os 12 meses do que outra de Perdizes, na zona oeste da capital paulistana. O dado é do Mapa da Desigualdade na Primeira Infância, divulgado na última quarta-feira pela Rede Nossa São Paulo, que considera também a taxa de mortalidade infantil da terra indígena Tenondé Porã, com cerca de 2.000 pessoas, localizada entre os distritos de Marsilac e Parelheiros.
“Aqui mal tem farmácia! E para marcar consulta tem que esperar mais de um mês. Se a criança tem alguma coisa muito grave aqui, morre mesmo, porque o socorro não chega”, diz dona Maria Rosa, de 61 anos, avó de Ingrid. Ela conta que criou os três filhos em Marsilac e, de lá para cá, pouca coisa melhorou. “Aqui só é bom para quem tem carro”, diz. “Já aconteceu de eu ter que chamar um ônibus da prefeitura com urgência para levar o pequeno, que estava doente, para Parelheiros”, acrescenta Cristiane.
Ingrid está na lista de intenção de transferência para a escola que fica atrás de sua casa, mas, enquanto espera para voltar aos estudos, não dispõe de muito lazer. Não há parquinhos ou praças em Marsilac. Ao lado de sua casa, um campinho de futebol ao ar livre está trancado com cadeado há meses. “Agora, o único lugar em que minha neta pode brincar é aqui no quintal. Minha neta não sabe o que é um parquinho, nunca viu. Não pode brincar na rua em frente de casa, onde passa moto toda hora, eu tenho que ficar de olho. E não tem segurança nenhuma. Outro dia, estupraram uma menina aqui do lado”, reclama a avó.
Outros moradores de Marsilac comentaram com a reportagem sobre uma “ONG” —na verdade, um Centro de Convivência para Crianças e Adolescentes, da prefeitura— que oferece atividades para crianças de 5 a 15 anos. O local, no entanto, que conta com uma brinquedoteca e uma sala de vídeo, está fechado desde o final das aulas de 2019, segundo informou o caseiro do Centro. As duas quadras de esportes do lugar parecem abandonadas, com problemas de conservação. Em uma delas, uma cesta de basquete enferrujada e quebrada está jogada a um canto.
Saúde
Com 2,39 UBSs (Unidades Básicas de Saúde) para cada 10.000 habiantes, Marsilac tem a melhor proporção da cidade de São Paulo, cuja média de é de 0,4 UBS para 10.000 habitantes. Faltam, no entanto, médicos e hospitais.
Jéssica da Silva, de 29 anos, passou a peregrinar todos os dias para o hospital mais próximo, no distrito vizinho de Parelheiros, depois que a filha Heloísa, de quatro anos, foi diagnosticada com um problema neurológico que afeta seu desenvolvimento. “Não tem pediatra por aqui, ainda mais para crianças com necessidades especiais. Ela faz as consultas em Parelheiros e vai à creche lá também, porque lá tem a EMEI [Escola Municipal de Ensino Infantil] mais próxima”, conta. Jéssica lembra que fez todo o pré-natal na UBS Emburá, uma das unidades de Marsilac, mas o déficit cognitivo de Heloísa só foi diagnosticado há um ano, durante uma consulta particular.
O Mapa da Desigualdade na Primeira Infância aponta que 18% dos nascidos vivos em Marsilac são de mães menores de 19 anos —o que equivale a um em cada cinco bebês—, enquanto a média da cidade é de 10%. Em comparação com Moema [zona nobre de São Paulo], onde apenas 0,35% das crianças nascidas são de mães adolescentes, o dado representa uma desigualdade de 53 vezes. “A gravidez na adolescência coloca em risco a vida da criança, já que ela tem uma mãe pouco experiente, e atrapalha o desenvolvimento social da própria mulher, devido à evasão escolar e à dificuldade ou impossibilidade de entrada no mercado de trabalho”, comenta Carolina Guimarães, coordenadora da Rede Nossa São Paulo e uma das responsáveis pelo levantamento.
“O que pega muito aqui é conseguir consulta para gestante”, diz Bruna Nascimento, de 25 anos, com Oliver, de um mês, no braço. Ela acaba de subir, ofegante, uma das ladeiras íngremes de Marsilac em direção ao CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) em busca de uma consulta de revisão para o pequeno. “Está difícil conseguir uma consulta, tem muita fila de espera. Nós mesmos estamos há semanas esperando”, diz ela, que também é mãe de uma menina de 7 anos. Como diz Maria Rosa, avó de Ingrid, “com política pública”, mais bebês como Oliver podem “superar” as tristes estatísticas do distrito mais ao sul de São Paulo.