ICL Notícias recorda a campanha golpista
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Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Por Chico Alves
Muita gente fez parte da trama que culminou na tentativa de golpe de Estado no Brasil em 8 de janeiro de 2023. Militares, deputados, senadores, caminhoneiros, líderes neopentecostais, empresários e, claro, centenas de pessoas que invadiram e depredaram as sedes dos três Poderes. Todas elas estão ligadas ou foram estimuladas por um personagem central, sem o qual essa ameaça à democracia não teria ocorrido: Jair Bolsonaro.
“Não tenho a menor dúvida de que Bolsonaro foi o grande mandante”, diz o advogado Marco Aurélio da Carvalho, criador do grupo Prerrogativas e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia. “Óbvio que o mentor, aquele que planejou, que inspirou, que articulou foi Bolsonaro”, concorda o jurista Fernando Fernandes.
Também autoridades do mais alto escalão da República compartilham da convicção de que o ex-presidente é o principal responsável pela intentona golpista ocorrida há exatamente um ano.
O presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), acredita que Bolsonaro pecou por omissão. “O presidente Bolsonaro, nesse sentido, poderia ter evitado esse mal maior que foi o 8 de janeiro. Embora, repito, eu não queira ser leviano e responsabilizá-lo juridicamente por esses atos. Inclusive, isso cabe à Justiça Eleitoral”, disse Pacheco, em entrevista à CNN.
Já o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), considera que a culpa de Bolsonaro é mais grave. “A responsabilidade política (de Bolsonaro) é inequívoca. Eu acredito que até mesmo os militares não retiraram esses invasores, esses manifestantes, por conta de algum estímulo que havia por parte da Presidência da República”, declarou Gilmar, em entrevista à agência de notícias AFP.
Além disso, a CPMI realizada no Congresso considerou o ex-presidente como autor “seja intelectual, seja moral” da tentativa de golpe.
Isso quer dizer que Bolsonaro será punido por planejar e executar o mais grave ataque à democracia brasileira desde o golpe militar de 1964?
“Eu não sei se nesse caso as provas indiciárias são suficientes (para a condenação), mas eu imagino que sim. Vamos ver o que vão falar os demais envolvidos”, comenta Marco Aurélio Carvalho. “Não acho que os personagens que atuaram de forma decisiva teriam feito isso se Bolsonaro tivesse feito uma fala de contenção. Essa inércia talvez seja o suficiente para colocá-lo no centro do debate, não sei se para responder criminal ou civilmente. Inclusive pelos danos ao patrimônio, ao Erário”.
Fernando Fernandes acredita que Bolsonaro vai ter punição exemplar: “Acho que ele irá responder pelos seus atos e que será preso”.
O ICL Notícias relaciona a seguir alguns dos muitos movimentos que Jair Bolsonaro fez publicamente para semear na cabeça de seus seguidores a desconfiança quanto às urnas eletrônicas, com uma sequência de informações mentirosas que o posto de presidente da República ajudou a amplificar.
Além disso, Bolsonaro estimulou os apoiadores a se mobilizarem contra a ameaça fictícia. Em uma reunião ministerial, em abril de 2020, chegou a recomendar, aos berros, que a equipe ministerial liberasse o porte de armas para a maior quantidade possível de brasileiros, para que pudessem reagir a qualquer ameaça de ditadura (que, para o ex-presidente, pode ser qualquer grupo que se oponha a suas vontades).
Se alguém ainda tem dúvida da participação de Bolsonaro nessa trama, a cronologia a seguir mostra alguns fatos (há muitos outros) que indicam: o extremista que governou o Brasil foi o mentor do 8 de Janeiro.
Acompanhe:
SETEMBRO DE 2018
Tocador de vídeo
Dez dias depois de levar uma facada durante a campanha presidencial, em Juiz de Fora (MG), Jair Bolsonaro fez uma live no leito do hospital Albert Einstein, em São Paulo, no dia 16 de setembro de 2018. Naquela ocasião, ele começou a ofensiva para desacreditar o processo eleitoral brasileiro.
“O receio, em tese, é que em 2018 não apenas tenhamos o voto fraudado para presidente, temos aí o voto para deputado federal”, mentiu Bolsonaro, do leito. “Porque da mesma forma, na maioria das seções do Brasil, quem aparelhou o TSE, com todo respeito que eu tenho aos senhores ministros, que não têm conhecimento de informática. Não é porque uma pessoa é ministro que sabe de tudo. O TSE tem os programas que podem inserir via fraude uma média de 40 votos para o PT na maioria das seções do Brasil”.
OUTUBRO DE 2018
No primeiro turno, no dia 7, um vídeo mentiroso, que mostrava uma urna eletrônica supostamente autocompletando votos em Haddad, circulou nas redes sociais, compartilhado por aliados bolsonaristas como Flávio Bolsonaro. A Justiça Eleitoral desmentiu a publicação antes mesmo de encerrada a votação e provou que a gravação continha sinais de manipulação. Apesar disso, Bolsonaro amplificou essas suspeitas sem provas.
“Recebemos muitas críticas de urnas que tiveram problemas, e não foram poucas, se votava para governador e depois se encerrava simplesmente o voto naquela pessoa. Se apertava o um e no final já aparecia o candidato da esquerda”, sustentou, divulgando informação sem provas.
DEZEMBRO DE 2018
Bolsonaro discursou de forma remota no dia 9 de dezembro, na reunião da Cúpula Conservadora das Américas, realizada nos Estados Unidos. O presidente eleito disse que não é porque “ganhamos que devemos confiar nesse processo de votação”. Também destacou que um dos primeiros projetos de seu governo seria apresentar uma “proposta de mudança de votação no Brasil”.
OUTUBRO DE 2019
Ao fim das eleições na Bolívia, Evo Morales foi reeleito presidente e Bolsonaro levantou suspeitas de fraude na eleição daquele país para indiretamente lançar mais dúvidas sobre o processo eleitoral brasileiro. “Nós temos a obrigação de ter um sistema de votação confiável por ocasião das eleições. (…) É para evitar um problema como houve na Bolívia.”
MARÇO DE 2020
Em uma fala em encontro com empresários e simpatizantes, na Flórida, nos Estados Unidos, Bolsonaro foi mais ousado na acusação contra as urnas eletrônicas de seu próprio país: “Eu acredito que, pelas provas que tenho nas minhas mãos, que vou mostrar brevemente, eu fui eleito em primeiro turno, mas, no meu entender, houve fraude. E nós temos não apenas uma palavra, nós temos comprovado, brevemente eu quero mostrar, porque nós precisamos aprovar no Brasil um sistema seguro de apuração de votos.” Como se sabe, essas provas nunca apareceram.
ABRIL DE 2020
No dia 22, depois de publicar na véspera uma portaria que elevou a quantidade de munições que civis com posse e porte de armas podem comprar, o presidente Jair Bolsonaro defendeu em reunião ministerial que o povo se armasse para evitar uma ditadura. O volume autorizado, que era de 200 cartuchos por ano, passou a ser de até 300 unidades por mês, a depender do calibre do armamento. O conteúdo da reunião ministerial foi divulgado nesta sexta-feira por decisão do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF).
“Olha, eu tô, como é fácil impor uma ditadura no Brasil. Como é fácil. O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua. E se eu fosse ditador, né? Eu queria desarmar a população, como todos fizeram no passado quando queriam, antes de impor a sua respectiva ditadura. Aí, que é a demonstração nossa, eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje e que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta! Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura!”, disse Bolsonaro na reunião, aos berros.
JANEIRO DE 2021
No dia 7, Bolsonaro usou o episódio da invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, por simpatizantes de Donald Trump, que perdeu as eleições, para fazer ameaça de que o mesmo poderia ocorrer no Brasil.
“O pessoal tem que analisar o que aconteceu nas eleições americanas agora, basicamente qual foi o problema, a causa dessa crise toda: falta de confiança no voto. Lá, o pessoal votou e potencializaram o voto pelos Correios por causa da tal da pandemia e teve gente que votou três, quatro vezes. Mortos votaram, foi uma festa lá. Ninguém pode negar isso daí, então a falta de confiança levou a esse problema que está acontecendo lá. E aqui no Brasil se tivermos o voto eletrônico em 22 vai ser a mesma coisa, a fraude existe”, apontou.
JULHO DE 2021
No dia 7, Bolsonaro defendeu o voto impresso e usou tom ameaçador em entrevista à Rádio Guaíba. “Eles vão arranjar problemas para o ano que vem. Se este método continuar aí, sem, inclusive, a contagem pública, eles vão ter problemas. Porque algum lado pode não aceitar o resultado. Este algum lado, obviamente, é o nosso lado, pode não aceitar o resultado”, disse o presidente em entrevista à Rádio Guaíba. Ele disse que apresentaria provas de que houve fraudes nas duas últimas eleições presidenciais e afirmou falsamente que, na disputa entre Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB) em 2014, foi o tucano quem venceu o pleito.
No dia 8, o então presidente mais uma vez lançou falsas suspeitas sobre as urnas. “Eleições no ano que vem serão limpas. Ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições”, declarou a apoiadores, em frente ao Palácio da Alvorada. A fala foi transmitida por um site bolsonarista.
No dia 9, Bolsonaro fez um dos mais duros ataques ao ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e à urna eletrônica. Chamou Barroso de “idiota” e “imbecil” ao falar sobre os argumentos do magistrado contra a aprovação do voto impresso. A declaração foi feita a apoiadores, na saída do Palácio da Alvorada. “Se nós queremos uma maneira a mais para mostrar transparência, por que o Barroso é contra? Ministro do Supremo Tribunal Federal… uma vergonha um cara desses estar lá”, disse.
A seguir, além de continuar a desqualificar Barroso, fez uma convocação aos seus apoiadores. “Um cara desses tinha que estar em casa”. Um bolsonarista o interrompe dizendo que, na verdade, Barroso deveria estar na cadeia. O presidente continua: “Se bobear, num outro lugar. Nós não podemos deixar acontecer as coisas para depois tomar providências. Recado para os brasileiros: lutem pela sua liberdade. Não queiram, que um homem sozinho resolva os seus problemas.”
“O que está em jogo, pessoal é o nosso futuro e a nossa vida. Não pode um homem querer decidir o futuro do nosso Brasil na fraude”, acrescentou. “Já tá certo quem vai ser presidente o ano que vem. A gente vai deixar entregar isso? Queremos transparência. Acho que, a cada dia que passa, vocês estão se conscientizando mais”
No dia 29, Bolsonaro fez uma live em que apresentaria provas de que é possível fraudar as urnas eletrônicas. Ao lado do ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, disse que há “indícios fortíssimos ainda em fase de aprofundamento que nos levam a crer que temos que mudar esse processo eleitoral”. Mas acabou admitindo que não conseguiria provar o que estava dizendo: “Não temos provas, vamos deixar bem claro, mas indícios”. O chefe do Executivo não apresentou elementos robustos relacionados a irregularidades nos processos eleitorais. “Não tem como se comprovar se as eleições não foram ou foram fraudadas”, disse. Ele estava acompanhado de Eduardo Gomes, assessor especial da Casa Civil e coronel da reserva. Durante a transmissão, atacou o então
presidente do TSE, ministro Roberto Barroso. “Por que a ferocidade do presidente do TSE em não querer discutir e não querer falar sobre uma contagem pública de votos, ou sobre uma forma de auditá-los?”, questionou.
AGOSTO DE 2021
Na noite do dia 12, Bolsonaro disse em uma live que uma suposta invasão criminosa aos sistemas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2018 teria sido financiada por partidos de esquerda. Segundo o chefe do Planalto, os hackers teriam acessado documentos confidenciais da Corte, fraudaram as urnas eletrônicas e retiraram 12 milhões de votos do chefe do Executivo.
Ele próprio admitiu não ter provas da acusação. “A história ou estória que chega para a gente, era que o acordo com esses hackers seria de desviar 12 milhões de votos do candidato Bolsonaro. Não tenho provas e não sei se é verdade. É história que estamos apurando. Mas esses 12 milhões de votos não foram suficientes para o outro lado vencer”, disse o presidente, durante a sua live semanal.
SETEMBRO DE 2021
No 7 de Setembro, o presidente bradou à multidão muitas de suas mentiras sobre a urna eletrônica. Disse, por exemplo, que o sistema não e auditável, o que é falso. E repetiu que o processo eleitoral não seria seguro. “Não podemos admitir um sistema eleitoral que não oferece qualquer segurança por ocasião das eleições”, disse, de cima de um carro de som na Avenida Paulista.
MAIO DE 2022
Dia 16: em meio ao avanço da inflação, Bolsonaro discursou aos berros, durante um evento de empresários do setor de supermercados, em São Paulo, e manteve alto o clima de golpismo do país. “Podemos ter outra crise. Podemos ter umas eleições conturbadas. Imagine acabarmos as eleições e pairar, para um lado ou pro outro, a suspeição de que elas não foram limpas?”.
JULHO DE 2022
O então presidente fez no dia 18 reunião com embaixadores no Palácio da Alvorada em que repetiu suspeitas infundadas sobre as eleições de 2018 e a segurança das urnas eletrônicas. Bolsonaro baseou a apresentação em um inquérito aberto pela Polícia Federal quatro anos antes, com autorização do STF, sobre a invasão de um hacker ao sistema do TSE. O tribunal informou que esse acesso foi bloqueado e não interferiu em qualquer resultado. Bolsonaro também citou, sem provas, a tese de que o voto impresso seria mais seguro que as urnas eletrônicas — utilizadas desde 1996 sem qualquer caso confirmado de fraude ou adulteração.
A reunião foi transmitida pela TV Brasil, emissora estatal. (A realização desse encontro foi o principal motivo que levou Bolsonaro a se tornar inelegível).
DEZEMBRO DE 2023
Pouco antes de viajar para os Estados Unidos sem passar a faixa presidencial para seu sucessor, Bolsonaro aparece para os manifestantes que o aguardavam à porta do Palácio da Alvorada. O então presidente tinha lágrimas nos olhos, assim como a primeira-dama, Michele, que se ajoelhou no gramado em meio à oração com os simpatizantes.
JANEIRO DE 2023
Na tarde do domingo (8), o Brasil e o mundo assistiram, estarrecidos, a invasão de centenas de vândalos nas sedes dos três Poderes, no Distrito Federal – a maioria deles vestidos com a camisa amarela da seleção brasileira. O mesmo uniforme que virou marca nas manifestações a favor de Jair Bolsonaro.
A depredação que se seguiu foi acompanhada por milhões de pessoas pela TV.
Inclusive por um espectador que, mesmo vendo tudo dos Estados Unidos, tinha total ligação com aquele atentado à democracia que se desenrolava a muitos quilômetros de distância: Jair Messias Bolsonaro.