Sérgio Roberto de Araújo

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, homenageia uma grande figura da vida de nosso cronista, o senhor Sérgio Roberto de Araújo. O professor César nos dá mais uma aula de sensibilidade, de emotividade com este texto.

Ah 1: o Gigante do Sul, a quem o César se refere no final do texto, é o compositor e cantor gaúcho Marco Aurélio Vasconcelos, grande amigo do blog que se tornou amigo do nosso cronista via estas mensagens emotivas digitais.




Ah 2: o senhor Sérgio não é meu parente, mas poderia ter sido por afetividade.

Ah 3: você pode se perguntar o que tem a ver a frase de Clarice Lispector com o texto do César. Leia e veja que ele a acolheu (Washington Araújo).

“Seu Sérgio Roberto de Araújo era um homem engraçado. Baixinho e forte, parecia o Dino, o pai de família do seriado “Família Dinossauro”. Era cameraman da Globo. E como se não bastasse, era gaúcho de boa cepa, de falar “Bah!” sem parecer artificial, de saber fazer churrasco, de beber vinho de garrafão de uma maneira que só os gaúchos como ele sabem fazer. Eles apoiam o garrafão nos ombros, uma coisa linda.

De vez em quando, ele jogava buraco sozinho. Ele mesmo sabia que era um pouco chato, turrão. Não importava se bebesse muito ou pouco, a família arrumava um jeito de dizer que ele estava meio alto, pedia para parar. Era uma situação meio tensa e recorrente. Eu me casei com a filha dele, para resumir a história.


Seu Sérgio era um dos homens mais emotivos que conheci. Estava sempre a prantear de alegria ou de tristeza. Grandes gotas salgadas. Quando ele operou o coração, ficou um tempo sem beber. Ficou pianinho, como diziam. Mas depois voltou. Já não era mais cachaça nem cerveja. Era vinho de garrafão Galiotto.

Isso já não era nem mais no apartamento da rua Moreia, em Inhaúma, onde a família morava. Já era em Iguaba, pequena cidade da Região dos Lagos, no Rio de Janeiro. Na casa de praia, ele tinha finalmente o que hoje em dia se costuma chamar de espaço gourmet: a churrasqueira, a bancada. Ali sim era churrasco. Deus salve a costela!


É que ele se aposentou na Globo, comprou um terreno e fez uma casa boa, espaçosa. O apartamento da Moreia, de dois quartos, era pequetito para tanta gente. Quase não havia privacidade.


Meu Deus! Eu me lembro da viagem de despedida, acho que foi para a Argentina. Lembro-me dele chorando que nem criança com as homenagens que recebeu. Parece que momentaneamente ele esquecera que tinha sido sempre preterido, que nunca viajou para cobrir uma Copa do Mundo.
O seu sonho era cobrir uma Copa; mas ele era chato, turrão.


Ele tinha um Del Rey verde-escuro, tipo pastilha Garoto. Era o mais estranho dos carros, grande demais, com uma suspensão estranha, meio mole. Ele trazia da Globo resmas e resmas de papel A4 para a gente usar de rascunho. Já usadas. Eram as falas dos âncoras dos telejornais, acho que era uma coisa como o teleprompter da época.


Fiquei na família até completar meus trinta anos. Entrei numa bad trip, fiz besteira e me separei da mulher de uma maneira desonrosa. Tive que começar tudo de novo, degrau por degrau. Acho que ainda estou subindo ou descendo, sei lá.


Em off: esta moça e eu tínhamos estudado muito para chegarmos a ser alguém na vida por intermédio de nossos próprios esforços. Quantas vezes deixamos de sair para por os fichamentos em dia, fazer leituras, trocar ideias? Enfim, é a vida.


Uns dois anos depois da separação, eu estava com uma namorada passando uns dias numa cidade próxima de onde seu Sérgio morava com a dona Miriam (se pronuncia Miriã!). Eu decidi de súbito ir visitá-los, o que foi um sinal de imensa coragem de minha parte.


Peguei uma van e fui bater naquela casa que conhecia bem, que parecia não ter mudado. Entrei no túnel do tempo e chorei copiosamente. Não sei se lhes disse que me sentia culpado mais por ter traído a confiança dele do que qualquer outra coisa. Amores vão e vêm, acabam, renascem. Confiança já é outro papo.


Seu Sérgio me consolou como a um filho. Eu aceitei sem encabulações. Creio que preguinho eu não joguei naquele dia, mas dei umas boas talagadas no velho Gallioto. Para o jogo de buraco, ele sempre teve os amigos imaginários.


Não o vi mais. Essa moça, sua filha, se vingou de todas as besteiras que eu fiz de uma maneira cruel, crudelíssima. Simplesmente ela não me disse que seu pai tinha morrido. Não me disse nada, ninguém me disse nada, não fui informado sobre o enterro, não pude prestar as minhas últimas homenagens a alguém que fez parte da minha vida.


Fiquei sabendo do ocorrido por intermédio de um amigo em comum, que deu com a língua nos dentes. Tudo isto me fez ligar imediatamente para ela, para em seguida pegar uma condução para o centro da cidade para encontrá-la.


Foi em um bar no centro do Rio que nos falamos pela última vez. Eu, manipulador, ainda disse à moça que ela deveria ter me avisado do pai dela. Não, não deveria.


Quarta-feira foi dia de Internacional e Fluminense, pelas semifinais da Libertadores. Qualquer time que vencesse dará seu Sérgio, que era Colorado e Tricolor. Deu Flu.

Se eu tiver coragem, hei de comprar um Gallioto para beber à sua memória.


Talvez seja por isso, seu Gigante do Sul, que eu, mesmo sem conhecê-lo, nutra uma baita admiração por ti. É que você, sem o saber, me lembra o seu Sérgio.”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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