Sesc Pompeia: a história não é bem assim

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O Sesc Pompeia não foi inaugurado em 1982, como disse em entrevista Danilo Miranda; em novo artigo, Mouzar Benedito conta a história de como surgiu o prédio icônico de São Paulo e sua relação com a instituição.

Por Mouzar Benedito – revista Fórum, compartilhado de Construir Resistência




 Foto: Victor Hugo Mori/Iphan

No domingo, 30 de abril, saiu uma entrevista de Danilo Miranda, diretor do Sesc de São Paulo, em que outras coisas ele fala do Sesc Pompeia, “inaugurado” em 1982.

A Célia, minha mulher, estranhou: “Você diz que trabalhou no Sesc Pompeia, mas quando te conheci, em 1979, você já tinha saído do Sesc…”. Explico.

O Danilo é um grande sujeito, diretor que, como disse o teatrólogo José Celso, funciona como “ministro da Cultura em São Paulo”. Sob a direção dele, a importância do Sesc na cultura paulista se multiplicou. Gosto dele.

Mas nisso do Sesc Pompeia ter sido inaugurado em 1982, tenho uns comentários. Pode não interessar a ninguém, e muito menos o que conto sobre a história do Sesc e minha passagem por lá, mas me senti compelido a contar aqui, mesmo que seja para ninguém ler.

Antes disso, quero dizer que o Danilo Miranda e eu somos praticamente sósias, o que não me incomoda. Já disse que sou sósia de muita gente boa, incluindo o Barão de Itararé, e tem gente que me acha parecido com Bakunin e com Karl Marx. Só não gosto quando me comparam, como já disse numa palestra, com um manjado velhinho pedófilo. Perguntaram quem e expliquei: “Aquele que põe crianças no colo em todos os fins de ano”. Risadas. Gostaram da brincadeira.

Já me confundiram várias vezes com o Danilo. Uma vez foi quando a direção do Sesc se mudou para o bairro do Belenzinho, na zona leste de São Paulo. Fui lá falar com um amigo que continuava na ativa, como diretor de comunicação, e na portaria do prédio me orientaram para subir até não sei qual andar em que a saída do elevador se dava para um salão enorme e vazio, só com uma mesa com uma recepcionista. Um corredor dava para a sala do um amigo, ao lado da sala do Danilo, diretor geral.

Quando saí do elevador, a recepcionista conversava com uma funcionária, olharam para mim, a recepcionista começou a digitar alguma coisa no computador como se estivesse trabalhando, e a outra moça começou a pegar umas coisas na mesa. Percebi que pensaram que eu era o Danilo. Vi um vaso grande com uma planta num canto do salão, fui lá e, de costas para as moças, fingi que urinava no vaso. Fingi chacoalhar o pinto, virei e vi as duas com cara de espanto. Devem ter pensado: “O Danilo pirou”. Entrei no corredor sem falar com elas e cheguei rindo à sala do meu amigo.

Como surgiu o Sesc

Nas eleições de 2 de dezembro de 1945 para instalação da Assembleia Constituinte em 1946, o Partido Comunista do Brasil teve uma grande votação, e isso assustou empresários da indústria e do comércio. O resultado foi, entre outros, a criação do Sesc e do Sesi em setembro de 1946. Os empresários achavam que tinham que oferecer atividades de lazer para os empregados, para que desviassem das atividades sindicais. Na cabeça deles, valia o ditado “Cabeça vazia, oficina do diabo”. E a oficina do diabo, no caso, era a militância política. Se estivessem em atividades de lazer, os trabalhadores nem pensariam nisso.

Não foi bem isso que aconteceu, pois o Sesc, por exemplo, promove muitas atividades culturais, e cultura tende a levar a um pensamento crítico.

Unidades móveis

Lá pelos anos 1960 o Sesc tinha poucas unidades fixas, centros culturais. Para levar suas atividades de lazer, cultura e esportes ao público de cidades pequenas, criou a Unimos – Unidade Móvel de Orientação Social, com equipes de orientadores sociais que passavam 40 dias em cada cidade, levando esportes, cinema, cursos, criando grupos de teatro, treinando grupos de jovens para atividades comunitárias etc. Hoje em dia isso não teria grande atração, mas na época promovia um estardalhaço nas cidades. Simultaneamente, bem treinados, esses orientadores sociais promoviam de tudo simultaneamente. Eram 40 dias de agito sem parar.

No final de 1971, meu último ano cursando Geografia, eu tinha a maior vontade de me mandar do Brasil por uns tempos. Muitos amigos que militavam no movimento estudantil se mandaram daqui. Entre os que não se exilaram, alguns foram presos, torturados, mortos. Qualquer hora podia chegar a minha vez. Eu queria ir para o exterior, mas não era ligado a nenhuma organização de esquerda e me daria mal. Não conseguiria me sustentar, e além disso grupos de exilados suspeitavam muito de brasileiros que chegavam a eles querendo se enturmar ou pedindo apoio. Podiam ser policiais infiltrados (e às vezes eram).

Pensei em conseguir bolsa de pós-graduação para seguir para o México ou para a Itália, mas não havia bolsas para brasileiros estudantes de Geografia nesses países. No dia em que fui à reitoria da USP procurar alguma alternativa, me encontrei com um colega do curso de História que estava indo ao Sesc da rua Dr. Vila Nova fazer inscrição para concorrer a uma vaga para orientador social. “E para viajar pelo interior promovendo atividades interessantes e ganhando uma grana boa”, disse. Fui com ele e fiz a inscrição também. “Se não dá pra ir pro exterior, vou pro interior e quem sabe a polícia me esquece”, pensei. Foram mais de 4 mil candidatos para 50 vagas. O concurso teve 4 fases e acabei passando.

Em fevereiro de 1972, pedi demissão do meu cargo de técnico em contabilidade na prefeitura de São Paulo e fui pro Sesc. Mas aí me pediram o então chamado “atestado de antecedentes políticos e sociais”, mais conhecido como “atestado ideológico”, fornecido pelo Dops só para quem não ficha no próprio Dops. “Ferrou”, pensei. Mas um ex-colega da prefeitura tinha sido dono de uma boate no centro de São Paulo e, como outras, muito frequentada por policiais. Falou pra mim: “Pode deixar que eu te arrumo”. Por um precinho camarada agentes do Dops deram o atestado ideológico que me livrou a cara.

Depois de dois meses de treinamento, aprendendo dinâmica de grupo, organização de competições esportivas (desde regras de tudo quanto é esporte até preenchimento de súmulas e como fazer tabelas de torneios e campeonatos), diferenças entre lazer e ócio e muito mais, fui pro interior. Já não eram 40 dias em cada cidade. As equipes eram fixadas em regiões. A que eu integrei atendia a 16 cidades, na divisa com Minas Gerais, desde Bragança Paulista até Mococa. Nela, ajudamos a criar 16 centros comunitários, além de promover muitas e muitas atividades de cultura, esportes e recreação infantil. A gente levava um projetor de cinema, de 16mm, e eu gostava muito de passar filmes em lugares em que a população não tinha acesso a cinemas. O público se divertia com as chanchadas que eu levava, e eu também. Bolava um monte de maluquices e dava certo.

No ano seguinte mudei de região e de tipo de trabalho. Na nova equipe, o principal trabalho era organizar grupos de jovens para realizarem atividades sociais, culturais e esportivas.

No Sesc Pompeia

No final de 1973 uma coisa me incomodava. Nessas cidades em que trabalhávamos, nós nos tornávamos muito conhecidos, pois tinha a participação bem grande da população, e para os moradores cada um de nós era “o Sesc”. Se alguém tomava um porre, era o Sesc que tomou um porre. Se alguém aprontava qualquer coisa, era o Sesc que aprontou.

Considerando que nessa altura a polícia política já teria se esquecido de mim (e tinha mesmo), pedi para voltar para São Paulo. Em cada fim de ano, havia uma grande reunião de todos os orientadores sociais com a direção da Unimos e a gente preenchia um formulário perguntando onde queríamos trabalhar. Queria vir para São Paulo, e me atenderam. Mas me mandaram para a “Sibéria”… No Sesc havia lugares considerados muito ruins para trabalhar ou viver. E no início de 1974, a “Sibéria” era o Sesc Fábrica Pompeia, que funcionava num lugar onde antes era uma fábrica de geladeiras e foi comprada para se tornar mais um centro social. Começou a funcionar em 1973, mas as instalações eram um tanto precárias. Eu me tornei livre dos olhares do Dops mas era malvisto pela direção do Sesc, por não seguir muitas orientações dela. Tinha que ir pra Sibéria, né?

Só que a equipe lá era ótima, o vice-diretor era um amigo do peito, gente boa. E havia liberdade total para criar novos trabalhos.

Meu primeiro dia lá foi em 1º de fevereiro de 1974. Eu estava morando no começo da avenida 9 de Julho e, quando saí para pegar o ônibus para a Pompeia, a avenida estava vazia de carros, só pedestres: foi o dia do incêndio no Edifício Joelma, em que morreram quase duzentas pessoas. Um horror. Eu desviei o quanto pude para não passar perto do incêndio, mas vi a multidão olhando pessoas caindo do prédio em chamas. Choravam, mas ficavam ali, olhando. Achei que era um masoquismo e tanto.

Enfim, o Sesc Pompeia já existia

Meu trabalho era como diretor cultural do Sesc Pompeia. Era responsável pelo teatro, cinema (precário, num salão), cursos de madureza, kung-fu, judô, I-Shing, fotografia, expressão corporal e outros; recreação infantil (por que ficava na área cultural, nunca explicaram) e um grupo de terceira idade, novidade na época, que o Sesc incentivava. Deixei a recreação infantil por conta das recreadoras e o de terceira idade para uma estagiária de serviço social. Ela me contou que as reuniões às vezes começavam com um minuto de silêncio por um membro que tinha morrido. Se não houvesse novas inscrições, o grupo estaria fadado a se extinguir logo.

Logo no primeiro sábado, dois dias depois de chegar lá, teve um show de rock com um grupo pioneiro aqui, o Made in Brazil. Eu não era chegado a rock e nem conhecia o grupo, mas fiquei sendo responsável pelo show. Foi numa quadra com palco ocupado pela banda. Não tinha cadeiras, todo mundo ficava em pé, a maioria dançando. O cantor vestia uma roupa cheia de espelhinhos grudados, que refletiam a luz dos refletores. Dava um efeito interessante. Mas o que eu gostei foi das letras deles, minimalistas. Uma, se eu me lembro bem, resumia-se a isso: “Eu não posso comer doce / mas eu gosto de doce”. O cantor pulava, dançava e repetia isso.

Os cargos como o meu eram sempre ocupados por orientadores sociais, mas isso deixava algumas pessoas muito enciumadas. Achavam que a gente estava tomando um direito delas. Lá pelas 10h da noite veio falar comigo um funcionário que estava no Sesc Pompeia desde o ano anterior. Era um que se sentia injustiçado por não ter virado diretor cultural. Queria me ferrar.

Disse: “Estão fumando maconha e você não faz nada?”. “Maconha?”, perguntei. “Você viu alguém fumando?”. Ele insistiu: “Você não está sentindo o cheiro? Tem que chamar a polícia”. Percebi qual era a dele: chamar a polícia ali seria um desastre e o responsável seria eu, que provavelmente acabaria demitido. Falei: “Eu tô sentindo um cheiro que parece ser de cigarro de palha. Você garante que é maconha? Eu não conheço o cheiro. Se a polícia chegar aqui vai querer saber quem entende de cheiro de maconha, você topa provar isso?”. Aí ele desconversou: “Não sei… desconfio que é maconha”. E ficou por isso mesmo.

Um grupo teatral e tanto

O grupo de teatro que tinha como base o Sesc Pompeia era composto por gente muito boa. A diretora era a Célia Helena, e tinha, entre outros, Oscar Felipe, Aldo Bueno e Carlos Arena. Além de apresentar peças lá, davam cursos de teatro e expressão corporal.

No Festival de Inverno de Minas Gerais, naquele ano, o grupo fez muito sucesso em São João Del Rey e Tiradentes. Eu acompanhei.

Uma vez, Carlos Arena ia começar um curso de expressão corporal e uma moça bastante forte da área de serviços gerais disse que gostaria de fazer o curso. Falei que podia fazer, dava bolsa, não precisava pagar. Mas era em horário de trabalho, falei com a chefe dela e ela liberou.

No primeiro dia de aula, no meio da tarde, veio o Carlos Arena desesperado falar comigo: a aula estava indo bem, até que começou uma batucada para as pessoas se soltarem. Ele disse que com a batucada baixou uma pomba-gira na moça e ela saiu distribuindo porradas a torto e a direito. Acabou a aula e a carreira dela aí…

E a Sibéria muda

Com toda a liberdade de criação que tínhamos lá, fizemos muitas coisas interessantes e divertidas. Na minha área, teve muitas coisas relacionadas à cultura popular, além exposições de pintura (algumas individuais, como a de Waldomiro de Deus, e outras coletivas) e escultura. Eu era responsável pelo cinema, que era de graça para o público, e me encarregava de escolher a programação. Fiz ciclos com os melhores filmes de faroeste, as melhores chanchadas etc. Tudo o que eu mesmo queria assistir.

O certo é que o lugar se tornou conhecido entre os orientadores sociais como um lugar muito bom para se trabalhar. Tão bom que foi dos mais escolhidos na reunião de fim de ano para escolha de para onde queriam ir. Tive que concorrer com muita gente, mas continuava como um dos malditos, e perdi minha vaga lá.

E entra a Lina Bardi

Em 1976 o Sesc começou a se interessar muito pela cultura popular brasileira, graças a uma grande figura, Gláucia Amaral, e fui participar de uma equipe coordenada por ela para a pesquisa e realização de duas feiras com artesanato, grupos de congada, ciranda, bumba-meu-boi, pastores e outros, e artesãos trabalhando ali. Vieram de todo o Brasil. Isso foi em 1976 e 77.

Como gostei muito do trabalho e me dediquei a ele, fui escolhido para montar um Museu da Cultura Popular Brasileira. Já tinha muitos milhares de fotos que tiramos no Brasil inteiro, e 3.500 peças de artesanato. Queria fazer uma coisa dinâmica, com atividades de criação, reuniões musicais de emboladas, chorinho, samba etc.; oficinas funcionando todos os dias, cursos e muito mais. O Sesc Pompeia me pareceu o lugar perfeito. Propus uma reforma para acolher o museu e não aceitaram: ela incluía um bar, pois essas atividades todas requeriam um boteco, não? Nem pensar! No Sesc não se vende bebidas alcoólicas, disseram.

Mas continuei pensando nisso e procurando um lugar pro museu. Só que, por minha militância na imprensa alternativa, fui demitido no final do ano e acabaram com o projeto de museu.

Anos depois, soube da inauguração do Sesc Pompeia com nova cara, e fui lá ver. Gostei. Tinha muitas coisas parecidas com o que tinha imaginado se tivessem topado a reforma que propus, mas óbvio que a Lina nem sabia disso, nunca conversei com ela. Tinha até um barzão muito bom. E brinquei com um diretor que me dizia que em estabelecimentos do Sesc não se vendia bebida alcoólica. E aquele bar? “Bom… Mas isso foi proposta da Lina Bardi”. A ela não podia se opor. Uma coisa pode ou não pode, depende de quem propuser.

Conversando, soube que todo o projeto da arquiteta, merecedor de todos os elogios que recebe até hoje, teve como base propostas da Gláucia Amaral, a mesma com quem trabalhei nas pesquisas e eventos de cultura popular. Ela nunca teve crédito por isso. Tudo, de acordo com a versão oficial, saiu da cabeça privilegiada de Lina Bardi. Até morrer, recentemente, a Gláucia se ressentia disso.

Na entrevista de Danilo Miranda à Folha de S. Paulo, ele contou que teve uns enfrentamentos com a arquiteta, que acabou aceitando algumas coisas que não queria.

Espero que recontem a história incluindo a Gláucia.

Mouzar Benedito é escritor, geógrafo e contador de causos

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