Sete mil páginas de espanto

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A vida bandida de dois poderosos delegados da Polícia Civil do Rio de Janeiro

Por Allan de Abreu, compartilhado de Piauí

No Réveillon de 2019, Allan Turnowski e Maurício Demétrio Alves, ambos delegados da Polícia Civil do Rio de Janeiro, estavam a mais de 6 mil km de distância um do outro. Na noite de 31 de dezembro, Turnowski festejava a virada do ano no apartamento de um amigo na Avenida Atlântica, em Copacabana. Alves gozava férias com a família nas Bahamas. Mas Turnowski não se esqueceu de Alves, seu grande amigo, e já perto da meia-noite enviou uma mensagem ao colega pelo WhatsApp:




– Sempre juntos, guru – escreveu, usando o termo com que se referia a Alves. – Vamos em frente. Feliz Ano-Novo. Obrigado por tudo. Esses anos todos lutamos juntos… hora da virada – concluiu.

No dia seguinte, o governador Wilson Witzel, o breve, tomaria posse. E Turnowski se preparava para a virada: logo depois de assumir, Witzel o nomearia diretor da Polícia Civil na capital fluminense. Era sua volta por cima. Em 2011, ele saíra da corporação pela porta dos fundos, acusado de vazar uma operação da Polícia Federal contra policiais civis ligados à milícia. Ficou sete anos num cargo burocrático na Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio. Agora, no novo cargo, comandaria todas as delegacias da cidade, com exceção das especializadas, como as de sequestros, homicídios, roubos e narcotráfico.

– Vamos pôr pra ferrar ano que vem. […] Vamos rasgar – respondeu Alves, que também chamava Turnowski de “guru”.

Horas depois, já na tarde do dia 1º de janeiro, o novo diretor da Polícia Civil voltou a enviar mensagens ao amigo, desta vez celebrando o discurso de posse do presidente Jair Bolsonaro. Escreveu:

– Presida falando. “Combater a ideologia de gênero.” Pk [sigla que significa “pica”] […] Histórico – concluiu.

Na mesma mensagem, Turnowski comemorou sua ascensão. A nomeação para a chefia na Polícia Civil já tinha sido oficializada:

– Publicou [refere-se à publicação no Diário Oficial], meu amigo. Página virada. Pra cima deles. Vão se foder comigo. […] Bom estarem preparados. Pois eu tô.

Alves respondeu:

– Perseguir, azucrinar, perseguir, azucrinar.

A partir daquele momento, Turnowski e Alves não se limitaram a “perseguir e azucrinar” inimigos dentro e fora da Polícia Civil. Também cuidaram de neutralizar qualquer ameaça contra os seus próprios esquemas ilícitos. Em setembro de 2020, depois de dezoito meses do comando de Turnowski na corporação, as artimanhas da dupla subiram de patamar. Nessa data, Turnowski foi promovido a secretário da Polícia Civil, cargo mais alto da instituição no estado. Contando com a proteção do amigo poderoso, Alves chegou a acessar ilegalmente o inquérito sobre a morte da vereadora Marielle Franco e até criou operações policiais com provas forjadas para prender delegados da própria Polícia Civil que ousaram investigar suas tramoias.

piauí obteve acesso exclusivo à íntegra da troca de mensagens via Whats­App entre Turnowski e Alves durante quarenta meses – de fevereiro de 2018 a junho de 2021, quando Alves foi finalmente preso pelo Ministério Público. As conversas estavam em um dos celulares apreendidos com Alves no momento de sua prisão. São 7 360 páginas de transcrições de mensagens de texto e áudio. O material é um retrato espantoso sobre a rotina criminosa de duas autoridades que há décadas estão encarregadas de combater o crime e garantir a segurança dos cidadãos do Rio de Janeiro.

Os diálogos mostram uma teia de corrupção e de relações com o crime organizado capaz de chocar até quem está mais ou menos familiarizado com a extensão da infiltração criminosa nas estruturas do Estado no Rio de Janeiro. Turnowski e Alves – em conversas entre eles, ou com terceiros – discutem a proteção de criminosos, vazamento de informações sigilosas, plantação de fake news e dossiês na imprensa, tentativas de extorsão, até mesmo planejamento de assassinatos. Com o vocabulário e a lógica própria dos bandidos, os diálogos são uma mostra de como uma corporação convive, na sua cúpula, com criminosos.

Em fevereiro de 2018, Maurício Demétrio Alves, depois de quinze anos na Polícia Civil, assumiu pela primeira vez o comando de uma delegacia – e uma das mais cobiçadas. Era a Delegacia de Repressão aos Crimes Contra a Propriedade Imaterial (DRCPIM). É pouco conhecida do público em geral, mas bastante popular entre os policiais, dadas as inúmeras oportunidades que oferece para a cobrança de propina de comerciantes de produtos falsificados – de roupas a calçados e cigarros. (Em 2022, uma denúncia anônima enviada ao Ministério Público informou que a DRCPIM arrecadava uma média de 1 milhão de reais por mês em subornos.) A promoção de Alves teve o dedo de Turnowski. Mesmo escanteado da polícia naquela época, Turnowski mantinha influência na cúpula da corporação e conseguiu emplacar o amigo na direção da DRCPIM.

Desde então, Alves passou a ter encontros pessoais rotineiros com Turnowski. Entre fevereiro de 2018 e junho de 2021, o período das 7 mil páginas acessadas pela piauí, houve 92 encontros – média de um a cada doze dias. Boa parte dessas reuniões durava poucos minutos e ocorria em locais discretos, próximos a postos de combustível, estacionamentos de shoppings centers e no condomínio da Barra da Tijuca onde Turnowski mora. De vez em quando, os dois marcavam encontros em horários pouco convencionais, entre onze da noite e duas da madrugada. À meia-noite de 10 de outubro de 2018, por exemplo, Alves acionou Turnowski pelo WhatsApp:

– Tá sozinho? – perguntou.

– Tô.

– Me encontra naquele posto?

– Sim.

Em outras ocasiões, era Turnowski quem convidava Alves. “Vc me abandonou, guru? Saudade”, escrevia o primeiro. Era a senha para alinharem uma reunião. Como os encontros costumavam ser rápidos, os promotores do Ministério Público desconfiam que serviam apenas para que um entregasse alguma coisa ao outro. Na noite de 16 de julho de 2018, por exemplo, Turnowski enviou uma mensagem de áudio ao amigo: “Me encontra do lado de fora ali que eu já entro e saio, que eu tô com horário… em frente ao Balada [refere-se ao Balada Mix, rede de restaurantes do Rio].” Em outra ocasião, Turnowski marcou encontro no estacionamento do Shopping Nova América, em Del Castilho, na Zona Norte, antes de seguirem para o almoço. Alves respondeu: “Consigo chegar tipo umas 11 horas lá, tá a fim? No shopping?” Turnowski disse: “Blz. Fechado. Mas estaciona pra trocar uma ideia.”

Às vezes, as conversas que antecediam os encontros sugeriam que o objetivo era entrega de dinheiro vivo. Certa ocasião, Turnowski, mandou a seguinte mensagem antes de se reunir com Alves:

– Dia pesado ontem. Te falo depois. Muitos verdes.

Em outra ocasião, Turnowski disse que precisava encontrar Alves pela tarde para “resolver o 3k”. A letra “k” é comumente usada para designar “mil”. Em outra, a dupla ironizava o apego de ambos ao dinheiro, como neste diálogo ocorrido em agosto de 2018:

– Hj estou abençoado – escreveu Alves.

– Hj estou duro – respondeu Turnowski.

– Pra que dinheiro se temos amor?

– Amor de amigos.

– Vc é muito materialista. Vamos resolver isso. Vc verá q dinheiro não traz felicidade. Sem ele vc será outro homem.

– Com certeza. Totalmente outro.

Os diálogos não esclarecem quem dava dinheiro a quem, mas há indicações de que havia entregas nos dois sentidos. Os promotores que analisaram o material suspeitam que Alves entregava para Turnowski, seu padrinho na nomeação para a chefia da DRCPIM, uma parte da propina extorquida dos comerciantes de produtos piratas. Turnowski, por sua vez, ainda segundo a suspeita dos investigadores, repassava uma parte dos valores a outros delegados da cúpula da Polícia Civil, cujos nomes não aparecem nas conversas do celular apreendido. Há sugestões nesse sentido, como na troca de mensagens ocorrida em abril de 2018, na qual Turnowski escreveu:

– Vamos ver se nos vemos pela manhã. À tarde tenho que acertar. Tem como?

Em outro diálogo, aparece a sugestão de que Turnowski também entregava dinheiro a Alves. Na mensagem, Alves reclamou:

– Se dependesse de vc, teria passado fome em Miami – disse, referindo-se às suas férias com a família na Flórida.

– Vc tem de entender como funciona – ensinou Turnowski. – Vc quer reinventar a roda. Muito difícil. Lá e cá. Aí é mole.

A conversa terminou no tom amigável de sempre. “Ia te pagar um Gero [refere-se a um restaurante], festival de trufas brancas rs”, escreveu Alves. “5af [quinta-feira] vamos nos ver. Saudade.” No fim de outubro de 2018, depois da vitória eleitoral de Bolsonaro e Witzel, Alves mandou outra mensagem ao amigo colocando-se na posição de quem recebe dinheiro: “Vc deve pagar sua promessa e me alimentar.”

Apesar dos indícios de que a dupla se encontrava para entregar dinheiro vivo um ao outro, nem Turnowski nem Alves foram denunciados por corrupção nesse caso. A investigação não conseguiu obter imagens de câmeras de vigilância que flagrassem a dupla nesses encontros, o que reforçaria a materialidade do crime. Sem isso, o Ministério Público entendeu que a denúncia seria fraca e não tinha chances de prosperar.

Em novembro de 2020, quando Turnowski já tinha dado a volta por cima e ocupava o cargo de secretário de Polícia Civil do governador Cláudio Castro, que assumira o lugar de Witzel, Alves sugeriu marcar um almoço. Queria colocar Turnowski na mesma mesa com representantes da Souza Cruz, a maior fabricante de cigarros do país. No almoço, o assunto seria um repasse de dinheiro que a empresa estava disposta a fazer em favor da polícia. Em troca, a corporação intensificaria as operações contra a falsificação de cigarros. Para vender seu peixe, Alves escreveu:

– Tenho operação planilhada. Ótima mídia. E dá pra arrancar uma verba deles. Tipo uns 150 mil [reais] e material pra polícia. Mês.

– Bom – respondeu Turnowski.

O almoço aconteceu doze dias depois, em local não especificado nas conversas. Não se sabe o que foi efetivamente discutido no encontro.

Em nota, a Souza Cruz, que em outubro de 2020 adotou o nome bat Brasil, em referência à sua empresa controladora, British American Tobacco, negou ter feito qualquer pagamento de propina à Polícia Civil do Rio. “A BAT Brasil cumpre integralmente a legislação e está comprometida com os mais altos padrões de integridade, possuindo um robusto programa de compliance que conta com profissionais especializados e independentes para a aplicação do Código de Conduta Ética da companhia, o qual veda expressamente qualquer tipo de interação ilegítima com agentes públicos ou privados.” Indagada pela reportagem se o almoço realmente existiu, a assessoria da empresa não se manifestou. Turnowski negou o suposto encontro com representantes da BAT Brasil. “[Sãofake news criminosas criadas por pessoas mal-intencionadas”, disse seu advogado, Daniel Bialski. A piauí encaminhou quinze perguntas à defesa de Alves, mas não obteve retorno. Sua mulher, a advogada Verlaine da Costa Pereira Alves, também não deu resposta.

Bialski, por meio de uma nota, também disse que os contatos entre Alves e Turnowski não se davam em “encontros escondidos”, já que aconteciam em “locais de fácil rastreamento, pois todas as entradas são registradas com câmeras e, no caso das garagens, câmeras e cancelas”. Disse que são calúnias as suspeitas de entregas de dinheiro. “O MP vasculhou a vida do dr. Allan e não encontrou qualquer resquício ou indício de corrupção. […] [É] a demonstração de seu caráter honesto e correto.” O advogado defende a inocência de Turnowski em duas ações penais. “Frise-se que inexiste e não há qualquer prova ou conversa gravada do delegado Allan Turnowski que indique tenha ele cometido qualquer infração penal. O quanto produzido [de provas por parte do MP] só mostrou a lisura e correção de sua conduta enquanto delegado e secretário. Portanto, aguarda-se que a Justiça, no momento adequado, declare sua inocência.”

As trocas de mensagens entre Alves e Turnowski também mostram que os dois gostavam de falar sobre despesas caras. Certa feita, Turnowski deu ao amigo uma camisa da grife Ricardo Almeida, cujos preços variam de 1 mil a 2,5 mil reais, e brincou: “Não posso dar uma camisa que não seja compatível com a tua imagem.” Quando Alves viajou com a mulher e os filhos para Miami em junho de 2018 em voo de primeira classe, o colega lhe deu um conselho: “Não seja maldoso com a tua família, cara. Só malinha de mão, eles compram tudo lá, pô. Vestido, camisa, sapatos novos… sem miserê, guru! Pouca mala, traz tudo novo.” Dois dias depois, Alves enviou uma foto dos seus pés descalços à beira da piscina em um hotel de Miami. Ao lado, uma garrafa de champanhe Veuve Clicquot. Em janeiro do ano seguinte, ele retornou a Miami, hospedou-se no W South Beach, hotel cinco estrelas, alugou um automóvel de luxo da Bentley e provocou o amigo: “Tá fogo de voltar.”

No período das mensagens de Whats­App, o salário bruto de Alves era de 28,3 mil reais. Mesmo assim, ele mandava fotos para o amigo dos vinhos caros que bebia, entre eles o italiano Bolgheri Sassicaia, cuja garrafa pode custar 7 mil reais. No fim de setembro de 2018, o delegado da DRCPIM passou um fim de semana no hotel Emiliano, um dos mais caros de São Paulo, cuja diária pode chegar a 5 mil reais. “Coisa de rico. Tava precisando”, escreveu para Turnowski. Quando veio a pandemia, Alves alugou uma casa no condomínio Portobello, em frente ao mar de Mangaratiba, no Litoral Sul fluminense, por 40 mil reais mensais.

Em março de 2019, chuvas fortes destelharam parte da sede da DRCPIM, na Cidade da Polícia, no bairro do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio. Alves pediu a advogados para custear o conserto.

– Fiz contatos com os escritórios de advocacia, os caras mandaram funcionários lá pra consertar o telhado – disse para Turnowski. O conserto custou menos que sua garrafa de vinho.

Apalavra “corrupção” e o nome “Maurício Demétrio Alves” têm aparecido na mesma frase há duas décadas. Em 2003, apenas dois anos depois de seu ingresso na Polícia Civil, Alves foi acusado pelo então secretário de Segurança Pública, Anthony Garotinho, de extorquir os donos de uma fábrica em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, durante o cumprimento de um mandado de busca na empresa. Por ordem do então chefe da Polícia Civil, Álvaro Lins, Alves perdeu seu posto na Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (DPMA).

Cinco anos depois, em 2008, Alves vingou-se. Quando Álvaro Lins cumpria mandato de deputado estadual, Alves acusou-o na Corregedoria-Geral da Polícia Civil de ter ligações com o jogo do bicho. A denúncia não era apenas uma vingança. Era também verdadeira. Resultou numa operação da Polícia Federal que levou à cassação do mandato de Lins e à sua posterior prisão por corrupção, lavagem de dinheiro, facilitação de contrabando e formação de quadrilha. Os dois elementos da Polícia Civil estavam quites. Mas Alves continuou onde sempre esteve.

Em 2016, quando trabalhava na Divisão de Capturas da Polícia Interestadual (DC-Polinter), ele intermediou um pagamento de propina. O ex-policial militar Adriano da Nóbrega, que ganhou fama como o miliciano mais próximo da família Bolsonaro, queria subornar os policiais da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco-IE) para que deixassem de fazer operações contra a milícia de Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio. Além disso, em troca do pagamento, os policiais deveriam avisar aos milicianos, com antecedência, quando soubessem de alguma operação do Ministério Público contra eles. Em uma mensagem de áudio enviada a um colega, Alves disse: “Se quiser fazer logo amizade, é pra fazer agora, entendeu? Tá resolvido! Aos caras interessa e, se, por acaso, vier alguma ordem de MP, alguma coisa, eles avisam o que que é. O acordo é esse aí.” Em razão do crime de vender proteção para a milícia, Alves responde a ação penal por corrupção ativa e violação de sigilo funcional.

Em julho de 2020, o nome de Alves voltou a aparecer, desta vez na delação do ex-governador Sergio Cabral. No depoimento, Cabral contou que foi achacado por Alves e seus comparsas duas vezes, ambas para evitar a publicação de denúncias na imprensa sobre sua mulher, a advogada Adriana Ancelmo. O porta-voz dos achaques, de acordo com Cabral, foi seu então secretário de Esporte e Lazer, André Lazaroni. No primeiro caso, segundo o ex-governador, lhe pediram 500 mil, mas fecharam por 300 mil. Cabral acionou seu operador financeiro, Carlos Miranda, que entregou os 300 mil nas mãos de Lazaroni. No segundo caso, foram 200 mil, pagos, também a Lazaroni, pelo bombeiro aposentado Pedro Henrique Ramos Teixeira de Miranda, que na época assessorava Cabral. À Polícia Federal, Carlos Miranda confirmou que entregou a primeira remessa para Lazaroni, mas não soube dizer para quem o dinheiro foi distribuído. Pedro Ramos de Miranda, portador da segunda remessa, não foi ouvido pela pf. Lazaroni, por meio de sua assessoria, negou qualquer envolvimento no caso.

Em abril de 2021, a Polícia Federal encaminhou o depoimento do ex-governador para instauração de inquérito sobre a suspeita de crime de extorsão. No mês seguinte, porém, o Supremo Tribunal Federal anulou a delação de Cabral, depois que veio à tona um anexo em que o ex-governador citava o pagamento de propina para o ministro Dias Toffoli, do STF. Com isso, as investigações foram paralisadas e ninguém mais foi ouvido.

Quando Alves foi detido (em razão de outro caso de extorsão) e levado para a cadeia pública de Bangu 8, em junho de 2021, Cabral estava preso preventivamente no mesmo local. Ao saber da notícia, o ex-governador pediu para ser transferido de presídio. Temendo por sua segurança, não queria compartilhar o mesmo espaço prisional com o delegado que fora alvo de sua delação à pf. Em setembro daquele ano, a Justiça autorizou a transferência do ex-governador para a Unidade Prisional da Polícia Militar, em Niterói.

Filho de um advogado e contador, Allan Turnowski começou sua carreira na Polícia Civil em 1996, cinco anos antes de Alves. Desde cedo, mostrou-se um delegado inteligente, articulado, dedicado e com gosto pelas investigações de rua. Mas não demorou a aproximar-se da banda podre da corporação. Em 2002, passou a chefiar a Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas. Ali, teve contato com uma turma barra-pesadíssima. Conheceu o detetive Mário José dos Santos, o Mário Malhado, que tempos depois seria condenado pelo sequestro e extorsão de um comerciante em Duque de Caxias e acabaria expulso da polícia. Também conheceu dois policiais militares, ambos cedidos à Polícia Civil, Ronnie Lessa e Roberto Luís Dias de Oliveira, o Beto Cachorro, que haviam sido membros de um grupo de extermínio. Lessa é o assassino confesso da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Está preso na Penitenciária de Tremembé, no interior de São Paulo. Beto Cachorro foi preso pela pf em 2011, acusado de ligação com milicianos, mas acabou absolvido tempos depois.

Turnowski, entretanto, ficou pouco tempo na delegacia. No ano seguinte, em 2003, foi nomeado diretor do Departamento-Geral de Polícia Especializada, chefiando as principais delegacias da instituição. Nesse período, Turnowski e Lessa se aproximaram do bicheiro Rogério de Andrade, sucessor do lendário bicheiro Castor de Andrade. Lessa tornou-se segurança da família de contraventores. Nessa função, perdeu a perna esquerda na explosão de uma bomba no automóvel que dirigia, em 2009. Um ano depois, outra bomba explodiu em um dos carros de Rogério Andrade no Recreio dos Bandeirantes, Zona Oeste do Rio, matando o filho do bicheiro. O suposto autor das duas detonações, um sargento do Exército, foi morto meses depois por policiais civis dentro de um hotel em Jacarepaguá. Como recompensa, segundo depoimento colhido pelo Ministério Público Federal em 2018, Rogério Andrade distribuiu 2 milhões de reais à cúpula da Polícia Civil. Entre os beneficiados, estava Turnowski. No mesmo depoimento, Turnowski foi acusado de receber propina para fazer vista grossa à exploração de máquinas caça-níqueis distribuídas pelo Rio.

Em abril de 2009, Turnowski virou chefe da Polícia Civil, nomeado pelo então secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame. Ficou menos de dois anos no cargo. Em novembro do ano seguinte, a Polícia Federal gravou um telefonema em que Turnowski parecia alertar Christiano Fernandes, um inspetor da Polícia Civil envolvido com a milícia, de que estava sendo investigado. “Fica esperto aí porque nego da Federal tá dizendo que caiu na escuta. […] Vê se não tem ninguém mais agarrado. […] Confere suas equipes aí”, avisou Turnowski.

Mesmo com o alerta, Christiano Fernandes e seu irmão Giovanni acabaram presos numa operação ocorrida três meses depois – e, em 2019, foram reintegrados à corporação. Turnowski foi indiciado por violação de sigilo funcional e acabou demitido do cargo de chefe, embora tenha continuado como delegado. (Logo depois da sua demissão, em fevereiro de 2011, um informante da Polícia Civil disse em depoimento à PF que o delegado recebia 100 mil reais mensais para não reprimir a venda de produtos piratas num camelódromo no Centro do Rio, e mais de 500 mil reais mensais de milicianos da Zo­na Oeste da cidade. As supostas extorsões nunca foram investigadas pela polícia.)

Quando caiu em desgraça, Turnowski vingou-se do delegado titular da Draco, Cláudio Ferraz, a quem atribuía sua queda. Dois dias depois de depor na PF, ainda ocupando a chefia da Polícia Civil, Turnowski mandou lacrar a sede da Draco e abrir sindicância contra Ferraz sob a suspeita de que o delegado extorquia investigados pela sua delegacia. O contra-ataque não deu certo. Gerou uma crise na Secretaria de Segurança Pública, que resultou na demissão de Turnowski. As acusações contra Ferraz estavam embasadas num dossiê que, mais tarde, a Justiça considerou forjado.

Três anos depois, quando seu nome foi cotado para assumir a chefia da Polícia Civil, Cláudio Ferraz foi alvo de outro dossiê, de 87 páginas, que lançava dúvidas sobre seu patrimônio pessoal. O Ministério Público abriu uma investigação, que acabou arquivada, mas, naquele início de 2014, desgastou a imagem de Ferraz e fez com que seu nome fosse preterido para o cargo. A autoria dos dois dossiês – o apresentado por Turnowski e o investigado pelo MP – é desconhecida, mas os cinco delegados e promotores familiarizados com a história, todos ouvidos pela piauí sob anonimato, suspeitam do envolvimento direto de Alves, o faz-tudo de Turnowski. (Dois anos depois, quando Turnowski estava prestes a ser nomeado secretário da Polícia Civil, Alves disse que já tinha encomendado terno novo para a posse do amigo no cargo. Turnowski então ironizou: “Pede o [terno] dele [Ferraz] emprestado, porra, tu fodeu ele!”)

Ferraz aposentou-se tempos depois e deixou de ser uma fonte de preocupação para Turnowski. Mas o ex-chefe da Polícia Civil nunca perdeu o receio de voltar a ser investigado pela Polícia Federal, como aconteceu na operação em que foi indiciado por vazar informação sigilosa para um colega envolvido com a milícia. Em maio de 2020, Alves enviou ao amigo o link de uma reportagem informando que Tácio Muzzi Carvalho e Carneiro, delegado da Polícia Federal escolhido superintendente da corporação no Rio, poderia representar um risco. Em seguida, os dois delegados travaram um diálogo permeado pela lógica da bandidagem:

– O cara quer vc. Vai ser difícil te proteger – provocou Alves, no WhatsApp.

– Guru, se ele me pegar, ele vai te pegar, guru. Tem que me proteger por você! Me esquece! Porra, tá maluco? Nós somos um CNPJ, um CPF só! Irmãos de embrião!

Nos sete anos em que Turnowski ficou afastado da Polícia Civil, seu guru Alves foi cooptado pelo bicheiro Fernando Iggnácio, rival número 1 de Rogério de Andrade. Os dois contraventores estavam disputando o espólio de Castor de Andrade, de quem Rogério Andrade era sobrinho, e Fernando Iggnácio, genro. Segundo investigação do Ministério Público, Turnowski, que era um aliado de Rogério de Andrade, passou a atuar como agente duplo: recebia informações do grupo de Andrade e repassava para Iggnácio por meio do delegado Alves.

Na teia dessas relações criminosas, Turnowski e Alves, de acordo com o Ministério Público, planejaram um assassinato – no caso, de Rogério Andrade. Ainda segundo o MP, eles chegaram a estipular o preço do serviço: 3 milhões de reais. Em março de 2017, Alves teve a ideia de matar Andrade em Ibiza, na Espanha, onde o bicheiro passava as férias. O plano não foi em frente. Três meses depois, cogitou matá-lo dentro de um shopping center no Rio de Janeiro. Em mensagem enviada a um informante da Polícia Civil, Alves comenta: “Eu tava pensando em dois ou três [sicários]… com farda de PM. Que que tu acha? Era uma boa, né?” A ideia também não vingou. Em julho de 2018, aproveitando que Rogério Andrade estava preso por contrabando, Alves pensou em envenenar sua comida na prisão. Segundo o Ministério Público, Fernando Iggnácio vetou o plano.

Em novembro de 2020, foi o próprio Iggnácio quem acabou assassinado ao descer de um helicóptero no Recreio dos Bandeirantes, na Zona Oeste do Rio. A piauí apurou que familiares de Iggnácio ofereceram recompensa milionária para que a Polícia Civil, então comandada por Turnowski, indiciasse Rogério de Andrade como mandante do crime. Treze dias depois do crime, Turnowski e Alves trataram do assunto pelo Whats­App: “Com êxito [da investigação], sobe mais 5 mil reais”, escreveu Alves. Os investigadores interpretam que Alves sugere que, se a investigação conduzisse ao indiciamento de Andrade, a recompensa subiria para 5 milhões (e não mil) reais. O advogado de Turnowski, Daniel Bialski, negou que seu cliente tenha tido contato com familiares de Iggnácio. A defesa de Alves não se manifestou.

Rogério de Andrade foi indiciado pela Polícia Civil como mandante da morte do rival. Foi a primeira vez que a corporação responsabilizou diretamente um capo da contravenção por um assassinato. Tempos depois, o bicheiro conseguiu trancar a ação penal no STF.

Em 15 de março de 2018, um dia depois do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, o delegado Alves ironizou a barbárie: “Gente. O enterro da vereadora será no [Cemitério do] Caju. Mas a comemoração alguém sabe onde será?” Em seguida, enviou outra mensagem ao amigo Turnowski pelo Whats­App, acompanhada de um vídeo: “Olha o discurso da coitada da vereadora que morreu ontem, defensora de vagabundos.” Era fake news: as imagens mostravam outra vereadora, Talíria Petrone, de Niterói, que é fisicamente parecida com Marielle e também é filiada ao Psol.

(Alves era um campeão de espalhar mentiras pelas redes sociais. Meses depois, em setembro de 2019, quando o então prefeito Marcelo Crivella mandou recolher uma obra vendida na Bienal do Livro porque exibia um beijo gay na capa, Alves enviou para Turnowski fotos de outros supostos títulos vendidos no evento com alusão a gays e maconheiros. Turnowski logo percebeu que as imagens estavam manipuladas e disse isso ao amigo. Alves deu de ombros. “Tô nem aí. Aprendi com a esquerda a espalhar mentiras.”)

No caso de Alves, o ódio a Marielle e à ideologia de esquerda era potencializado pelo racismo. Certa vez, em outra conversa com Turnowski, ele chamou a delegada Adriana Belém de “macaca”. Quando trabalhou na Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente, em 2003, costumava gritar ofensas racistas contra uma faxineira contratada pela Polícia Civil. Numa ocasião, escreveu com o dedo sobre a poeira que se acumulara no vidro da sua sala: “Filha da puta, galinha preta, limpa esse vidro!” (Os casos resultaram em duas ações penais por racismo, ainda não julgadas.) Alves também não escondia o preconceito contra moradores de favelas. “Globo reclamando que no morro não entram mais serviços… Entrar entra. Eles só não recebem”, escreveu Turnowski para o amigo em novembro de 2019. “Rs. Piadistas. Querem mais coisa p[ara] favelado? / Uber de graça? Esteira rolante nos becos? Ar-condicionado nas vielas?”

As mensagens de WhatsApp entre os dois também sugerem que ambos conheciam a fundo os esquemas corruptos de outros delegados dentro da Polícia Civil. Quando, no fim de 2018, o jornal O Globo publicou uma reportagem baseada na carta em que um miliciano denunciava que o então chefe da Polícia Civil, Rivaldo Barbosa, operava uma rede para proteger matadores a serviço dos bicheiros cariocas em troca de propina, Turnowski mandou uma mensagem para Alves: “O problema não é o que ele [o miliciano] fala e sim se tem provas… pois a vulnerabilidade aumenta demais.” Alves respondeu: “Cara sabe de tudo, Allan… Viajaram tentando embuchar ele.”

Naquele ano de 2018, os dois delegados mantinham proximidade com Ronnie Lessa, já então sob investigação pelo assassinato de Marielle. No dia 14 de setembro, Alves escreveu para Turnowski: “Tive com o Ronnie ontem.” A mensagem não dá detalhes do encontro, nem o assunto que discutiram. Depois que Ronnie Lessa foi preso preventivamente, em março de 2019, o Ministério Público examinou o conteúdo do seu celular. Descobriu que o inspetor Vinícius de Lima Gomes, amigo de Lessa e Turnowski, fez o papel de intermediário entre os dois. Numa mensagem de 2018, Lima escreveu para Lessa: “Estou com doutor Allan [Turnowski], te mandou um abraço.” Lessa, nessa altura, ainda não confessara ter matado Marielle, mas já era conhecido como membro de um grupo de extermínio e capanga de bicheiro.

Apesar da amizade que os unia, Alves traiu Lessa, que foi preso no dia 12 de março de 2019 com um arsenal de nada menos que 117 fuzis. A conversa com Turnowski sugere que Alves revelou à Delegacia de Homicídios a existência do arsenal e, depois, começou a ficar apreensivo por tê-lo feito. “Nego tá me achando. Essa parada do Lessa é fogo”, escreveu, no dia seguinte à prisão. Em resposta, Turnowski repreendeu o colega por ter informado o endereço onde estavam os fuzis. “Acredito que seja qdo vc foi na dh, cara. Te falei pra vc sair ali. Vc não tava profissionalmente envolvido”, disse. “Cara tinha 117 fuzis!!!! […] Fiquei muito sem cuidado. Podia ter me ferrado”, respondeu Alves.

Pelo teor das mensagens, depreende-se que Turnowski também estava na dh quando Alves procurou o delegado para denunciar o arsenal de Lessa.

– Falei na hora pra vc sair, guru. Não me senti bem – escreveu Turnowski.

– Verdd [verdade] – respondeu Alves. – Autoconfianca d+ leva a arrogância q leva a erros.

Minutos depois, Alves enviou para Turnowski a imagem de uma reportagem informando que Lessa havia pesquisado em seu celular informações sobre “um delegado da Polícia Civil”. Turnowski, que chamava Lessa de “psicopata”, passou a temer por alguma retaliação do ex-pm contra Alves. Escreveu: “Guru. Vc é um louco”, ao que Alves respondeu: “Cara, vou submergir.”

Embora funcionalmente não tivessem relação com as investigações do caso Marielle, os dois delegados acompanharam tudo de perto. Quando soube que o celular de um dos investigados continha informações que podiam comprometê-­lo, Alves passou a pressionar Turnowski, já então promovido a secretário da Polícia Civil, para ter acesso ao inquérito de Marielle, que tramitava em sigilo na dh. Turnowski ordenou que o delegado da DH franqueasse o acesso de Alves ao inquérito sigiloso, o que era ilegal. O caso foi descoberto e investigado pelo Ministério Público, mas todos os envolvidos pouparam Turnowski. Alves, porém, foi denunciado por violação de sigilo profissional. A ação tramita em sigilo na 35ª Vara Criminal do Rio.

Não se sabe quais informações do caso Marielle poderiam comprometer Alves, mas uma denúncia anônima enviada ao Ministério Público dá uma pista. A denúncia diz que ele, quando trabalhou no combate ao furto de automóveis fiscalizando ferros-velhos nos anos 2000, estreitou relações com a família Brazão, dona de empresas do ramo de sucatas na Baixada Fluminense. Em 2018, assim que os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão entraram para a lista de suspeitos no caso Marielle, Alves reuniu-se com eles para ajudá-los a escapar das investigações, de acordo com a denúncia anônima. Numa conversa com Turnowski, em fevereiro de 2019, Alves sugeriu que sabia do envolvimento dos Brazão no crime. Ele enviou ao amigo o link de uma reportagem falando de um mandado de busca na casa de Domingos Brazão e escreveu: “Pronto… taaaii. Estão na linha certa. Vão pegar.”

Alves e Turnowski também acompanhavam de perto os bastidores políticos subjacentes ao caso Marielle. Em maio de 2020, em mensagem para Turnowski, Alves disse que o então governador Wilson Witzel estava por trás da explosiva edição do Jornal Nacional, de 29 de outubro de 2019, que noticiou elementos que podiam associar o assassinato de Marielle à família Bolsonaro. Alves disse que a fonte original da informação dada à Globo – que se revelou equivocada – era o governador.

– [Witzel] Vendeu p Globo q ia derrubar o cara [Bolsonaro]. Deu aquela cagada.

– Carta na manga que não existia – respondeu Turnowski.

– Não derrubou [Bolsonaro]. E [Witzel] foi pego roubando. E Globo já largou [Witzel].

Procurado pela piauí, Wilson Witzel, que sofreu impeachment em agosto de 2020, negou ter vazado o depoimento para a emissora. “Jamais vazei informações, seja como magistrado, seja como governador. Sobre este delegado, cabe a ele provar o que diz”, afirmou.

Maurício Demétrio Alves vibrou na noite de domingo, 12 de maio de 2019, quando viu uma investigação da DRCPIM ser objeto de reportagem do Fantástico, da TV Globo. No ano anterior, a escritora Izaura Garcia de Carvalho Mendes havia procurado Alves acusando o padre Marcelo Rossi, autor de Ágape, de plagiar seu texto intitulado “Perguntas e respostas – felicidade qual é?” que ela escrevera em seu livro “Nunca deixe de sonhar”. Como prova, a escritora entregou ao delegado o suposto registro da obra dela na Biblioteca Nacional (BN). Era falso. Em dezembro de 2018, a BN informou a Alves que o documento apresentado por Garcia tinha sido forjado. Seu livro nunca fora registrado na Biblioteca Nacional.

Alves convocou Izaura Garcia e suas duas advogadas, Carolina Araújo Braga Miraglia de Andrade e Mariana Farias Sawen de Almeida, para uma reunião na manhã de 9 de maio de 2019, pedindo para que elas levassem à delegacia o documento da BN. Estava simulando um flagrante. Teve o cuidado de colocar uma câmera de vídeo na sua sala, voltada para as cadeiras em frente à sua mesa, na sede da delegacia, para gravar as cenas que viriam a seguir. Quando recebeu os documentos, Alves disse que o registro era falso, levantou-se da cadeira e sentenciou: “Vocês três estão presas.” Cavou o flagrante para as câmeras, pois havia cinco meses que sabia da falsificação do registro. A cena da prisão, com vídeo, ganhou interesse nacional ao ser exibida no Fantástico.

“Repercussão 1000000% positiva”, escreveu para Turnowski na manhã seguinte à divulgação da reportagem. “Tá voando, guru. Ídolo”, respondeu o amigo. “Salvei o padre e a Globo”, continuou Alves, referindo-se ao fato de que Ágape, do padre Marcelo Rossi, fora lançado pela Editora Globo. As prisões eram claramente ilegais. Além do flagrante forjado, não havia sequer um indício do envolvimento das duas advogadas no crime. “Eu senti muito medo, tive a plena sensação de que eu não sairia dali viva”, disse a advogada Carolina Andrade tempos depois, em entrevista ao jornal O Globo. “Nós passamos o dia sendo torturadas na delegacia, com o Demétrio [Alves] fazendo terror psicológico e humilhando a gente.”

As duas advogadas ficaram até as 20 horas do dia 9 de maio na sede da DRCPIM, quando foram levadas para a carceragem da Polinter. Lá, segundo a Ordem dos Advogados do Brasil, passaram a noite em uma “cela imunda, suja de sangue, fezes, sem janela, sem vaso sanitário, sem cama”. Na manhã seguinte foram transferidas para a cadeia pública de Benfica. Somente dois dias depois é que, levadas algemadas na audiência de custódia, o juiz Antônio Luiz da Fonsêca Lucchese determinou a liberação de ambas.

No domingo, quando assistiu à própria prisão ilegal no Fantástico, Andrade levou outro golpe. “Eu sequer sabia que tinha sido filmada. Ninguém me contou sobre a existência da matéria, eu só descobri com o anúncio na televisão. Minha avó estava do meu lado e nós assistimos juntas. Foi devastador. Isso gerou uma crise no meu trabalho e uma mancha na minha reputação, na minha imagem e no meu nome. As pessoas me ligavam o tempo todo e eu não conseguia ter paz. Isso quase me destruiu, foi um tsunami que atingiu minha família inteira”, disse ao jornal.

Em setembro daquele ano, o Tribunal de Justiça determinou o trancamento do inquérito contra as duas advogadas. Já o delegado Alves foi denunciado pelo Ministério Público por abuso de autoridade e denunciação caluniosa. A ação penal ainda tramita na 27ª Vara Criminal do Rio.

Em fevereiro de 2018, quando o governo de Michel Temer decretou intervenção militar na Secretaria de Segurança Pública do Rio, os delegados perceberam que os ventos da política começavam a soprar a seu favor outra vez.

– Pêndulo virou – escreveu Turnowski para o amigo. – Temos que entrar na onda. Voltou nossa hora. Hora do nosso estilo.

Estavam certos. No pleito daquele ano, que elegeu Bolsonaro e consagrou a extrema direita, Turnowski havia trabalhado nos bastidores para dois candidatos a governador. Primeiro, Índio da Costa. Depois, ainda durante a campanha, quando notou que a candidatura de Costa não decolava, trocou-o por Romário, cujo plano de governo na área de segurança pública chegou a elaborar. Mas, como bolsonarista aguerrido, Turnowski não se incomodou com a vitória de Wilson Witzel. Ao contrário: saudou-a como um triunfo, sobretudo porque a disputa resultara na derrota de Eduardo Paes, a quem ele e seu amigo Alves dedicam um ódio visceral. Desde a primeira notícia de que Witzel vencera o pleito, Turnowski começou as articulações para deixar a Companhia de Águas e Esgotos e voltar a ocupar um cargo de chefia na Polícia Civil. Deu tudo certo. Em janeiro de 2019, assumiu o comando das delegacias da capital.

Já no ano seguinte, uma armação contra Eduardo Paes estava em curso. Em novembro de 2020, às vésperas do segundo turno das eleições municipais, Alves valeu-se de um advogado amigo, Thalles Wildhagen Camargo, para denunciar à Polícia Federal um suposto esquema de caixa dois de Eduardo Paes, então candidato a prefeito. O advogado avisou a PF que, no dia seguinte, uma pessoa não identificada entregaria a Paes uma grande quantidade de dinheiro vivo, não declarado. A PF chegou a montar uma operação para flagrar o crime até descobrir que era uma farsa montada por Alves. Os maços de dinheiro estavam com o próprio Alves, acomodados numa sacola de papel, e seriam inseridos por policiais civis nos veículos usados por Paes durante uma carreata pela cidade. Era a aplicação prática do lema “perseguir, azucrinar, perseguir, azucrinar”.

Poucos foram mais perseguidos do que aqueles que descobriram como Alves achacava os comerciantes de roupas em Petrópolis, na Região Serrana do Rio. Cada comerciante de rua era obrigado a pagar 250 reais por semana, sob pena de ter suas mercadorias apreendidas. Em julho de 2020, uma das vendedoras, sem condições de pagar a propina semanal em razão da queda do movimento provocada pela pandemia, denunciou a extorsão à delegada Juliana Ziehe, então chefe da 105ª Delegacia de Polícia de Petrópolis. A delegada levou o caso à corregedoria, que era chefiada por seu pai, Alexandre Ziehe. O chefe da corregedoria e seu auxiliar, o também delegado Marcelo Machado Portugal, colheram o depoimento de outros dois comerciantes, que confirmaram a extorsão semanal.

Ao tomar conhecimento da investigação, Alves começou a agir para proteger seu esquema criminoso. Por meio do WhatsApp, acionou Turnowski, que prometeu intervir em seu favor. Os dois não voltaram a tocar no assunto em suas conversas pelo aplicativo. Mas, em 15 de setembro de 2020, um dia depois de assumir a direção da Polícia Civil, Turnowski tomou uma providência: afastou Alexandre Ziehe do comando da corregedoria. Alves aproveitou a ascensão de Turnowski e partiu para a desforra contra seus inimigos.

Começou indo atrás do delegado Marcelo Machado Portugal, da corregedoria. A vingança começou quando um advogado próximo de Alves, representante da Universal City Studios, detentora dos direitos da marca Minion no Brasil, protocolou um ofício na DRCPIM dizendo que uma fábrica de confecções do delegado Portugal na Tijuca estava produzindo roupas com a imagem dos bonecos sem autorização (as normas internas da Polícia Civil permitem que seus integrantes sejam sócios de empresas privadas). Com base naquela representação, Alves instaurou um inquérito contra Portugal e seu sócio Alfredo Baylon Dias.

Em seguida, usou uma terceira pessoa chamada “Ana”, cuja verdadeira identidade é desconhecida, para encomendar mil camisetas com a estampa dos minions. Quando a fábrica avisou que o produto estava pronto, Alves armou uma operação barulhenta. Conseguiu 40 mil reais de “verba secreta” com Turnowski para bancar a operação e até preparou com antecipação um comunicado à imprensa – onde se lia que Portugal fora preso em flagrante por falsificação e se noticiava a apreensão de um “grande material de vestuário”. Horas depois das prisões em flagrante do delegado Portugal e do seu sócio Baylon Dias, entrevistas de Alves começaram a pipocar na imprensa carioca. Em quase todas, Alves frisava que Portugal integrava um “grupo criminoso” composto por outros quatro delegados, incluindo Alexandre Ziehe e sua filha, Juliana, embora seus nomes nem constassem no inquérito.

O objetivo de Alves fora alcançado: desmoralizar quem investigava os crimes da DRCPIM. O delegado e o amigo advogado Thalles Camargo, que havia auxiliado Alves a forjar a operação contra Eduardo Paes, comemoravam o fato de que o sistema de busca do Google associava a prisão do delegado Portugal ao também delegado Ziehe. “Quando a gente joga lá ‘delegado preso em flagrante’ aí ele já linka ao Alexandre. Hehehe”, disse o advogado. (O inquérito da violação de marca foi arquivado pela Justiça em 2021 a pedido do Ministério Público.)

Faltava, agora, vingar-se dos comerciantes de Petrópolis que o denunciaram. Mas, desta vez, apareceu uma pedra no caminho. O Ministério Público, sem fazer alarde, vinha acompanhando a movimentação de Alves. Ao saber que ele preparava uma operação contra os comerciantes, o promotor de Petrópolis, Celso Quintella Aleixo, decidiu acompanhar pessoalmente a ação policial e, mais importante, determinou que os comerciantes fossem ouvidos em Petrópolis, e não na DRCPIM, a delegacia de Alves. Diante disso, Alves, enfurecido, abortou sua operação.

Seu atrito com o promotor de Petrópolis tornou insustentável sua permanência na DRCPIM. No fim de março de 2021, Turnowski, então secretário de Polícia Civil, transferiu seu guru para a Delegacia de Defesa do Consumidor (Decon). Em mensagem, avisou: “Vc tá fora de pirataria. Já deu.” Mas Alves queria se vingar de Ziehe, o ex-corregedor.

No dia 8 de abril, procurou um agente da PF e denunciou que Ziehe estava traficando drogas nos deslocamentos entre Petrópolis e Rio de Janeiro. Em mensagem ao agente, escreveu: “Terei a exata hora q estará transportando. No próprio carro. Ou em vtr [viatura].” Em seguida, frisou que sabia dos horários, usando maiúsculas: “momento exato. só abordar.” Em conversa pessoal com o agente, Alves indicou até o local onde a droga estaria escondida dentro do veículo. Era tanto detalhe que o Ministério Público ficou desconfiado que Alves plantaria a droga. O plano só não foi adiante, segundo o MP, porque Alves pegou Covid dias depois.

Avida criminosa de Maurício Demétrio Alves acabou na manhã de 30 de junho de 2021, quando foi preso no seu apartamento em um condomínio da Barra da Tijuca, acusado de concussão (exigência de vantagem indevida em função do cargo), associação criminosa, obstrução da justiça e lavagem de dinheiro, em decorrência das extorsões aos comerciantes de Petrópolis. Outras sete pessoas foram presas. Na casa de Alves, os promotores apreenderam vários celulares e 300 mil reais em dinheiro vivo, além de dois dossiês, um contendo dados pessoais do delegado Alexandre Ziehe e sua filha Juliana e outro com informações da família do desembargador Luiz Zveiter, do Tribunal de Justiça do Rio. (O MP não identificou a razão pela qual Alves estava interessado em investigar o magistrado.)

Atualmente, Alves é réu em nove ações penais. Em uma delas, já foi condenado a quase dez anos de prisão por obstrução da justiça, organização criminosa e lavagem de dinheiro. Até o fechamento desta edição, o delegado seguia preso preventivamente na cadeia pública de Bangu 8. Ocupa sozinho uma cela de 6 m2.

Com a prisão do guru Alves, Turnowski sabia que era uma questão de tempo até que o Ministério Público também descobrisse seus crimes na Polícia Civil. Afinal, ele sabia que os celulares de Alves registraram suas conversas. Mesmo assim, Turnowski se manteve na direção da Polícia Civil por mais dez meses depois da prisão de Alves. Só deixou o cargo em abril de 2022, quando ele mesmo pediu afastamento para candidatar-se a deputado federal pelo PL. Na sua campanha, escolheu o mote “tolerância zero contra o crime”. Seu número na urna, o 2227, era uma referência aos 27 mortos na maior chacina da história do Rio, no Jacarezinho, ocorrida na sua gestão.

Na noite de 11 de agosto de 2022, já em plena campanha eleitoral, Turnowski fez um vídeo com seu celular. “Desde quarta-feira tô ouvindo que o Gaeco [grupo de combate ao crime organizado do Ministério Público] e a Polícia Federal vão vir aqui na minha casa fazer uma busca e apreensão. Não mudei minha rotina. […] Por que vão entrar na minha casa? Por perseguição política. Vocês sabem que eu tô forte na minha campanha. E, como deputado federal, o jogo vai inverter.” Em seguida, Turnowski começa a xingar os procuradores: “Vocês são a escória do Ministério Público, é isso o que vocês são. Eu vou ser deputado federal e vou abrir investigação contra vocês. Vocês são canalhas, arapongas. […] Eu não temo vocês. Vou estar aqui com a minha família esperando vocês.”

Menos de um mês depois, no dia 9 de setembro, Turnowski foi preso. Aos promotores do Gaeco, ele disse que havia perdido seu celular durante um ato de campanha no dia anterior. Era mentira: a análise das antenas de telefonia das proximidades de sua casa, na Barra da Tijuca, comprovou que o celular do então candidato estava ligado no fim da noite de 8 de setembro e conectado a uma antena vizinha à sua casa. O aparelho desapareceu.

Da Barra, Turnowski foi levado ainda na manhã do dia 9 à Corregedoria-Geral da Polícia Civil. Segundo o Ministério Público, o delegado conseguiu retardar sua transferência para o presídio Constantino Cokotós, em Niterói, enquanto aguardava o julgamento de um habeas corpus pelo Tribunal de Justiça. À noite, quando o habeas corpus foi negado, o delegado foi enfim levado para a cadeia. Nesse meio-tempo, enquanto ainda estava na corregedoria, o vídeo que gravara no mês anterior com ataques ao Ministério Público foi divulgado na sua conta no Instagram. Turnowski deixou a prisão em 29 de setembro, a dois dias do primeiro turno da eleição, graças a um habeas corpus concedido pelo ministro Kassio Nunes Marques, do STF. No dia da eleição, teve 18 627 votos. Não foi eleito.

Turnowski é réu em duas ações penais, acusado de associação criminosa. Em uma das denúncias, os promotores do Gaeco escreveram: “Allan Turnowski manchou de forma indelével a própria imagem e a credibilidade da instituição que liderou.” Por decisão da Justiça, está proibido de exercer cargos comissionados e de se aproximar de qualquer prédio da Polícia Civil. Mesmo assim, preserva seu poder político na corporação. Agora em setembro, atuou nas articulações que culminaram na nomeação de um aliado para a Secretaria da Polícia Civil: o delegado Felipe Curi. Os dois “gurus” continuam recebendo seus salários em dia. Hoje, Alves ganha um salário bruto de 37,5 mil reais. Turnowski, 47,5 mil.

Os dois respondem a sindicâncias administrativas na Corregedoria da Polícia Civil que podem levar à expulsão da corporação. No início do ano, Alves relacionou seu guru como sua testemunha de defesa. Mas Turnowski entrou na Justiça pedindo para não depor em favor de Alves. Alegou que, por ser alvo de procedimento semelhante, tinha o direito de não produzir provas contra si próprio. A Justiça acatou o pedido. A amizade dos “irmãos de embrião” não parece mais a mesma.

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