E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, faz aqui o obituário de seu sogro. O cronista traça um quadro curioso sobre o Seu Chaouki; uma espécie de réquiem em texto, mas com um jeitão pitoresco. Como é característica de nosso César, mesmo em momentos tristes. Nossos sentimentos!
Beija-flor, 15 de janeiro de 2025.
Caro editor,
A cidade Beija-flor está de luto. Seu Chaouki, pai da minha mulher, se foi na manhã de sábado passado. Tinha setenta e quatro anos, era viúvo. O amor de sua vida, sua mulher, foi antes dele, de uma maneira que é difícil até hoje de acreditar e aceitar. Ele aceitou calado o destino e se apoiou no amor dos filhos e, especialmente, no amor dos netos, que lhe deram o bem precioso de continuar resistindo aos destemperos da vida, apesar de tudo.
Eu me sinto tristíssimo, era muito chegado a ele. Conversávamos sobre política – ele era um anti-lulista ferrenho, de primeira hora, de desde sempre, com argumentos mais embasados do que a grande maioria de bolsonaristas. Por óbvio, nesse aspecto não nos acertávamos, com cada um mantendo a sua opinião até o fim. No tudo o mais, entretanto, nos dávamos bem.
Além da política interna, conversávamos sobre a vida cotidiana, mais chã. Minha coluna de hoje é sobre ele, seu Chaouki, um sujeito simples, por vezes bronco, por vezes inflexível, mas de grandioso coração. Um sujeito que fará falta.
O nome “exquisite” se deve ao fato de ele ser de família árabe que imigrou para o Brasil em meados da década de 1950. Veio de uma aldeia chamada Charbila, que sinceramente não sei a quanto de distância fica de Beirute. Diferentemente de muitos de seus parentes, jamais voltou à terra natal. Não quis. Não tinha apreço pelo Líbano nem pelos arábes, que tomava por um povo que poderia dominar o mundo se não fosse tão desunidos.
Abrasileirou-se como poucos sem, no entanto, perder suas origens. Teve lojas de roupas no Calçadão de Nilópolis, trabalhou em inúmeras feiras, no Rio e no interior do estado. As histórias sobre as feiras em Angra, em Rio das Pedras e na Rocinha merecem capítulos à parte, não sei se conseguirei fazê-lo. De vez em quando, falava árabe à mesa. Eu, com meu árabe de Casa Pedro (tradicional loja de especiarias, castanhas, frios e temperos do Rio de Janeiro), não entendia nada.
De fato, só entendi árabe uma vez: foi quando em uma missa um padre deu um esporro daqueles na igreja ortodoxa onde me batizei para me casar com a mulher que amo. Naquele dia do esporro, até quem não entendia patavinas da língua, compreendeu que o homem de Deus estava meio que descompassado.
Alah, meu bom Alah! Ele não era religioso de frequentar igreja. A bem da verdade, nutria pela religião certa desconfiança, era um tanto avesso a liturgias de qualquer cargo, era vivido, sabia das coisas. Mas casamento e batizado, por ele, tinha que ser na igreja ortodoxa, lá no centro da cidade a uma hora de carro da cidade Beija-flor, onde estarei neste domingo na missa de sétimo dia dele.
Torcia para o Flamengo. Gostava de mesa farta, de baralho, de casa cheia, de futebol e de cerveja. Geralmente era caladão, mas quando bebia falava pelos cotovelos. E quando íamos embora de sua casa agradecia a presença de todos de uma maneira muito sincera.
Além disso, tinha o indefectível bordão: “Porra, caralho!”, que era usado como vírgula, ponto de exclamação, espanto, indignação etc. A referida expressão era de grande sapiência. Um palavrão bem empregado é uma dádiva.
Eu gostava do seu jeito um tanto hiperbólico. Ele foi o que mais apanhou, o que assistiu a jogos com o maior público (falava de um Brasil e Paraguai de 1969, quase 200 mil pessoas); teve Opala mas por ele teria um Landau. Sua barracas de feira ocupavam o espaço de três ou quatro barracas.
E tinha bigodes. Daí seu apelido: Bigode. Mas também era o Baixinho, o seu Choque, companheiro de dona Naval (Nawal, em árabe), seu grande amor, como deixei claro no primeiro parágrafo.
Dizem que nos momentos que antecedem a morte, a mente continua a trabalhar um pouco que seja mesmo com o coração tenho encerrado as atividades. Talvez seja neste momento permite que velhas e saudosas lembranças se despreguem do seu abrigo escuro e venham à consciência. De tal maneira, não há dor na morte, mas conforto e consolação, a estrada aberta.
Que assim seja, que a lembrança do amor maior pela mulher amada tenha sido o maior conforto para esta outra caminhada do seu Chaouki velho de guerra, porque ninguém, ninguém no mundo amou mais a dona Nauê do que ele.
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.