Por Claudio Renato Ferreira da Silva, jornalista
Extraído do Facebook de José Sérgio Rocha, também jornalista, amigo do blog.
Quando ficava triste, muito triste mesmo, telefonava para o Dorival Caymmi. Cansei de fazer isso, quando, em São Paulo, nuvens de depressão se formavam sobre mim.. Não, nunca fui amigo íntimo do Caymmi. Ele nem sabia quem eu era, na verdade. Mas atendia, conversava, brincava e às vezes até cantava ao telefone. E o céu azulava.
A ideia de ligar para o Caymmi surgiu no fim da década de 80 e não foi minha, mas de um pipoqueiro, também cabeça-de-algodão, que fazia ponto na Rua Souza Lima, em Copacabana, onde namorava platonicamente o poeta velho, moreno e sensual. Vendia menos pipoca, mas podia ver o Caymmi a caminho do mar. “Liga, que ele atende e conversa”, garantia. A primeira ligação me custou cinco doses de coragem em um botequim da Cidade Nova.
Sempre me identificava como jornalista. Caymmi conversava, sem cerimônia, com o repórter de O Globo, de o Estado de S. Paulo, do caderno cultural da Gazeta Mercantil e até do Jornal do Brasil, diário onde jamais trabalhei. Se me dissesse repórter da Folha de Coca, ele atendia, serelepe, da mesma maneira.
Adorava falar ternamente dos amigos: da cantora Carmem Miranda, do pintor Clóvis Graciano, do artista plástico Carybé e, principalmente, do escritor Jorge Amado, além de dona Stela e da família. Jamais deixou de atender às ligações. Ele adorava falar!
Que entre neste texto o testemunho do jornalista Marlúcio Luna para atestar a história que se segue.
Marlúcio fora nos visitar, num sábado ensolarado em meados de 2006, em Vila Isabel. Macumbeiro e marrento inveterado, Marlúcio Luna – mar, luz e lua no mesmo nome – acabara de nos presentear com um CD de cantos do candomblé e a conversa tinha, em uma hora, que desaguar em Dorival Caymmi, ministro de Xangô. Levara a Andréia e o Gabriel, então com 3 anos, moleque simpático e personalíssimo, que desdenhava doces e adorava brócolis.
Bebíamos cerveja e cachaça, quando começamos a falar, levianamente, do gênio de João Gilberto. Um homem de esquisitices, o João Gilberto. Uma pessoa pública que jamais dava entrevistas, com uma biografia repleta de clarões, mas um gênio. Achávamos que João Gilberto poderia ser o homem mais triste do mundo, mas quem o conhece garante que não.
Confessei certa vez ao Mário Canivello que lhe invejava o emprego: assessor de imprensa de João e de Chico Buarque. Canivello é um administrador de silêncios. Só lhe faltava “assessorar” o Dalton Trevisan, que só fala, enviesadamente, pelos contos, cada vez mais curtos.
Mais exaltados e levianos, à medida que a taxa de álcool subia no sangue, começamos a argumentar que João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé – os baianos todos, os cariocas também – pouco ou nada seriam sem Dorival Caymmi. Contei ao Marlúcio que já entrevistara de vez em quando falava ao telefone com o autor de “Samba da minha terra” e pouco mais de cem canções celestiais.
Secretamente, torcia para o Marlúcio duvidar. E ele duvidou. E então resolvi começar o processo pelo princípio mesmo. Ao telefone, teclei 102 e pedi à atendente o número de Dorival Caymmi, em Copacabana. Ele nunca fizera segredo do telefone. Assim, quase 20 anos antes, o pipoqueiro conseguira o contato do ídolo, nas páginas amarelecidas da companhia telefônica.
Dois toques, uma moça atendeu. Perguntou quem era. Dessa vez, para espicaçar mais a emoção, dissemos apenas que Cláudio, de Vila Isabel, queria falar com ele. Caymmi, já adoentado, atendeu prontamente.
– Oi, quem está falando?
– Oi, seu Dorival, é o Cláudio, um fã seu, de Vila Isabel.
– Menino, como vai? Tá sol por aí? Rapaz, Vila Isabel, é? Você acredita que conheci o Noel? Sabe que sou fã dele?
Da minha parte, uma tietagem desavergonhada. Contei, de novo, ter sido embalado ao som de “Acalanto” – a mais bela cantiga de ninar brasileira que lançou a jovem Dinair Tostes Caymmi, então com 19 anos, ao estrelato. Nana Caymmi entrou pela primeira vez em um estúdio para gravar a canção que o pai compusera para ela dormir. Ele riu, falou da gravação histórica pela Odeon, emendava um assunto no outro.
Marlúcio, olhos esbugalhados, parecia não acreditar. Disse que passaria o telefone para outro fã e desejei ao mestre o restabelecimento da saúde. Caymmi não entendeu:
– Meu filho, não desliga não!
Marlúcio tomou o telefone da minha mão, começou a falar com o Caymmi e desmoronou. Choramos. E até hoje a súplica remói.
– Meu filho, não desliga não!
Dorival Caymmi, o maior gênio popular do Brasil, morreu em 16 de agosto de 2008, aos 94 anos. Fui informado da morte naquele sábado de manhã, pelo amigo e também jornalista Eduardo Carvalho. Nada falamos. Trocamos silêncios.
Tempos depois, assisti à reapresentação na TV de uma antiga entrevista de Paulinho da Viola, que ficara anos sem entoar uma canção de Cartola. “Agora, acho que posso”. Ele acariciou o violão e cantou lindamente “As Rosas não falam”. Silenciei sobre Dorival. Embora ele jamais saísse do meu pensamento, as palavras não saíam. Agora, talvez, eu possa.
Autor do belo texto