Seu Psiu

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, apresenta mais um personagem peculiar. Trata-se do Seu Psiu, que César constrói abaixo.

“Certamente ele era um Bucco*. Só que ninguém se lembrava do seu nome de família quando solicitava seus serviços. Para o que desse e viesse, ele era o seu Psiu, o único, o melhor marido de aluguel das redondezas.
O apelido tinha origem numa brincadeira de mau gosto. A dentadura frouxa fazia com que ele de quando em quando assoviasse enquanto falava. Daí para Psiu foi um pulo.




Pau-pra-toda-obra, não havia o que ele não consertasse – a não ser a dentadura, é claro, que protético ele não era. Mas disposição e curiosidade ele tinha de sobra. Se houvesse serviço ele aceitava sem pestanejar.

Alguns afirmam que ele tinha sido marinheiro, tendo trabalhado em Casa de Máquinas de opulentos navios. De fato, não havia bomba d´água que ele não reparasse com o engenho que lhe cabia.

Das casas de máquinas, para os prédios de apartamentos dos Cappellis também foi um pulo. E assim ele foi se aprimorando, diversificando seus serviços: instalou ventilador-de-teto, trocou fiação corroída pelo tempo, desentupiu privada e pia, trocou gás de geladeira e de ar-condicionado, remendou piso. Para alguém de sua estirpe era estranho topar com gente que tinha medo de tomar choque ao trocar uma lâmpada.


Ele era baixinho, magro e elétrico, mesmo próximo ou passado dos setenta. Tinha grandes sulcos nos rostos, olhos pequenos e vivos, as mãos quadradas. Não andava desaprumado, pelo contrário, tinha certa elegância nas roupas já desgastadas. Talvez sua única vaidade fosse a de tingir os cabelos de acaju para remoçar.

Muita gente ficou espantada quando o viu sem fumar. Logo ele que fumava como uma chaminé. Ele não fez folclore da decisão, não chupou balas de hortelã nem usou adesivos de nicotina: apenas disse que certa vez se sentiu sem fôlego ao subir a ladeira da sua rua. E que isto foi suficiente para que ele abandonasse o cigarro. Simples, simples assim.


Sua única filha era a Estelita, que nasceu namoradeira. Ela teve uma filha ainda adolescente. Depois, mal tendo chegado à vida adulta, teve outra filha. Seu Psiu cortou um dobrado com a Estelita, bom pai solteiro que era. Ninguém jamais o perguntou a respeito do paradeiro da mãe da espevitada. Ele também jamais tocou no assunto.


Quando a primeira neta chegou, ele já tinha ampliado a casa onde vivia. Fez um segundo cômodo praticamente com as mãos. Contou com a ajuda de alguns Buccos, é claro, mas sem fugir do serviço pesado, que para ele era o que lhe dava saúde. Não há vida sem lavouro, dizia ele em tradução ruim.


Estelista morreu jovenzinha de câncer. Talvez esta tenha sido a época mais triste da vida do Psiu, que foi visto a vagar pelas ruas desalinhado, de cabelos brancos e sem dentadura, parecendo ter perdido a vontade de andar asseado, de tingir os cabelos, de sorrir.

Depois ele recuperou as forças de dentro da Casa de Máquinas de si mesmo, fez os reparos necessários, botou tudo pra funcionar. Ele cuidaria ainda mais das netas e elas cuidariam ainda mais dele e do cachorro. Elas por eles, eles por elas. E assim foram felizes.

Deu um aperto no coração quando se soube da notícia da partida do seu Psiu. Teve gente que lamentou a perda dele como a de um ente querido ou a de alguém famoso. Eu fui um deles.


Ainda bem que as meninas estavam crescidas. Elas que cuidassem do possível. Do terreno, da mangueira, da casa, do cachorro. Dali em diante, tudo o que viesse seria na base do elas por elas.


Deram as duas, em vez de revirar a caixa de ferramentas, como faziam desde miúdas, de mexer na caixa de fotografias do avô, como quem não quer nada.

Aquela mulher de cabelo vermelho que apareceu no enterro do vovô PSiu, que chorou em silêncio, não era a cara da mulher da foto, só que mais velha? Mas isto era ou não era licença poética demais?

*Personagem da coluna, Bucco é um “Faz tudo”, que vive em busca de bicos. Sempre antenado numa oportunidade, qualquer que pinte, Bucco é um dedicado pai de família.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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