Por Marco Aurélio Vasconcellos, cantor, compositor e poeta
Na minha meninice, a campanha (campo) era o meu enlevo. A cada ano, aguardava com ansiedade o mês de janeiro, quando ia de Maria Fumaça com meu pai para a distante Alegrete.
Pura magia os odores da estação e do carro-dormitório, os vapores cinzentos da locomotiva e a azáfama dos carregadores com pilhas de bagagens nos carrinhos.
Meu coração disparava quando, ao se pôr em movimento, toda a composição estremecia no entrechoque dos engates. Lá adiante, a máquina a vapor a resfolegar, cuspindo constelações de centelhas avermelhadas.
Vez por outra, acompanhando com a janela aberta a longa fila de vagões a serpentear nos trilhos, alguma fagulha fugidia infernizava meus olhos. Mas esse desconforto não era maior do que o prazer de apreciar as evoluções do trem, sob o embalo cadenciado do te-tec, te-tec, te-tec, te-tec das rodas, amassando os trilhos.
A noite, no beliche da cabina, era incomparável. Enquanto meu pai ressonava lá em cima, eu, da cama inferior, acompanhava, pela vidraça, o desfilar das estrelas e o bruxuleio das lamparinas das casinhas marginais que iam ficando para trás.
Enquanto o sono não vinha, antegozava os folguedos que me esperavam: as caçadas de tatu, as campereadas, os banhos de rio e de açude, as prosas de galpão e as estórias de Siá Castorina, na cozinha de tijolos de barro apartada das casas. Ali imperava a fiel cozinheira septagenária de meio-sangue índio, olhos estreitos, meros riscos, pele de pergaminho e bondade infinita.
A chegar em Santa Maria ! Baldeação para Bagé e Alegrete, estridulava a voz do camareiro. Sem tardança a gare da estação ferroviária desfilava na vidraça. A composição estremecia toda sob os guinchos dos freios e a gente se preparava para descer, tomar um aguado café com leite e esperar um bom tempo até pegar outro trem para o nosso destino.
Mais cinco horas de viagem nos separavam da parada do Passo Novo, o capataz já nos esperando com a aranha (charrete) puxada pelo tobiano-colorado. Dali eram mais duas léguas e meia por ásperos e tortuosos caminhos, até o aconchego de Siá Castorina.
Com a cumplicidade dela iniciei-me nas práticas galponeiras do chimarrão e do cigarro, que me eram negados pela peonada. Por isso, após o jantar, eu saia sorrateiro para a cozinha, sentava num cepo e, fascinado pela dança das sombras projetadas pela lamparina nas paredes nuas, ouvia os causos de Siá Castorina sobre o Tesouro dos Jesuítas, a Cobra-luz, o Saci-pererê, o Negrinho do Pastoreio e as assombrações do Cerro do Jarau.
Entre um e outro ronco de cuia, eu pitava cigarrinhos de papel de embrulho, até que me chamassem para dormir.