Mais um capítulo da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Desta vez, César nos transporta ao autoconhecimento de um Sidarta do subúrbio, que que chega ao ponto de buscar a paz no interior de um ônibus. Conseguirá?
“Chamava-se Sidney este professor, mas da escola ganhou o apelido de Sidarta. Escola? Isso era coisa do Freddy Krueger, vulgo professor Alfredo, que criou a alcunha em um momento de inspiração.
Diga-se de passagem, o apelido não era nada mal para um professor cujo passatempo era estudar as religiões ocidentais e orientais. Além disso, o corpanzil de Sidarta, com um pouco de esforço, nos remetia àquelas imagens de Buda (?) que são colocadas em pratinhos assoreados de moedas, dizem, para atrair fartura.
Acontece que Sidarta teve seu carro roubado. Depois de tantas reencarnações sem andar a pé, ele teria que pegar ônibus para se deslocar para as escolas onde trabalhava.
A princípio gostou. Era uma oportunidade de autoconhecimento mais ou menos como uma caminhada a Santiago de Compostela. Acordaria ainda mais cedo e teria tempo para observar os transeuntes, os sem-teto, os passageiros, as pessoas deste mundo.
Depois de ter se deparado com tantos rostos amassados, Sidarta chegou à conclusão que ele também deveria estar com a cara amassada como a daqueles cachorros que, de tão feios, se tornavam simpáticos. Mas, por dentro, por dentro, Sidarta parecia levitar com este novo mundo que era tão próximo ao seu e que, no entanto, ignorara por tanto tempo.
Ainda na primeira semana, Sidarta topou com a tentação. Embarcou. Sentou-se perto da janela. Colocou os fones de ouvido para ouvir as canções longas, repetitivas de que tanto gostava. Em instantes, estava de boca aberta, com o rosto colado no vidro, talvez babando, em profunda meditação.
Quando acordou, teve a impressão de que houvera um tsunami no coletivo. Aos gritos de “Ô, ô”, as pessoas de pé, ou na ponta do pé, eram empurradas, invadindo o espaço das pessoas que estavam sentadas. Isto fez com que Sidarta ficasse praticamente imprensado contra a janela.
Quem estivesse de fora do coletivo talvez desse umas boas risadas: a cara de Sidarta na certa sugeria caretas, imagens deformadas, assombrações.
Por fim, naquela lata de minhocas, pior que lata de sardinhas, Sidarta teve um mal súbito e tudo escureceu. Claustrofobia: compartilham da experiência aqueles, cristãos ou não, que passaram por exame de tomografia computadorizada.
Ao cabo de uma semana, ocorreram viagens melhores e piores. Sidarta mofou no ponto de ônibus por mais de duas horas; Sidarta ficou preso na roleta; Sidarta deixou cair o troco; Sidarta desceu dois pontos antes ou dois pontos depois do desejado, por distração dele ou do motorista, entre outras coisas.
Na semana seguinte, Sidarta aceitou a carona de Alfredo. Elogiou a conservação do fusca azul, o carro do povo.
“Impecável, impecável”, dizia para si mesmo feito um mantra e nem se incomodou com o chiado do rádio ou com o calor que fazia lá fora, porque para ele, naquele momento, até o fogo era fresco.
Teria alcançado o Nirvana? Teria lido Herman Hesse?
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.”