Por Reinaldo Azevedo, compartilhado do Facebook do amigo do Bem Blogado, João Lopes
Um dia depois de Silvio Almeida ter sido esquartejado em praça pública antes das provas, milhares de pessoas foram à Paulista para cobrar a anistia a condenados com provas. Também querem, como é sabido, o impeachment de Alexandre de Moraes, ministro-relator do Supremo que conduziu os processos.
Dada a temporalidade dos eventos e o “timing” do “Me Too Brasil”, o massacre de Almeida serviu de esquenta para o ato convocado pela extrema-direita fascistoide. E, segundo se reporta, assim as coisas se deram nas redes. O resultado não foi lá essas coisas para a fascistada. Mas isso, em particular, é matéria para outro texto.
Ou bem a gente começa a pensar a respeito de certas práticas, ou bem se cria um novo tribunal no Brasil, composto por membros dessa ONG, que poderia ser batizado de STES: Supremo Tribunal de Execução Sumária.
Há uma algaravia condenatória segundo a qual não há alternativa ao aplauso a uma cabeça no poste (a de Almeida) ou à condescendência com o assédio.
Sempre que debatedores e opinadores se veem na contingência — e vou fazer precisamente isto agora — de evidenciar seu compromisso com os direitos fundamentais e com a civilidade como uma espécie de alerta e vacina para que não sejam malcompreendidos, isso é evidência de que se está sob o signo de uma doxa que não admite contestação ou contraditório.
Aí se torna obrigatório dizer, por exemplo, que apontar as ilegalidades da Lava Jato não implica conivência com a corrupção; que condenar o massacre do povo palestino não é um flerte com o ataque terrorista do Hamas; que se opor à execução sumária de um ministro não é uma forma de minimizar a agressão às mulheres.
Já me expressei a respeito no programa “O É da Coisa” na BandNews FM e no BandNewsTV. Torço muito para que o ex-ministro consiga provar que nada fez de errado, dado que, nessa área, o princípio da presunção da inocência — segundo o qual cabe ao acusador o ônus da prova — entrou em falência faz tempo. E também isso precisa ser compreendido à luz da realidade.
De fato, ao longo da história, homens usaram a sua posição de poder para assediar mulheres, que não encontravam caminho para que sua voz fosse ouvida, de sorte que o aparato legal acabava, na prática, protegendo o criminoso, não a vítima.
Posto isso, pergunto: podemos abrir mão, no caso do assédio ou de outro crime qualquer, da presunção da inocência? Sem ela, teremos o quê? Logo, e chegarei lá, é preciso que se faça também um questionamento sobre os métodos do Me Too.
A DEMISSÃO
Dadas as circunstâncias — a voragem desencadeada pela denúncia do Me Too e a informação, nunca contestada por Anielle Franco, de que ela própria havia sido sexualmente importunada –, não restava ao presidente Lula alternativa à demissão de Almeida.
Se, na esfera penal, a presunção da inocência pede que o acusador apresente a evidênciade que o crime foi cometido, já que o acusado não tem como produzir prova negativa — a menos que tenha um álibi para contestar cada uma das acusações, o que é impossível porque ele as desconhece —, não é assim na política.
Um ministro não pode continuar no cargo com tal suspeita sobre os ombros, mormente se titular de uma pasta que defende os direitos humanos e a cidadania. Ainda que só cuidasse, sei lá, de Assuntos Aleatórios e Generalidades, como permanecer?
O tempo e os critérios da política não são os de um processo. E por isso mesmo é preciso que se tome especial cuidado.
SOBRE O DEVIDO PROCESSO LEGAL
Retomo um fio lá do começo para dar continuidade à tecitura do meu texto e convidá-los a algumas reflexões. Vivemos um tempo muito particular em que criminosos contumazes reivindicam o seu suposto “direito” de afrontar o Código Penal e a Constituição.
Faz-se um ato em defesa do impeachment de um ministro do Supremo que ousou e tem ousado cumprir a lei, o que, ó desdita!, tem-lhe rendido a animosidade até de setores da imprensa.
Um fanfarrão na Presidência da República passou quatro anos a ameaçar o país com um golpe de Estado. Reuniu o seu ministério, incluindo o da Defesa, no dia 5 de julho de 2022, com o fito de suspender a realização da eleição.
Não tendo logrado o intento e tendo sido derrotado, maquinou modos de impedir que se cumprisse a vontade da maioria expressa nas urnas. Dado um novo malogro, chegou-se ao 8 de janeiro de 2023.
O evento deste 7 de setembro pede que se passe uma borracha na história e que se puna o juiz que ousou expulsar do jogo os que estavam em campo para quebrar canelas, não para jogar bola.
O que isso tem a ver com Almeida, Reinaldo?
A ordem democrática trava uma luta agônica, de vida ou morte mesmo, com as forças do caos. E não é só no Brasil. Já há farta bibliografia a respeito. Os que estamos em defesa de tal ordem — e eu estou — não temos outra arma que não a afirmação dos nossos princípios, tão permanentemente vilipendiados nas redes, por exemplo, e dos nossos valores. E um deles atende precisamente pelo nome de “devido processo legal”.
“Ah, mas não querem a cabeça de Alexandre justamente porque ele não o respeita?” Não! Eles a querem precisamente em razão do contrário: porque não aceitam que os ditames da vida democrática imponham limites a suas ações, vontades e prefigurações escatológicas.
Quando até a OAB recorre a uma ADPF para contestar decisão de ministro e de Turma do Supremo, sabendo que o instrumento é escandalosamente impróprio para tal fim, não se trata apenas de uma divergência; o que se tem é a depredação dos fundamentos do estado de direito.
ERROS
Não havia como, sabemos, Almeida permanecer no governo, e sua demissão foi fulminante depois que o Me Too tornou pública a acusação, sem o desmentido de Anielle Franco. Se verdadeiro o buchicho de que suspeitas circulavam havia tempos pelos corredores de Brasília, é preciso, então, que se revejam ou se criem protocolos.
Sendo assim, há uma coleção de erros. Se realmente importunada, a ministra não poderia ter permitido que o caso ficasse no limbo. Ou bem cobrava uma atitude do governo e, não sendo atendida, deixava a pasta, explicando a razão, ou bem colocava a conveniência política acima de sua indignação.
Se, por seu turno, Almeida tinha ciência de que algo se adensava a ameaçar o seu cargo, deveria ter mobilizado instâncias oficiais ou para confrontar acusadores ou para deixar a função. Sendo como se diz, igualmente erraram todos os que, podendo interferir, permitiram que o caso ficasse fermentando até que uma ONG, falando em nome de denunciadoras anônimas, optasse pelo “cortem-lhe a cabeça”, usando a guilhotina da imprensa.
Não me peçam para condescender, em qualquer caso, com instrumentos discricionários, ainda que não oficiais. Sei bem o quanto me custou — e como foi caro! — opor-me aos métodos da Lava Jato.
Naquele tempo, para apelar a expressão bíblica, uma miserável indagação sobre os métodos de
Sergio Moro ou de Deltan Dallagnol tornava o autor suspeito de conivência com a corrupção. Hoje, eles são quem são. Dallagnol, diga-se, estava num dos carros da Avenida Paulista, a pedir o impeachment de Moraes.
Uma coisa é Almeida não ter como permanecer no governo, e não tinha; outra, distinta, é receber tratamento de condenado sem que se conheçam nem mesmo suas acusadoras.
À diferença de alguns colegas, acho, sim, relevante que a ONG tenha tido seus interesses contrariados pelo Ministério, numa licitação envolvendo algumas milhões, antes da denúncia fulminante.
Nesse caso, tem de valer o que, antes, valia apenas para a mulher de César e, hoje, felizmente, vale também para o marido da mulher de César: não basta que sejam honestos; também têm de parecer.
Ou os meus colegas vão ignorar o fato de que, sendo verdadeira a história de que a suspeita já circulava para cá e para lá, as negociações milionárias do Me Too se desenvolviam enquanto, nos subterrâneos, existia uma espécie de ameaça?
A resposta furiosa da ONG à nota emitida por Almeida em suas ultimas horas no ministério não resolve a questão. As coisas se deram ou não daquela maneira?
QUE SAÍDA?
Almeida enfrenta a maior de todas as punições, que é a impossibilidade de se defender porque, por ora, o que se tem é a acusação de uma ONG, antes de qualquer investigação, e a da ministra Anielle, ainda que vazada numa linguagem indireta. É claro que existe a possibilidade de que tudo seja verdade.
Não estou eu aqui a asseverar a inocência de Almeida. Como eu poderia fazê-lo? Mas que sistema de direito se está erigindo no país quando se atribui a uma entidade, que ouve pessoas que não se mostram, um poder que nenhum tribunal superior tem: o da condenação sem direito a defesa ou recurso?
Sim, eu mesmo escrevo acima que a natureza do assédio supõe que se busque uma saída que impeça o criminoso de se esconder nas dobras da lei. Se me perguntarem agora qual é o caminho, também não sei.
Talvez se possa pensar numa vara especializada de Justiça, em que o acusado e seu defensor possam saber quem são os acusadores, com os processos tramitando em rigoroso sigilo — e, nesse caso, para proteger as vítimas, já que, então, teriam tomado a decisão de não aparecer.
Não estou aqui, de modo oblíquo, a pôr em dúvida o testemunho das mulheres que disseram ao Me Too terem sido assediadas por Almeida. Como eu poderia fazê-lo? Não sei quem são nem conheço as circunstâncias.
Mas também não sabem e também não conhecem os que estão tratando o ex-ministro como culpado.
Li em algum lugar que só os homens se importam com esta questão. Em primeiro lugar, não é verdade. Em segundo lugar, não se trata de um debate de gênero. Temos de nos perguntar se podemos trabalhar com o conceito de que existem acusadores que estão acima da lei.
Se decidirmos que sim, estamos também admitindo que existem acusados que estão abaixo do direito de defesa. Sendo o Me Too, nesses casos, o porta-voz legitimado das vítimas, então se terá criado a quarta instância da Justiça em que se condena sumariamente, sem julgamento.
TRIBUNAIS DE EXCEÇÃO E IDEOLOGIA
Situei o caso de Almeida no Brasil de hoje. Para quê? Para criar diversionismo? Para assegurar que ele é inocente? Os que leram com atenção sabem que não. Quando evoco, acima, as lambanças do bolsonarismo e a tentativa de derrubar um ministro do Supremo porque este condenou golpistas com provas, estou chamando a atenção para o fato de que, mundo afora, a prática típica e recorrente da extrema-direita consiste em desmoralizar a Justiça, acusando-a de ser seletiva e de estar a serviço do interesse de… (as acusações variam segundo os fascistoides locais) comunistas, globalistas, ateus etc.
A rigor, não querem Justiça nenhuma. Advogam o vale-tudo do que chamam “liberdade de expressão” porque querem eleger, sem que respondam por isso, os inimigos que lhes são úteis: os esquerdistas, os imigrantes, os gays, as mulheres, os negros… Usam as redes e suas milícias digitais como tribunais de exceção. Espezinham, humilham, avacalham, promovem linchamentos virtuais.
No caso de Almeida, extremistas de direita — notórias e notórios inimigos do feminismo
e das políticas afirmativas para negros — levantaram a sua voz não para se solidarizar com Anielle e com as acusadoras ainda anônimas, mas para espezinhar os então dois ministros, os progressistas, as políticas de reparação, o livro de Almeida sobre o racismo estrutural, as lutas contra a barbárie, que constituem pauta importante do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e da Igualdade Racial. Seriam, asseguram esses monumentos morais, todos hipócritas.
E, claro!, a verdade estaria com eles, que se orgulham de seu antifeminismo, de sua oposição às políticas afirmativas e de seu apego, que pretendem contestador, ao politicamente incorreto.
Quando deixam claro não respeitar a Justiça porque esta seria parcial — e se ouviu isso de novo no evento flopado da Paulista —, estão, na verdade, a deixar claro que só aceitam o seu próprio julgamento, segundo os seus próprios critérios.
Nem o Me Too nem entidade nenhuma, pouco importa a causa que defendam, podem ambicionar a condição de tribunal de exceção. Como fazer para que o direito de defesa não proteja o assediador? Acima, dou uma sugestão. Muitas outras podem ser debatidas.
Uma coisa me parece inequívoca: a parceria de uma ONG com um veículo de imprensa não pode ser uma sentença única e irrecorrível.
Não faz tempo, advogados do grupo Prerrogativas se levantaram, de modo correto, contra a palavra do delator como prova e estão na raiz de uma mudança importante na Lei 12.850: a delação é meio para obtenção da dita-cuja. Sabemos o que a aberração que estava em curso custou ao Brasil.
“Está comparando uma eventual vítima de assédio com um delator, Reinaldo?” Não. Mas o Me Too não pode ter mais poder do que tinha a teratológica Lava Jato naqueles dias insanos, que levaram o país à ruína.
ENCERRO
Que se faça, no caso das acusações contra Almeida, a devida investigação e que ele arque, se culpado, com as consequências, na forma da lei.
O grupo Prerrogativas, diga-se, só se formou porque advogados diziam não aceitar o vale-tudo da Lava Jato, não é isso?, nem a conversa de que o combate à corrupção era tão importante que se podia abrir mão do devido processo legal, ou, de outro modo, não se faria justiça. Aquele Prerrogativas estava certo.
Este é um texto inequivocamente contra o assédio. E contra tribunais de exceção.
Ah, sim: “E se a investigação vier a comprovar, Reinaldo, que o ex-ministro é culpado das acusações?” Não retiro uma linha do meu texto. Eu o escrevo em defesa do devido processo legal, não da impunidade. Ou teria ido neste 7 de setembro à Avenida Paulista aplaudir a fascistada.