Sistema público de comunicação: o Brasil na contramão da história

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Por Elizângela Araújo, para o FNDC – 

Embora a sociedade brasileira, majoritariamente, não entenda o que significa um sistema público de comunicação, visto que não há fóruns midiáticos de massa pautando o assunto, fortalecer esse modelo, esboçado com a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) em 2007, é uma das tarefas mais urgentes no campo da comunicação social. A despeito desse modelo ser apontado como um dos pilares da democracia, os brasileiros ainda tendem a confundi-lo com “emissoras chapa-branca”, numa referência negativa ao que seriam as emissoras do campo estatal.

Para desanuviar a discussão e contribuir com a democratização do setor de radiodifusão no país, o Projeto de Lei de Iniciativa Popular (PLIP) da Mídia Democrática, lançado em 2013 pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), não só define e separa os sistemas público, estatal e privado de comunicação, como estipula regras e fontes de financiamento para o sistema público.




Embora o Art. 223 da Constituição Federal estabeleça a complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal, a confusão entre o que seria uma emissora pública, ainda não dirimida pela Lei nº 11.652/2008, que cria a EBC, resulta numa série de entraves para a consolidação dos modelos público e estatal no país.


A TV Brasil é uma das emissoras geridas pela EBC, que esboça um modelo de comunicação pública no Brasil

Para Bia Barbosa, coordenadora do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e membro da coordenação executiva do FNDC, é preciso ir muito além da EBC. Ela explica que a construção de um sistema público forte e eficiente, com participação da sociedade na sua gestão, garantirá pluralidade maior de vozes, conteúdo e opiniões nos meios de comunicação de massa. “Para isso há dois caminhos específicos: o primeiro é impedir, com regras democráticas, a concentração dos meios de comunicação; o segundo é pensar em políticas públicas que fomentem outras mídias”.

Bia afirma que países que trilharam ambos os caminhos têm, hoje, sistemas públicos de comunicação fortes e eficientes. Ela cita como exemplos Inglaterra, França, Portugal e Alemanha, na Europa; Canadá, Estados Unidos, Colômbia, Venezuela e, mais recentemente, Argentina, nas Américas; além do Japão e da Austrália. “São modelos diferentes, cada um com suas características, modelos de gestão e fontes de financiamento particulares, mas essencialmente refletindo os interesses públicos e não de grupos privados, como acontece no Brasil, onde só conhecemos o modelo privado”.

O jornalista Jonas Valente, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF) e funcionário da EBC, afirma que essa discussão deve focar na definição do modelo público brasileiro, garantir participação da sociedade e estabelecer fontes de financiamento capazes de perenizá-lo e garantir sua eficiência. “Acontece que ainda não temos sequer uma definição legal, pois a lei que cria a EBC trata da radiodifusão pública somente no âmbito do Poder Executivo Federal ou outorgada a entidades da sua administração indireta”.

Definição

O PLIP da Mídia Democrática define sistema público como aquele que compreende as emissoras de caráter público ou associativo-comunitário, geridas de maneira participativa, a partir da possibilidade de acesso dos cidadãos a suas estruturas dirigentes e submetidas a regras democráticas de gestão, desde que sua finalidade principal não seja a transmissão de atos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

De acordo com o estabelecido no PLIP, fariam parte do sistema público de radiodifusão não somente as emissoras que atualmente integram o escopo gerido pela EBC, mas também aquelas educativas mantidas pelos governos estaduais, assim como as comunitárias. José Luiz Sóter, coordenador executivo da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), afirma que as rádios comunitárias sempre se colocaram como emissoras públicas.

Embora a Abraço tenha lançado este ano um projeto de iniciativa popular de redefinição da Lei 9.612/1998, que institui o serviço de radiodifusão comunitária, o apoio ao PLIP da Mídia Democrática continua. “Esse projeto, que a Abraço ajudou a construir e aprovar, é fundamental, mas temos nossas especificidades e por isso lançamos nossa proposta de lei”. Segundo Sóter, atualmente há cinco milhões de rádios comunitárias autorizadas operando no país. Dessas, 4,7 mil com autorização definitiva. Mas ainda há um déficit de pelo menos 25 mil emissoras.

Fundo público para financiar o sistema

O PLIP institui o Fundo Nacional da Comunicação Pública com o objetivo de apoiar a sustentabilidade das emissoras do sistema público. O fundo seria composto por verbas do orçamento público estadual e federal, doações de pessoas físicas e jurídicas, pagamento pelas outorgas por parte das emissoras privadas, recursos advindos da Contribuição e Intervenção no Domínio Econômico (Cide) e por 25% da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, prevista na Lei 11.625/2008, Art. 32, entre outras receitas. Do total do fundo, aos 25% serão destinados às emissoras associativas e comunitárias.

Embora a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública seja prevista na lei que cria a EBC, ou seja, há seis anos, até pouco tempo as empresas ligadas ao Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal (Sinditelebrasil) se recusavam a recolhê-la. Enquanto a Justiça não decide a questão em caráter definitivo, os recursos são depositados em juízo. Somente entre 2009 e 2012 haviam sido depositados R$ 1,25 bilhão em juizo. Desse total, 75% são destinados à EBC; 2,5% à Agência Nacional de Telecomunicações; e 22,5% terá seu destinatário definido por meio de decreto.

Em dezembro de 2013, a EBC obteve a primeira vitória contra a TIM, que teve que liberar depósitos no valor de R$ 310 milhões (sem correção monetária). No início deste ano, OI e Claro resolveram fazer o pagamento à EBC em vez de depositá-lo em juízo, já que o depósito judicial não é dedutível do Imposto de Renda. Entretanto, essas empresas não liberaram o valor que tinha sendo depositado em juízo até 2013.

Jonas Valente chama atenção para outra questão: “o governo tem usado esse recurso para substituir o que estava previsto no seu orçamento”. Ele explica que o atual mecanismo de financiamento faz com que o governo possa criar uma subordinação desses recursos, influenciar a empresa, “abrir e fechar a torneira”. Por isso, ressalta o jornalista, é necessário adotar um financiamento estável, que não possa ser contingenciado, como o fundo proposto no PLIP. Para Sóter, da Abraço, a criação de fundos públicos também é essencial para fortalecer as emissoras comunitárias.


A TV Tupi foi a primeira emissora do Brasil e da América Latina e a quarta do mundo. Durante anos monopolizou a comunicação no país

Por que estamos na contramão da história

A predominância do modelo comercial de radiodifusão no Brasil não é obra do acaso. Ele é fruto de uma escolha feita ainda nos primórdios da história desse serviço. Para os Europeus, por exemplo, foi o contrário. Até a década de 80 a maioria nunca havia se deparado com uma radiodifusão mantida pela propaganda. “O bloqueio ao acesso a uma rádio e a uma TV sem publicidade formou gerações alienadas”, afirma o professor Laurindo Lalo Leal Filho, da Universidade de São Paulo (USP), na introdução do livro Sistemas públicos de comunicação no mundo – Experiências de doze países e o caso brasileiro, editado pela Paulus/Intervozes em 2009.

Ele lembra que afora tentativas regionais, como a da criação de uma TV educativa pela prefeitura do então Distrito Federal, no início dos anos 50, o único projeto de caráter nacional existente antes da atual TV Brasil girou em torno da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. “O segundo governo Vargas chegou a outorgar uma concessão para seu funcionamento. No entanto, pressionado pelas mesmas forças conservadoras que o levaram à morte, ele não concretizou a iniciativa”.

Ainda segundo Laurindo Filho, o sucessor de Vargas, Juscelino Kubitschek, chegou a confirmar a outorga do canal 4 do Rio para a Nacional, em 1956, mas foi literalmente ameaçado pelo então coronel da mídia Assis Chateaubriand, poderoso dono do grupo Diários Associados, que tinha a TV Tupi e que durante anos monopolizou a comunicação no país. “Se vossa excelência der o canal de TV à Nacional, jogo toda a minha rede de rádio, imprensa e televisão contra o seu governo”, conta Mário Lago em suas memórias. “JK recuou, o Brasil perdeu a sua TV pública, mas quem ganhou não foi o Chatô. Em 1957, Juscelino passou a concessão para as Organizações Globo, que somente em 1965 poria sua emissora no ar”, conta o professor, arrematando que, assim, o monopólio comercial da TV brasileira permanecera intacto e, com ele, a alienação da sociedade em relação ao modelo público.

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