Sites neonazistas crescem no Brasil espelhados no discurso de Bolsonaro, aponta ONG

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Por Gil AlessiNaira Hofmeister, compartilhado de El País – 

Número de páginas na Internet que pregam a supremacia branca cresceram desde 2019 e se alimentam de discursos e de gestos do presidente e de outros apoiadores, dizem estudiososO presidente Jair Bolsonaro toma um copo de leite durante transmissão ao vivo.

A sombra da suástica nazista avança no Brasil de Jair Bolsonaro. Empoderados pelo discurso racista, anticomunista, armamentista e LGBTfóbico do presidente, grupos radicais de extrema direita e de inspiração hitlerista proliferam nas redes, e até se arriscam a se mostrar em pequenos grupos nas ruas com bandeiras, palavras de ordem e, por vezes, violência. O crescimento dessa vertente de ultradireita no país durante o Governo Bolsonaro pode ser quantificado na Internet. Segundo levantamento realizado pela Safernet, organização não-governamental que promove os direitos humanos na rede e monitora sites radicais, em maio de 2020 foram criadas 204 novas páginas de conteúdo neonazi, ante 42 no mesmo mês do ano passado e 28 em maio de 2018. Segundo a organização, há uma relação de causalidade entre o que diz e faz o presidente e esta radicalização nas redes. Em nota, a entidade afirmou ser “inegável que as reiteradas manifestações de ódio contra minorias por membros do Governo Bolsonaro têm empoderado as células neonazistas no Brasil”. A reportagem pediu um comentário do Planalto sobre estes dados, mas não obteve resposta.

O fenômeno do crescimento do neonazismo no país e sua atração pelo presidente também é identificado por outros estudos. A antropóloga da Universidade de Campinas Adriana Dias, especialista no tema, identificou 334 células neonazistas em atividade no país no final de 2019, a maioria ainda ativa hoje. Cada célula tem entre 3 e 30 pessoas, de acordo com ela. “Existem grupos ou células neonazistas que têm se aproximado mais do bolsonarismo e dos atos recentes de rua”, afirma Dias. Segundo ela, existem os “autointitulados soberanistas [ligados ao filósofo Olavo de Carvalho, guru intelectual do clã Bolsonaro], que aparecem em células neonazistas no Paraná, Distrito Federal, São Paulo e em Goiânia”, afirma.




Esse caldo político que tanto a Safernet como a pesquisadora apontam teve novos capítulos nos últimos meses. O mais recente ocorreu em uma manifestação pela democracia realizada em 31 de maio na avenida Paulista, quando um grupo empunhou bandeiras do grupo ucraniano radical Pravii Sektor (Setor Direito). Dias depois, o presidente postou nas redes sociais um vídeo com uma frase atribuída ao ditador fascista italiano Benito Mussolini, que foi aliado de Adolf Hitler: “É melhor um dia como leão do que cem como ovelha”. A mesma frase já havia sido usada por Donald Trump, que também é visto como tendo um discurso dúbio diante de grupos neonazis norte-americanos.

Neonazistas “decepcionados”, mas à disposição

No caso de Bolsonaro, a popularidade do presidente entre a ultradireita ficou clara já em outubro de 2018, quando ele disputou e venceu o segundo turno das eleições. Naquele mês, o número de novas páginas neonazistas em redes sociais e sites no Brasil chegou a 441 (ante 89 em setembro). Segundo a ONG Safernet, foi um pico histórico. A vitória de Bolsonaro foi comemorada em várias discussões no fórum de ódio conhecido como StormFront. O site, que usa o bordão White Pride World Wide (Orgulho Branco em Todo o Mundo), foi fundado por Don Black, ex-integrante da Ku Klux Klan —grupo racista surgido no final do século 19, mas ativo até hoje, e responsável pelo assassinato de dezenas de negros nos Estados Unidos. O tópico intitulado “Bolsonaro wins Brazil” (Bolsonaro ganha o Brasil) teve mais de 7.000 visualizações. A maioria dos comentários é feita em tom elogioso ao “ex-capitão do Exército de extrema-direita”, como é chamado por um usuário da rede. Ironicamente, o presidente é alvo de críticas no fórum racista por sua aproximação com Israel. “Eu concordo que ele é ruim na questão judaica, mas pelo menos ele está colocando descrédito na mídia e isso abre a porta pro nosso movimento”, escreveu um supremacista brasileiro no fórum.

Postagem feita no fórum neonazista 'Stormfront'
Postagem feita no fórum neonazista ‘Stormfront’

Em um contexto global de aumento do radicalismo e da xenofobia, Bolsonaro se tornou a escolha da vez dos supremacistas na América Latina. “Todos os movimentos [neonazistas] apostaram no bolsonarismo, e alguns estão profundamente decepcionados com o presidente porque esperavam que ele fosse impor uma gestão ainda mais à direita: coisas como proibir a homossexualidade no Brasil”, afirma Dias. Uma facção ainda mais radicalizada, que de acordo com a pesquisadora corresponderia a aproximadamente 25% dos neonazistas brasileiros, esperava “uma direita totalmente radical, ultra total, e ele está namorando com isso”. O flerte do presidente com uma “intervenção militar” se tornou mais frequente nas últimas semanas, à medida em que se ventila a possibilidade de um impeachment, ainda sem chances de prosperar no Congresso, e que o próprio presidente é alvo de um inquérito para apurar aliados e familiares entram na mira de invesgações.

Um dos maiores apelos do ideário bolsonarista para os neonazistas é a questão da raça. O presidente chegou a ser acusado —e inocentado— pelo crime de racismo, e se opõe às políticas de cotas raciais. No fórum radical StormFront um dos frequentadores indaga “o que os brasileiros brancos ganham” com Bolsonaro? A resposta de outro supremacista é direta: “Ele disse que iria acabar com ações afirmativas [cotas]”.

Esta conversa exemplifica o que a antropóloga Adriana Dias considera como um discurso racista que opera em duas fases. A primeira é feita apenas para os iniciados e é explicita: seria o discurso neonazista sem rodeios, de eliminação dos negros e judeus. Esta mensagem seria pouco palatável para uma população mais ampla. Entra aí uma segunda etapa da mensagem, que é voltada para os mais leigos e não fala abertamente em supremacia branca. “Nesta fase do discurso, para os não iniciados, isso aparece como ‘os negros estão tomando o seu lugar na universidade, por causa das cotas”, diz. Dias mostra preocupação com o efeito que as falas de Bolsonaro podem ter ao fortalecer a extrema direita. “Há os nazistas [já convictos] e os que estão sendo nazificados por uma narrativa que vai penetrando na sociedade também pela voz do presidente”, explica. No StormFront, um supremacista explica sua visão do presidente: “Bolsonaro é um nazista disfarçado. Atualmente ninguém pode ser nazi abertamente, então ele escolheu espalhar a supremacia branca através do engodo e da dissimulação, como todos os políticos fazem”.

O fascínio do neonazismo com o presidente cresce com alguns gestos de Bolsonaro —que não se sabe o quanto têm de intencionalidade. O último exemplo foi um brinde com copo de leite feito pelo mandatário durante uma de suas lives sob pretexto de participar do “desafio do leite”, proposto pela Associação Brasileira dos Produtores de Leite para fortalecer o setor. O copo de leite é um dos símbolos usados por supremacistas brancos, cujo emoji ganhou força nas redes sociais radicais a ponto de substituir outro mascote neonazista: Pepe, o Sapo (personagem de uma história em quadrinhos que se tornou meme e foi apropriado por supremacistas à partir de 2015). A coincidência simbólica foi reforçada no dia seguinte pelo blogueiro e militante bolsonarista Allan dos Santos, que repetiu o gesto com a bebida e, entre risadas, falou em mensagem “subliminar”, e disse que “entendedores entenderão”. Santos é alvo de um inquérito que investiga disseminação de fake news e ataques ao Judiciário a ao Legislativo.

Bolsonaro e seu entorno já mostraram que podem ter algum grau de domínio e familiaridade com símbolos supremacistas brancos. Em 20 de fevereiro deste ano uma cena inusitada ocorreu às portas do Palácio do Alvorada, ponto de peregrinação para apoiadores do presidente. Um simpatizante se aproxima, faz o símbolo de “ok” com a mão e tira uma foto com o mandatário ao fundo. Geralmente simpático com seus eleitores, Bolsonaro mostrou certa irritação e repreendeu o jovem: “Esse gesto aí, se fosse um gesto bacana, mas desculpa, pega mal para mim”. O que teria provocado tal reação diante de um simples gesto de “ok” e feito, inclusive, com que seguranças presidenciais pedissem que a imagem fosse apagada? Bolsonaro sabia o que a enorme maioria da população nem desconfiava. O “ok” foi incorporado no gestual neonazista a ponto de ser classificado como “verdadeira expressão da supremacia branca” pela Liga Antidifamação (Anti Difamation League, em tradução livre) dos Estados Unidos, ligada à comunidade judaica.

Bolsonaro e apoiador fazendo símbolo supremacista no Alvorada.
Bolsonaro e apoiador fazendo símbolo supremacista no Alvorada.

Nada disso é coincidência, na opinião de David Nemer, professor e antropólogo na Universidade da Virginia. “Bolsonaro faz a política do apito de cachorro [do termo e inglês dog whistle politics]: usa uma linguagem codificada que parece significar uma coisa para a população em geral, mas tem significado específico para o subgrupo que ele pretende atingir. Esse subgrupo entende a mensagem e se empodera”, explica ele. “Esse grupo de extrema direita, por mais que seja a minoria na sociedade, colabora para a radicalização da base bolsonarista, que está menor, mais radical”, diz.

O que Bolsonaro ganha citando lideres fascistas como Mussolini, e fazendo gestos que podem ajudar a empoderar um pequeno setor radicalizado da sociedade? “Não é possível entender o Bolsonaro com um paradigma comum no contexto democrático, no qual o presidente vai fazer o máximo para ter apoio da maior parte da população para a reeleição. Ele não opera nesta lógica”, afirma Isabela Kalil, professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. “Se estamos olhando para o cálculo democrático padrão, cada eleitor é um número, um voto. Nesse caso a lógica dele não opera via número de votos. É uma lógica na qual determinados grupos, mesmo que pequenos, conseguem fazer um estrago grande na democracia, até ao declarar guerra a inimigos políticos e instituições”, diz. Ela cita como exemplo o fato de estarmos tendo que discutir “os 300 do Brasil e bandeiras ucranianas em meio a uma pandemia e sem ministro da Saúde especializado na questão”. “Esses grupos mais radicalizados estão à disposição de Bolsonaro. Se ele disser ‘estamos em guerra contra tal grupo’, alguns apoiadores não se furtarão de atacar esses opositores”.

Uma história antiga

A simpatia que os neonazistas têm pelo presidente é antiga, com mais de uma década de história. Em 2011 usuários brasileiros do site StormFront chegaram a realizar um “ato cívico” em prol do então deputado federal Jair Bolsonaro no vão livre do MASP, na avenida Paulista. “Vamos dar o nosso apoio ao único deputado que bate de frente com esses libertinos e comunistas!!!”, dizia a convocatória para o ato, mais uma vez fazendo a conexão entre o anticomunismo do parlamentar e o ideário neonazista. “O fator Bolsonaro sempre foi importante [para os neonazistas brasileiros]. Mesmo antes das eleições, todas as vezes que ele falava grupos neonazistas se manifestavam na Internet”, afirma a antropóloga Dias. Ela aponta como exemplo a criação do grupo radical Misanthropic Brasil em 2016. O surgimento do grupo, espécie de filial da entidade neonazista Misanthropic Division, coincidiu com a ascensão de Bolsonaro: aquele foi o ano em que ele anunciou que disputaria a presidência. Atualmente a seção brasileira conta com 147 membros divididos em quatro células.

Alguns simpatizantes da extrema direita chegaram até a integrar o Governo. Foi o caso do então secretário especial de Cultura do Governo Roberto Alvim, demitido em janeiro após fazer um discurso parafraseando trechos de mensagem do ex-ministro da propaganda da Alemanha nazista Joseph Goebbels. “Coincidência retórica”, disse, sem mencionar a trilha sonora do vídeo, uma ópera de Wagner, compositor favorito de Hitler.

Na época da campanha eleitoral, Bolsonaro recebeu o apoio do ex-integrante da Klan David Duke: “Ele soa como nós. E também é um candidato muito forte. É um nacionalista”, afirmou em 2018. A péssima repercussão de se ver associado a um ex-grand wizard (cargo de Duke na organização, um dos mais graduados) do mais notório grupo racista dos Estados Unidos fez com que o então candidato presidencial refutasse o endosso. “Recuso qualquer tipo de apoio vindo de grupos supremacistas. Sugiro que, por coerência, apoiem o candidato da esquerda, que adora segregar a sociedade. Explorar isso para influenciar uma eleição no Brasil é uma grande burrice! É desconhecer o povo brasileiro, que é miscigenado”, disse Bolsonaro. O mesmo que falou que seus filhos não “correm risco” de namorar negras, por teriam sido “muito bem educados”.

David Duke, ex-liderança da Ku Klux Klan.
David Duke, ex-liderança da Ku Klux Klan.SHABAN ATHUMAN / AP

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