Redação – Vejam este belo texto do jornalista Tom Cardoso a respeito de tentativa de entrevista com a grande figura, o grande intérprete Jamelão. Nos comentários do texto no Facebook, o amigo do blog, também jornalista José Sérgio Rocha, observa:
“Caro Tom Cardoso, a única conversa tranquila e risonha que o Jamelão teve na vida foi com o Guilherme Vergueiro num filme maravilhoso que o Washington Araujo conseguiu que ambos fizessem.”.
Não temos aqui o link do documentário na integra, mas fomos buscar no Youtube três momentos com Jamelão cantando belas criações “dor de cotovelo” e um samba de sua autoria com Tião Motorista.
Trechos do belo documentário do maravilhoso pianista Guilherme Vergueiro, patrocinado pela Petrobras durante o primeiro governo Lula, com a força preciosa do grande amigo Jacinto (José Amaral).
– Quer passar o domingo com a família em SP? Só se você conseguir entrevistar o Jamelão.
Era o meu chefe, Tárik de Souza, fazendo chantagem, deixando claro que eu só poderia voltar para o Rio na terça se conseguisse uma exclusiva com o célebre sambista da Mangueira – ele faria um show no Bar Brahma, no sábado à noite.
Desembarquei em São Paulo. Antes, havia ligado para uma amiga minha, especializada em samba, para pegar algumas dicas. Já comecei a achar que a parada seria dura:
– Cara, pode esquecer. Você não conhece a figura.
– Como assim?
– Ele é o sujeito mais mal-humorado da história da música brasileira. Humor que só piorou com o passar dos anos.
– E quantos anos ele tem?
– 93.
– Puts.
– Desiste, Tom. Não perca o seu tempo.
– Vou tentar pelo menos.
– Ah, e você precisa seguir algumas regras se quiser pelo menos se aproximar dele.
– Quais?
1) Nada de foto.
2) Nada de gravador.
3) Não o chame, de jeito nenhum, de “puxador” de samba.
– Por quê?
– Ele vai dizer que puxador de fumo é sua mãe.
Achei que a minha amiga estava exagerando um pouco e fui para o Brahma com a certeza que passaria a segunda coçando o saco em São Paulo, com a família e os meus cachorros.
Cheguei cedo e fiquei numa mesa a um metro e meio do Jamelão. O show começou. Pude sentir de perto o humor de cão sarnento do homem, que fazia careta toda hora que recebia um bilhetinho de alguma velhinha com sugestões de músicas pra ele cantar. Ele olhava, amassava o papel, jogava no chão e grunhia.
Tinha quase cem anos, mas parecia o primo do Tony Tornado. Forte pra caralho. Vi os elásticos enrolados na mão esquerda – mania herdada dos tempos de boxer. Falei baixinho, para mim mesmo: “Tô fudido”.
O show acabou. Pedi pro produtor para ir ao camarim. Ele estranhou:
– Você quer uma foto com o Jamelão? Ele não tira foto nem com a filha dele.
– Não. Eu sou jornalista.
– Piorou. Se souber que eu deixei um jornalista entrar lá, ele não canta mais aqui.
Problema do produtor. Deixei a casa esvaziar e fui até o camarim. Abri a porta bem devagarinho…
Ele estava sentado, com o chapéu na perna direita, enxugando o suor da testa. Parecia ainda mais um boxeador, retomando o fôlego para o próximo direto. E eu ali, o peso-mosca da história, sem saber o que dizer.
– Seu Jamelão…
– Quem é você?
– Tom Cardoso, jornalista, muito prazer.
– Por que devo sentir prazer com sua presença?
– Pois é…
– O que você quer aqui? Entrevista?
– Sim.
– 20 mil reais.
– Eu nunca paguei para fazer uma entrevista.
– Sempre tem a primeira vez. Tem a grana?
– Não.
– Então dá o fora!
Fui embora puto. Encontrei com o produtor do Brahma de novo, que riu da minha história, mas me deu uma esperança:
– Ele está cansado. Fica sempre assim depois dos shows. Por que você não passa no hotel dele amanhã por volta das onze horas? Ele toma café no quarto. Espera ele comer primeiro e bate na porta.
Acordei cedo no domingo. O hotel ficava no centro de São Paulo, perto do Brahma. Era um muquifo. Comecei a entender um pouco o Jamelão, uma das maiores vozes da história do samba, o maior intérprete de Lupicínio Rodrigues, jogado num hotel fedorento.
O produtor do Brahma já tinha passado o número do quarto. Era só subir as escadas até o terceiro andar e bater na porta. E rezar. Foi o que eu fiz:
– Seu Jamelão, o senhor está aí? – gritei, colocando a orelha na porta.
Nada.
– Seu Jamelão?
Bati na porta de novo. Nada. Dei mais três batidas. A última com força. Ouvi o barulho de uma cadeira sendo arrastada para trás.
A porta se abriu. Era o Jamelão, bufando, com um pão na boca, cuspindo as migalhas, que passaram por cima da minha cabeça – minha testa batia na altura do seu peito.
– Você de novo?
– Pois é…
– Vai deixar eu tomar meu café em paz ou vou ter que jogar você pela janela, seu meia foda do caralho?
Voltei para o Rio na segunda de manhã.