Publicado em Observatório da Imprensa –
A imprensa tradicional de Hong Kong passa por uma crise. Muitos dos jornais e estações de TV mais influentes pertencem a magnatas locais que, com medo de prejudicar seus negócios, têm se esforçado para manter uma linha editorial conservadora. Com isso, os veículos vêm perdendo espaço para as redes sociais, que têm se tornado a principal fonte de notícias dos jovens.
“A liberdade de imprensa em Hong Kong não está numa boa situação; não é um regime autoritário ainda, mas a pressão existe”, afirma Mark Simon, executivo-sênior da editora Next Media. “O que está salvando a região agora são exatamente essas ações coletivas de coragem jornalística [nas redes sociais]”.
Revolta do Guarda-Chuva
O símbolo da migração de imprensa tradicional para as redes sociais foi a chamada “Revolta do Guarda-Chuva”, que tem sido considerado um dos movimentos sociais mais bem documentados da história da China exatamente por causa das atualizações pessoais na internet.
A revolta – cujo nome é uma alusão aos guarda-chuvas usados por manifestantes para se defender do gás lacrimogêneo jogado pela polícia – é mais um movimento pró-democracia, e seu estopim se deu na última semana de setembro de 2014, quando o parlamento chinês aprovou uma medida para limitar os candidatos da eleição de 2017. Em poucos dias, milhares de pessoas foram às ruas para protestar contra a decisão e solicitar candidaturas abertas.
Liberdade de imprensa… até certo ponto
Desde que Pequim assumiu o controle de Hong Kong, em 1997, a cidade recebeu liberdades desconhecidas no continente, incluindo um sistema judicial independente, liberdade para comícios e uma imprensa sem restrições – Hong Kong possui 18 jornais e uma série de emissoras de TV e estações de rádio ávidas por escândalos, havendo espaço inclusive para a divulgação de fofocas de celebridades e a exposição de políticos.
Já a imprensa no continente cobriu os protestos à sua maneira, mostrando pouco ou nada sobre os manifestantes e se recusando a reportar suas exigências. Editoriais oficiais afirmaram repetidamente que o movimento é “apoiado por forças estrangeiras hostis com a intenção de fomentar uma revolução para minar Pequim”. Boa parte das entrevistas de rua é realizada em mandarim – idioma que não é amplamente falado em Hong Kong – e geralmente culpa os manifestantes, alegando que estes estão “sendo pagos para realizar badernas nas ruas”.
Quando o jornal de Hong Kong Apple Daily, carro-chefe do grupo Next Media e dono de uma postura mais democrática, publicou uma reportagem sobre um exemplo de suspeita de brutalidade policial, o jornal conservador Ta Kung Pao a narrou sob outro viés: “Policial é atacado”.
A emissora de televisão pró-establishment TVB, a primeira a transmitir cenas do referido episódio de espancamento, primeiramente reportou que um manifestante havia sido “atacado com socos e pontapés”. Mais tarde, após certo clamor público, substituiu a locução inicial e passou a dizer que a polícia “pode ter usado de força excessiva”.
Pequim vs Hong Kong
Outro problema, principalmente no caso da Revolta do Guarda-Chuva, é que os conflitos não se dão apenas entre população e governo, mas também entre os próprios cidadãos, que especificamente neste caso ainda se dividem entre apoiadores da democracia e apoiadores das medidas conservadoras de Pequim.
A própria Next Media sofreu retaliações nessa batalha. Grupos pró-Pequim (e avessos aos manifestantes pró-democracia) andaram formando bloqueios esporádicos para interromper as entregas do Apple Daily. O site da publicação também sofreu diversos ciberataques e, em um episódio em especial, alguns caminhões que entregariam edições do jornal foram interceptados: os exemplares foram encharcados com molho de soja e mais de 15 mil deles foram perdidos.
Os profissionais da imprensa também sofrem diretamente. Ao todo, pelo menos 24 jornalistas foram atacados durante a cobertura dos protestos, alguns por contra-manifestantes, outros pela polícia. No dia 25/10, três jornalistas foram agredidos por uma multidão de contra-manifestantes durante um comício; um repórter da emissora moderada RTHK precisou ir para o hospital.
“Esta é uma demonstração daquilo que tememos durante anos”, diz Shirley Yam, vice-presidente da Associação de Jornalistas de Hong Kong e colunista do South China Morning Post. “Quando o debate não é sobre uma questão controversa como essa, você não sente uma censura tão forte. Mas quando tal controvérsia aparece, aí você pode dizer como a imprensa controlada realmente funciona”, conclui.
Tradução: Fernanda Lizardo, edição de Leticia Nunes. Com informações de Jonathan Kaiman [“Hong Kong protests bring crisis of confidence for traditional media”, The Guardian, 29/10/14] e de Ned Levin e Yvonne Lee [“Hong Kong Protests Reveal Chasm in Media Outlets’ Visions for City’s Future”, The Wall Street Journal, 22/10/14]