Por Fernanda Baldiotipublicado em Projeto Colabora –
Movimentos como #MeToo e #OscarsSoWhite fazem premiação da Academia de Cinema se transformar, mas nem tanto assim
Quando Gal Gadot, Mark Hamill e os demais apresentadores do Oscar mencionarem, no próximo domingo (4/03), os nomes dos indicados para as inúmeras categorias ficará evidente para o público que os membros da Academia tiveram a preocupação de fazer uma lista mais diversa, na esteira de movimentos como #MeToo, #Time’s Up (ambos contra o assédio sexual) e #OscarsSoWhite (que criticava a ausência de artistas negros na premiação). Entre os indicados há, pela primeira vez em 90 edições, uma mulher na categoria de melhor fotografia (Rachel Morrison, de “Mudbound: Lágrimas sobre o Mississippi”), o primeiro diretor abertamente transexual a ter seu filme entre os concorrentes (Yance Ford, de “Strong Island”) e a primeira trans entre as possíveis premiadas (a atriz chilena Daniela Vega, de “Uma mulher fantástica”, concorre como melhor filme estrangeiro e também faz história ao ser convidada para ser uma das apresentadoras da noite).
Confira os vencedores do Oscar 2018 aqui.
Isso sem falar nos três diretores (um negro – Jordan Peele, de “Corra!” -, uma mulher – Greta Gerwig, de “Lady Bird”-, e um latino – Guillermo del Toro, de “A Forma da Água”) que não se encaixam no padrão hegemonicamente masculino e branco do segmento. Greta é a apenas a quinta mulher a concorrer ao prêmio, sendo que apenas uma (Kathryn Bigelow, de “Guerra ao Terror”) levou a estatueta, em 2010. Peele, coincidentemente, também é apenas o quinto diretor negro a concorrer na categoria, sendo que nenhum deles venceu o prêmio. Além disso, Peele ganhou indicações para melhor filme e melhor roteiro original, o que o torna o primeiro homem negro indicado por escrever, dirigir e produzir no mesmo ano. Guillermo del Toro também é só o quinto candidato latino-americano a ser lembrado pela Academia, ainda que os mexicanos tenham abocanhado três estatuetas nessa categoria nos últimos anos, com as vitórias de Alfonso Cuarón (em 2014, por “Gravidade”) e Alejandro González Iñárritu (em 2015, por “Birdman”, e 2016, por “O Regresso”).
Mas, apesar do otimismo, especialistas do setor alertam que Hollywood ainda tem muito trabalho a fazer em termos de igualdade e inclusão criativa e financeira nessa indústria que continua majoritariamente etnocêntrica.
Professor da disciplina de audiovisual e representatividade do curso de Cinema da ESPM-Rio, Gabriel Marinho alerta que, enquanto enxergarmos a indicação de trans, negros e mulheres dentro da redoma do extraordinário, ainda estaremos lidando com um problema de representatividade:
“Ainda é cedo para comemorarmos porque ainda é muito mais evidente as ausências. Na categoria de melhor fotografia, é superinteressante que, pela primeira vez, tenhamos uma mulher indicada, mas, não dá para dizer que isso simbolize uma mudança significativa no setor. O Oscar recebeu a crítica do “So White” no ano posterior à premiação de “12 Anos de Escravidão”. Isso indica que, na verdade, essas vitórias ainda não estão consolidadas. Quando falamos de representação, precisamos pensar em continuidade, em uma presença contínua e numerosa de outros perfis. Não é questão de desmerecer o melhor cenário que tivemos até hoje. Mas falar de representatividade não é falar de um evento”.
Para o diretor e roteirista Marcelo Muller, que também é professor da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, o reflexo social desses movimentos ainda vai demorar para ser sentido:
“O mundo do cinema é etnocêntrico e repete essa engrenagem e essa cara do poder. Esse ciclo mais progressista começou há dois anos, com o alerta para a pouca quantidade de negros. Ano passado, já tivemos um impacto na premiação, mas estamos muito longe de a Academia chegar ao equilíbrio”.
Desde que o movimento #OscarSoWhite surgiu, em 2015, a Academia estabeleceu o objetivo de duplicar a diversidade de seus membros até 2020. Este ano, 39% dos 774 novos membros convidados a participar das votações eram do sexo feminino e 30% não são brancos. Ainda assim, as mulheres representam apenas 28% do total de mais de 7 mil membros, enquanto os não brancos saltaram de 11% para 13%.
Mais do que uma diversidade nos quadros da Academia e nas premiações, Marinho e Muller defendem que uma mudança significativa no mercado só virá por meio da educação e do financiamento:
“Precisamos discutir até que ponto os agentes produtores de cultura tiveram as mesmas oportunidades, os mesmos acessos em termos de produção e distribuição do que os seus pares mais privilegiados”, alerta Marinho.
“Se não forem tomadas atitudes necessárias no que tange à formação, nada vai ser mudado de fato, e o movimento fica só no discurso. Sem formação, se essas minorias pleitearem espaço, ele será negado. São mais importantes cotas para formação do que para a premiação, porque aí sim o reconhecimento se dará naturalmente”, completa Muller.
E não será questionado. O pesquisador e crítico de cinema Carlos Alberto Mattos teme que a preocupação em melhorar a representatividade se torne critério de avaliação no Oscar, na apreciação crítica e nos debates sobre os filmes:
“O cinema não é só o tema, mas também a forma e a linguagem. E ele não pode ser visto como uma arena de resgate de tudo o que está errado no mundo. Há um risco de esses movimentos acabarem provocando uma caça às bruxas em detrimento de outros valores que são importantes para o avanço da linguagem do cinema”, defende ele, argumentando que, a indicação de Greta Gerwig pela direção de “Lady Bird” embora seja um fato importante politicamente, a seu ver, não é justa.
Muller também é do time que defende que Greta entrou pela “cota”. Para ele, no entanto, Dee Rees deveria ter recebido a indicação por “Mudbound”: “Não só por ela ser mulher e negra, mas porque fez um trabalho muito bom”.
Apesar de não ter sido indicada como melhor diretora, Dee Rees concorre nas categorias de melhor roteiro adaptado ao lado do co-escritor Virgil Williams. Isso faz dela a primeira negra nomeada nesse segmento. É preciso lembrar que a Academia só começou a indicar mulheres em 1975 e nunca uma negra concorreu por direção. Isso reflete também o mercado: em 2016, as mulheres representavam apenas 7% de todos os diretores trabalhando nos 250 maiores lançamentos americanos, um declínio de dois pontos percentuais do nível alcançado em 2015, de acordo com o Centro para o Estudo das Mulheres na Televisão e no Cinema, da Universidade Estadual de San Diego.
Já na corrida pelo Oscar de melhor atriz duas negras fazem história: Octavia Spencer (“A Forma da Água”) é apenas a segunda atriz negra a ganhar três indicações (Viola Davis foi a outra). Ela enfrenta Mary J. Blige (“Mudbound”), que também concorre pela estatueta de melhor trilha sonora por co-escrever “Mighty River” para o filme. Isso faz dela a primeira mulher negra a ganhar várias indicações no Oscar em qualquer ano.
Para além dos produtores e atores, as temáticas dos filmes também estão mais abrangentes no que diz respeito à diversidade. As histórias selecionadas entre as melhores da temporada são aquelas que tratam explicitamente do racismo, como “Corra!” e “Strong Island”, e do preconceito contra gays e trans, como em “Me chame pelo seu nome” e “Uma mulher fantástica”. O feminismo está presente em “Três anúncios para um crime” e em “The Post”. Já o favorito ao Oscar de melhor animação é dedicado à cultura mexicana (“Viva – A Vida é Uma Festa “) e apresenta um elenco predominantemente hispânico de dubladores, embora seu diretor e produtor sejam ambos brancos. Há outras conquistas notáveis, como a indicação de “Últimos Homens em Aleppo“, dos cineastas sírios Feras Fayyad e Kareem Abeed, para melhor documentário.
“Acho importante que as discussões étnicas e de gênero cheguem aos blockbusters. Meus pais, por exemplo, não gostam tanto de cinema. É uma parcela que não iria ver “Moonlight: Sob a Luz do Luar”, mas que sai de casa para ver “Pantera Negra”. O fato de “Moonlight”, um filme que fala de um jovem negro homossexual, ter ganhado ano passado fez com que muita gente fosse assistir ao filme. E isso é muito positivo”, defende Muller.
Marinho argumenta que não se pode ignorar também a demanda de pessoas que se sentem representadas por essas produções:
“Ao se premiar filmes como “12 Anos de Escravidão” e “Moonlight”, há um claro sinal para o mercado de que existe uma demanda, um público que não estava se sentindo satisfeito, reconhecido. E você mostra a esta audiência que existe uma série de realizadores que produzem este conteúdo e que ela precisa conhecer”.
Pouco mais de 5% dos 1.000 filmes de maior bilheteria nos últimos anos (2007-2016) foram feitos por diretores negros e apenas 3% foram filmados por cineastas asiáticos, de acordo com um estudo recente da Escola Annenberg, da Universidade da Carolina do Sul. Também vale lembrar que as unidades executivas dos grandes estúdios ainda são dominadas por homens brancos. Nenhum dos seis maiores estúdios tem minorias ao leme, e apenas dois dos seis, Fox e Universal, têm mulheres com grande poder.
“É muito positivo o que está acontecendo na premiação, mas isso não marca o fim de uma era de sub-representações de diversos rostos. O cenário está melhor do que estava antes, mas os problemas continuam tendo que ser resolvidos cotidianamente”, afirma Marinho.
No âmbito da questão do assédio, tão abordada nas premiações como o Globo de Ouro e o Bafta, também há avanços, como James Franco (denunciado por cinco mulheres) ter ficado fora da lista de aspirantes a melhor ator, assim como a inclusão de Christopher Plummer entre os indicados a melhor ator coadjuvante por seu papel em “Todo o Dinheiro do Mundo” (filme que, depois de pronto, teve as cenas com Kevin Spacey, acusado de abuso sexual, cortadas e filmadas novamente com Plummer). E Casey Affleck, que também responde por assédio sexual, se retirou da função de apresentador da categoria de melhor atriz na premiação deste ano, o que foi recebido com alívio pelos organizadores do Oscar. Era tradição que o vencedor da estatueta de melhor ator apresentasse o troféu feminino no ano seguinte. Desta maneira, a Academia manda um recado moral para Hollywood. Apesar disso, Gary Oldman foi indicado a melhor ator por “O Destino de Uma Nação”, a despeito de ele ser acusado de agredir sua ex-mulher Donya Fiorentino.
“Sempre tendo a ser da turma do copo meio cheio, embora ele não esteja de fato. Sobretudo porque vivemos uma pandemia global de retrocessos. Nesses momentos, a classe artística, em geral, se volta contra isso e chama a atenção da população para os problemas. E isso nos dá esperança por dias melhores. Quando poderíamos imaginar que tendo Trump como presidente dos Estados Unidos, temos uma grande chance de um diretor mexicano ganhar o Oscar?”, finaliza Muller.