Tem uma galera italodescendente que foi reconhecida cidadã italiana que bem poderia protagonizar aquela cena de Bacurau em que duas pessoas do sul-sudeste descobrem que não são vistas como “brancas” pelos europeus a quem ajudam com canino fervor. No filme, os europeus são bem diretos: “vocês não são como nós”.
Por Alexey Dodsworth, compartilhado de Construir Resistência
Deve ser a mesma sensação que os Italodescendentes apoiadores de Georgia Meloni e do partido Lega estão tendo agora: com uma canetada, a direita italiana fez uma cagada fenomenal que prejudica o direito de nascimento de milhões de pessoas.
Vou tentar explicar, em apertada síntese: nem Georgia Meloni nem seu Giuseppe da pizzaria de Nápoles são italianos porque nasceram na Itália.
Eles são italianos porque la atrás, quando a Itália surgiu como nação unificada, os ancestrais deles se tornaram cidadãos italianos. Deste modo, em termos legais, não há (ou não deveria haver) diferença entre mim, que nasci no Brasil, e o nascido em Nápoles, a exemplo de meu fictício Giuseppe ou da infelizmente real Georgia Meloni.
Pode-se argumentar que há diferença cultural entre cidadãos italianos nascidos fora da Itália, mas eu estou falando de algo bem objetivo: a lei. Eu, que sou cidadão italiano, me considero bem brasileiro, mesmo tendo sido criado por uma família italianíssima. Mas sou cidadão italiano, goste disso a direita italiana ou não.
Os apoiadores italobrasileiros de Meloni, Fratelli d’Italia e da Lega dizem agora que se sentem traídos pela mudança na lei da cidadania. Eis que, não mais que de repente, o governo italiano transformou os nascidos no exterior em cidadãos “de segunda classe”.
Que é exatamente como sempre nos viram. Não sei como alguém consegue se dizer traído ou demonstrar susto, quando sempre foi tão óbvio: eles são racistas e odeiam miscigenados.
Anos atrás, estava eu em Ascoli. Vi um aglomerado de pessoas fazendo um abaixo-assinado. Me aproximei e perguntei do que se tratava. Um sujeito de meia-idade me cortou:
– Isso é só para italianos.
Eu não tenho fenótipo italiano típico, então concedi ao sujeito a minha caridade interpretativa. Expliquei – em um italiano muito melhor do que o dele, que emitia sei lá quantos desvios gramaticais por frase – que eu era, sim, cidadão. E mostrei a minha identidade que deixava bem claro: italiano, residente em Veneza.
O sujeito olhou meu documento, franziu as sobrancelhas e disse, sem o menor pudor:
– Você não é italiano, você é mestiço.
O grupo em questão era justamente uma turma da Lega.
Ítalo-brasileiro que apoiou Meloni e Lega é como uma barata apoiar uma lata de Baygon. A metáfora é boa, porque é assim que essa gente nos vê: como baratas.
Se você tem cidadania italiana mas seus filhos menores de idade ainda não têm, saiba que você tem até o dia 31 de maio de 2026 para registrar seus filhos. Se seus filhos forem maiores de idade e não tem ainda a cidadania reconhecida, lamento muito, vocês terão que mover processos judiciais.
Alexey Dodsworth é escritor, roteirista, filósofo e acadêmico