Sobre pertencer

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Por Claudio Lovato Filho, jornalista e escritor

Todos aqueles que sabem o que é pertencer a algum lugar conseguem entender o irmão que teve sua terra devastada. Sofrem com ele. E irão celebrar com ele a reconstrução, o prosseguimento da vida, a vida que segue, que precisa seguir, porque assim é a vida, o nosso pertencimento maior.




Em seu livro de ensaios “Água por Todos os Lados”, no qual analisa sua relação com Havana e, em especial, com o bairro natal de Mantilla, o escritor cubano Leonardo Padura enuncia já na introdução: “Meu pertencimento a esta cidade, mais que dramático ou trágico, é essencial, como uma condenação: sou porque pertenço.

O senso de pertencimento surpreendeu-me quando eu ainda não sabia que o tinha ou teria. Começou a se forjar como uma necessidade de busca, em que me empenhei por décadas”.

Mais adiante, como numa rebatida perfeita de beisebol, esporte que tanto ama, ele define: “E, apesar dos pesares, enquanto escrevo e vivo, continuo sendo e pertencendo.”

Nasci em Santa Maria, na região central do Rio Grande do Sul. Aos seis anos, cheguei com a família a Porto Alegre. Meu pai havia sido transferido do Banco do Brasil; minha mãe, do Ministério da Fazenda. Era o começo de 1972 e, naquele nosso primeiro ano na cidade, moramos na Rua João Manoel, entre a Riachuelo e a Rua da Praia, no Centro.

Eu estudava no colégio Nossa Senhora das Dores, bem perto de casa. No ano seguinte, nos mudamos para o Bom Fim: primeiro na Rua Fernandes Vieira, depois na João Telles, onde vivemos por vários anos, no número 461, entre a Henrique Dias e a Oswaldo Aranha.

No Bom Fim fui criado, e tenho plena consciência de que de muito do que sou hoje devo ao tempo em que passei lá, a tudo o que vi e vivi lá. Um lugar de diversidade: o “bairro judeu” de Porto Alegre, com mais sinagogas do que igrejas; reduto boêmio; poderosa usina de geração de energia artística, trincheira de escritores consagrados e anônimos cronistas das esquinas; QG de punks e darks; um dos berços do rock gaúcho.

O futebol no Ramiro Souto, os shows no Araújo Vianna, as aulas (e as brigas) no Anne Frank, o chimarrão na calçada, a ponte direta, via ônibus da linha Cascatinha, com a Azenha, o Olímpico, o Grêmio, paixão e identidade, desde sempre. Sei que, num certo sentido, nunca saí do Bom Fim. Não completamente. Acho que nunca sairei. O pertencimento do Padura. O meu pertencimento.

Depois vieram a Cidade Baixa, um breve período no Moinhos de Vento, uma nova passagem pelo Centro (morando em frente ao colégio da nossa chegada à cidade), de novo a Cidade Baixa, até que, dias após ter me formado em Jornalismo, na PUC, fui dar início à carreira, em Santa Catarina, onde tantas coisas maravilhosas aconteceram, tantas coisas definidoras de uma existência.

Na sequência lá nos fomos, eu e a Rosi, para o Rio (onde moramos por 20 anos!), depois uma nova temporada em Santa Catarina e agora aqui estamos, em Brasília. A vida seguindo. Sempre indo aonde o trabalho estava, sem jamais desconectar da terrinha, a terrinha do seu Claudio e da dona Maria Maria Edith, meus pais, ambos falecidos neste ano, num período inferior a um mês; a terrinha, de nascimento ou adoção, de bisavós e avós; a terrinha dos meus amigos-irmãos, manos velhos queridos; de parentes próximos e distantes; de tantas pessoas que passaram pela minha vida e pela vida das quais passei.

Ver a devastação de Porto Alegre e das outras cidades do estado afetadas pelas enchentes, entre elas a minha Santa Maria natal, tem sido doloroso. Para mim e para todos, gaúchos ou não. Para todos os que têm coração.

Mas assistir de longe a tudo o que está acontecendo na terrinha provoca um certo tipo de angústia que aqueles que já passaram por esse tipo de experiência sabem bem do que se trata. É um misto de aflição, melancolia e impotência, que vai se tentando enfrentar fazendo aquilo que está ao alcance, ajudando de alguma forma.

Esse pesadelo vai passar. Vai passar em razão da força do povo gaúcho e da ajuda de brasileiros de todos os rincões. A solidariedade está no centro da própria definição do que é ser brasileiro, do nosso senso de pertencimento a uma nação. Todos aqueles que sabem o que é pertencer a algum lugar conseguem entender o irmão que teve sua terra devastada. Sofrem com ele. E irão celebrar com ele a reconstrução, o prosseguimento da vida, a vida que segue, que precisa seguir, porque assim é a vida, o nosso pertencimento maior.

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