Sobre Viver

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Por Nirton Venancio, cineasta, poeta, professor de literatura e cinema

Durante a escuridão da pandemia, revisitei várias obras literárias que me acolheram com a beleza dos reencontros e o prazer que a palavra provoca entre o real e o imaginário, entre o tempo e a pedra, entre o desencanto e a esperança.




E entre tantas releituras nos vagões daqueles dias, um dos maiores de todos os tempos: Vladimir Maiakovski. Voltei a sua casa em uma de suas obras-primas, “Sobre isto”, de 1923. Intenso como tudo que escreveu em tão pouco tempo.

Em 2019 a Editora 34 relançou no Brasil o belíssimo livro-poema em uma primorosa edição bilíngue, acrescida de notas e estudo crítico de Letícia Mei, tradutora, uma seleção de cartas, ilustrações e fotomontagens do artista gráfico e fotógrafo Aleksandr Ródtchenko, amigo do poeta.

Maiakovski escreveu o longo poema em estado de dilaceramento do coração, recluso em seu pequeno apartamento em Moscou, entre os angustiantes meses de dezembro de 1922 a fevereiro do ano seguinte. Ele se separara de Lilya Brik, seu grande amor, depois de uma grave discussão, quando se viu ferido justo na garganta pela flecha preta do ciúme, como diz Caetano Veloso em sua caudalosa canção. “Tudo sempre esbarra embriagado de seu lume”.

“Sem você eu paro de existir”, escreveu o poeta em uma carta à amada, concordando com o pacto de silêncio e distanciamento entre ambos, para evitar o contágio da espuma das bocas desfeitas quando “dos olhos desfez a última chama”, que Vinicius versejou em seu soneto de 1938., quando um se reparte em dois e uma fenda no meio.

Maiakovski partiu para o exílio entre quatro paredes, onde fui visitá-lo em cada cômodo de página que relia, em cada corredor de versos que transpassava com meu coração ouvinte. Confortávamo-nos em nossas dores distintas. Ele me ouvia enquanto o lia; eu o escutava em seu silêncio pretérito.

Político e lírico ao mesmo tempo, Maiakovski entregou-se a esse livro na mesma proporção que se entregava a uma causa do mundo. Se odiava a mesmice da vida burguesa, a inércia e a imobilidade, o poeta canta e desencanta o amor porque esse é também doído e corroído pela miséria de todos os dias.

Morto em 1930, desfazendo-se em ato extremo, aos 36 anos, Maiakovski considerava o livro, um manifesto sobre graça e sortilégios do amor, sua melhor obra. “Quero viver até o fim o que me cabe!”, preconizou em verso-lápide no poema.

“Sobre isto” inspirou Caetano Veloso a compor “O amor”, fragmento adaptado, gravado pela interpretação magnífica de Gal Gosta no disco “Fantasia”, 1981.

Nos versos mais cortantes Maiakovski pede que “Ressuscita-me, / nem que seja só porque te esperava / como um poeta, / repelindo o absurdo quotidiano!”, ao que o compositor baiano arrematou com um risco de esperança: “Ressuscita-me ainda que mais não seja / porque sou poeta / e ansiava o futuro”.

Entre o mundo lá fora e o quarto cá dentro, entre as causas de dores externas e os causos de horrores internos, entre os amores e tantos outros precipícios, entre o cubofuturismo russo e o barroco recôncavo de Santo Amaro, os poetas auscultam os corações dos poetas.

Foto: Aleksandr Ródtchenko, 1924

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