Gabriel Waldman, de 86 anos, é um sobrevivente. Judeu nascido em 1938 na Hungria, ele viu o pai e toda a família paterna morrer em campos de extermínio nazistas na Polônia. Com a mãe, migrou para a Áustria e, no início dos anos 1950, veio para o Brasil.
Por Camila Corsini – no UOL, compartilhado de Construir Resistência
Não consigo dizer exatamente como nós sobrevivemos. Eu só sei que conseguimos. Gabriel WaldmanNos anos que passou na Áustria, Gabriel aprendeu a falar alemão. E foi justamente a língua que facilitou a comunicação dele com uma moça alemã, Ingrid*, que conheceu na juventude, quando passou a morar em São Paulo. O que era uma amizade evoluiu para um relacionamento. Eles passaram cerca de um ano juntos.
Fui convidado várias vezes para a casa dela, onde conheci o pai e a mãe. Lanchava com eles, tínhamos conversas civilizadas. O pai dela era uma pessoa muito simpática e me tratava muito bem. Mas um dia ela me chamou e disse que nós teríamos de nos separar.Gabriel Waldman
O término foi difícil para ambos. Gabriel conta que os motivos daquela decisão nunca ficaram claros, e Ingrid não falou. “Ela me chamou e disse: ‘Nós temos que nos separar porque o nosso relacionamento não vai dar certo’ enquanto chorava muito e me beijava. Eu não entendia o que estava acontecendo”, lembra ele.
Descoberta inesperada
A vida seguiu, os dois tomaram caminhos diferentes e se relacionaram com outras pessoas. Uma década depois, as coisas começaram a fazer um pouco de sentido quando Gabriel leu uma manchete no jornal: “Preso no Brasil um dos maiores criminosos de guerra do nazismo”.
Vejo a fotografia do pai de Ingrid. Ele era Franz Stangl, um dos comandantes dos campos de extermínio de Sobibor e Treblinka [na Polônia]. Então, a pessoa simpática que me convidava para almoços era o responsável pela morte de um milhão de pessoas, muitos judeus.Gabriel Waldman
Gabriel não se lembra de todos os diálogos que teve com Ingrid, mas afirma que ela não tinha como não saber que ele é judeu. “A gente conversava, falava dos tempos da guerra. E o meu sobrenome, Waldman, seria altamente suspeito para qualquer um. Mesmo se eu não tivesse falado, meu próprio nome ia me trair.”
Se ela fosse antissemita ou nazista, e soubesse que eu sou judeu, ela não teria começado a namorar comigo. Toda essa história é absurda: ela namorar comigo, os pais me receberem de braços abertos. Eu mesmo, que vivi essa história, não consigo acreditar nisso.Gabriel Waldman
Gabriel lembra que, na época, não sabia no que acreditar: no que estampava as páginas do jornal ou naquilo que ele mesmo viveu — Stangl parecia duas pessoas diferentes.
Depois, ele aceitou. “A Ingrid era pequena, tinha seis anos quando a guerra terminou. Ela não tem culpa de nada, ao contrário, eu tenho muito respeito por ela. Ela ousou namorar um judeu.”
História virou livro
Toda essa história ficou guardada no íntimo de Gabriel por décadas. Durante a pandemia, ele estava na casa de Celso Lafer (ex-ministro de relações exteriores do Brasil e amigo dele há muitos anos) e folheou um livro sobre a mesa
Comecei a folhear, encontrei o ‘caso Stangl’ e o Celso entrou na sala. Falei para ele que, em um dos meus aniversários, ele conheceu a Ingrid porque ela era a minha namorada. Ele disse: ‘Gabor (Gabriel em húngaro), você precisa escrever sobre isso’.Gabriel Waldman
No dia seguinte, ele recebeu um email do próprio Lafer que citava uma frase de Isak Dinesen, pseudônimo da escritora Karen Blixen, que o fez pensar melhor no assunto: toda grande dor pode ser suportada se você escrever sobre ela. A frase ficou famosa por ser citada por Hannah Arendt em “Homens em Tempos Sombrios”.
“Quando eu li essa frase, eu caí em mim.”
A história que Gabriel viveu se tornou o livro ‘Ingrid, a filha do comandante’, lançado em abril deste ano. A obra é chamada por ele de biografia literária: os fatos aconteceram, mas os diálogos são ficção.
Perguntas sem resposta
Gabriel nunca mais viu Ingrid. Ele teve notícias dela no ano passado, quando falou pela primeira vez em público sobre o assunto, em um podcast. O sobrinho dela, neto de Stangl, o procurou para conversar. Ingrid está viva e não mora em São Paulo. “Eu falei que gostaria muito de encontrá-la, mas ele me disse para não esperar por isso.”
Quando li a reportagem sobre o pai dela, talvez eu deveria ter telefonado e dito que sentia muito. Mas eu pensei na minha família, morta nos campos de extermínio, e não tive coragem. Essa história ficou enterrada no fundo da minha alma de uma forma dolorosa.Gabriel Waldman
*nome fictício (no livro e no relato ao UOL, ele prefere não expor a identidade da mulher)
Título: Ingrid, a Filha do Comandante
Autor: Gabriel Waldman
Editora: Buzz (160 págs.; R$ 38,17 | E-book: R$ 39,90)