Elon Musk deve estar mesmo muito contente. Na mesma semana em que sua equipe começou a fazer uma “limpa” em contas robotizadas no ex-Twitter, extinguindo um número não divulgado de contas (pela costumeira falta de transparência) ele conseguiu apontar o dedo pra lua – no caso o Brasil – e esconder o fato da direita, enquanto desafiava a nossa Justiça e mexia nos embates políticos de um país inteiro.
Por Natalia Viana, compartilhado de A Pública
Conseguiu mais: com uma série de Tweets revoltantes, acusou Alexandre de Moraes de ter agido a favor de Lula para elegê-lo, ressoando teorias da conspiração aventadas por Steve Bannon e os seus. Conseguiu, como resultado, acelerar duas movimentações essenciais para a regulação das Big Techs por aqui. Primeiro, o próprio Moraes decidiu liberar seu voto a respeito da constitucionalidade de um artigo do Marco Civil da Internet, em especial pela não responsabilização das plataformas pelos conteúdos publicados pelos seus usuários.
Inserida no Marco Civil como uma versão brasileira da Section 230, norma americana da qual já falei aqui, o artigo 19 foi construído para garantir a liberdade de expressão, mas, ao mesmo tempo, isentou as plataformas de qualquer obrigação proativa de mediação de conteúdo. Essas corporações – Google, Facebook, Whatsapp, Instagram – como sabemos, deitaram e rolaram, lucrando largamente com desinformação sem qualquer consequência legal.
A liberação do voto por Moraes – todos sabemos como ele vota – significa um alerta: se o Congresso não agir para regular as Big Techs, o Supremo vai agir, provavelmente estabelecendo algumas responsabilidades legais. A votação deve ocorrer até junho.
O outro movimento foi no sentido contrário. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), anunciou a criação de um grupo de trabalho para discutir uma lei que regule o setor, em substituição ao PL 2630, que estava tramitando desde 2020, tendo passado por dezenas de audiências públicas.
Lira enterrou o PL das Fake News, assim como o trabalho duro do seu relator, o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), alegando que o texto em tramitação “está fadado a ir a lugar nenhum e não tivemos tranquilidade do apoio parlamentar para votar com a maioria”.
Vale lembrar que o PL das Fake News estava pronto para ser votado há exatamente um ano, quando foi alvo de um ataque sem precedentes das Big Techs, em especial do Google, que usou seu site de busca para dizer aos brasileiros que a lei “podia piorar a internet”. Segundo levantamento do NetLab, centro de pesquisa da UFRJ, o Google também alterou seus algoritmos de busca para amplificar mentiras sobre a lei, em especial as propagadas pelos bolsões bolsinaristas que afirmavam que sua aprovação significaria “censura”.
Orlando Silva, que diligentemente, nos últimos quatro anos, reuniu-se com representantes de todos os setores, seja a sociedade civil, sejam especialistas, evangélicos, jornalistas, representantes do Grupo Globo, do Google, do Facebook, foi pego de surpresa. “Fui surpreendido com a informação”, escreveu no ex-Twitter. “Saibam que sigo na mesma trincheira e que cada ataque dos bolsonaristas eu recebo como uma condecoração pela minha luta por liberdade e democracia.”
A “demissão” de Orlando surpreendeu e revoltou a sociedade civil e os especialistas em direitos digitais. A Coalizão Direitos na Rede, união de 40 organizações que trabalham com direitos, internet e democracia, expressou “preocupação” pela criação do grupo de trabalho e pediu a aprovação do PL 2630. “Consideramos que o texto representa anos de debates e acordos possíveis entre diferentes setores”. A nota ressalta que a postura de Musk “não apenas compromete a integridade do sistema democrático brasileiro, mas também evidencia uma preocupante interferência estrangeira nos assuntos internos do país, minando sua soberania”.
Rafael Zanatta, diretor da organização Data Privacy, também lamenta a exclusão de Orlando Silva. “O Orlando tem uma posição muito privilegiada na discussão de direitos digitais porque ele construiu a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), domina o tema de dados e regulação, ou seja, tem o domínio técnico e uma abordagem de diálogo, ouve democraticamente todos os setores”, explica. Em especial, ressalta, graças ao relator, o texto tinha atingido uma “maturidade”, conseguindo estar de acordo com recomendações internacionais sobre regulação de plataformas feitas, por exemplo, pela Unesco.
Bia Barbosa, integrante do DiraCom (Direito à Comunicação e Democracia) e representante do terceiro setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil, afirma que a decisão de Lira pegou a todos de surpresa. “Não há muita clareza sobre o que esse grupo de trabalho vai fazer. Ele vai trabalhar a partir do PL 2630? Vai considerar todas as discussões que aconteceram em audiências públicas, ouvindo mais de 150 pessoas na Câmara? Ou ele vai começar do zero?”
Ela acredita que a jogada tem a ver com a corrida de Lira para eleger um aliado seu como presidente da Câmara. “Isso reflete o desejo do presidente Arthur Lira de ter controle total sobre essa agenda. Está muito claro que a criação desse grupo de trabalho é fruto de um acordo que o presidente Lira fez com os setores conservadores e do bolsonarismo na casa, visando a sua sucessão na presidência, cujo mandato termina agora em maio e junho”.
Bia lembra que o tema, entretanto, é “muito maior que a Câmara dos Deputados”. Nos últimos meses, o governo Lula vinha se empenhando em construir, em reuniões com as plataformas, uma nova versão do texto, com bons avanços. Mas, apesar deste engajamento, Bia avalia que levar o projeto à “estaca zero” é uma vitória dessas corporações.
““Sem dúvida nenhuma é uma vitória das plataformas, porque foram elas que se aliaram à extrema-direita no Brasil para, desde o início, impedir a votação de qualquer texto regulatório”, diz.
“O discurso público das plataformas é que elas não são contra a regulação, que elas são contra alguns problemas que elas vinham no texto, mas é muito claro o quanto elas operaram fortemente, politicamente e economicamente para barrar qualquer avanço. E conseguiram criar um ambiente de muita instabilidade para a votação do projeto”.
Zanatta teme que, caso se proponha um novo texto, ele isente as plataformas de custos que terão que ocorrer para se criar um ambiente mais saudável de discussão online. “A proposta que estava sendo feita pela Câmara implicaria gastos de profissionalização, equipes, metodologias de avaliação de riscos, treinamento”, diz. “É evidente que isso mexe com interesses corporativos. Para as grandes corporações, a modelagem de uma legislação afeita aos interesses delas é super estratégico. Por isso, o jogo do legislativo se torna muito chave”.
Além disso, a legislação brasileira é ainda mais estratégica no debate mundial de regulação das plataformas porque o Brasil assumiu este ano presidência do G20 e propôs como pauta prioritária a “integridade informacional” como um eixo a ser considerado por governos e empresas.
É também no plano internacional que essa guerra tem sido jogada, segundo Bia Barbosa: os ataques demonstram que a extrema direita segue articulada globalmente.
“O episódio deixou muito clara a necessidade de avançarmos na regulação das plataformas digitais”, diz. De agora em diante, toda a sociedade civil deve se mobilizar para adotar essa bandeira como uma prioridade. “É preciso que os pesquisadores e as organizações da sociedade civil de diferentes setores defendam como uma agenda democrática urgente para o Brasil”.