Socorro, chamem o Estado!

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Adailton Medeiros, produtor cultural, responsável pelo Ponto Cine, em Guadalupe, um oásis em termos de cinema fora da Zona Sul do Rio de Janeiro, faz aqui um desabafo e um apelo.

Um cinema cidadão como o Ponto Cine merece o mínimo de respeito, o máximo de incentivo e um olhar especial do Estado e não uma Caveirão na sua porta. Vejam as razões do pedido de socorro nesta carta aberta, no texto que segue.  




O Ponto Cine, a primeira sala popular de cinema digital do Brasil e a maior exibidora de filmes brasileiros do mundo, pede socorro ao Estado nesta carta aberta ao público e autoridades.  

Nosso cinema, inaugurado em 2006 em Guadalupe, foi um sucesso de cara; além de tornar-se o fenômeno de maior plateia da filmatografia brasileira, recebeu profissionais da exibição do país inteiro e dos países do Mercosul.

Era a novidade, um laboratório, um “case”. Seus dirigentes foram convidados a falar da experiência inovadora em quase todos os grandes festivais, universidades e eventos voltados para o cinema no país inteiro.

Passaram a compor a banca de escolhas de filmes a serem apoiados por grandes empresas, como Petrobras, BNDES, Furnas; assim como de Festivais.

Deram consultoria à implantação do Programa Cinema Perto de Você, Cinema nas Cidades e teve papel importante e decisivo na implantação do Circuito SPCine.

Parecia que o Brasil havia encontrado um paradigma e estava disposto em apostar todas as fichas nele.

Nessas quase duas décadas o Ponto Cine exibiu mais de 800 filmes brasileiros para mais de 600 mil pessoas. Beneficiou diretamente 274 escolas públicas e um público das comunidades escolares da ordem de 250 mil pessoas, com programas como o ProSocialCinema, Diálogos Com o Cinema, Cinema Escola, Cinema Para Todos, Rede Limpa de Exibição, Oficine-se de Paz e Cine Literário. Estes três últimos deixando legados materiais e simbólicos dentro das próprias escolas. Lembrando ainda que no Ponto Cine Professor e Estudante não pagam ingresso.

O Ponto Cine construiu 4 salas multiusos em 4 cidades do interior do Estado (Cachoeira de Macacu, Piabetá (Magé), Rio das Flores e Sumidouro), 29 cineclubes em 29 escolas da Rede Estadual de Educação, em 29 cidades também do interior.

Deu oficinas para 60 alunos da Escola Tasso da Silveira, aquela que ficou conhecida como palco da tragédia de Realengo, o que resultou em 6 curtas-metragens, ali também adaptou um auditório transformando num cinema com som 5.1, tela polifônica, cortina acústica e projeção em 3D, o deixando como legado.

Desenvolveu 9 projetos, sendo um deles premiado pela Secretaria de Estado da Cultura do Rio de Janeiro, o Cine Literário, que já doou 47 midiotecas às escolas da Rede Pública de Educação, com um acervo de 100 livros da Literatura Brasileira e 100 DVDs de filmes brasileiros, adaptados desses livros, mais um monitor de 57″, Player, catálogos, oficinas e 20 programas com os autores dos livros e os cineastas dos filmes adaptados, produtos de Mostras anuais no cinema.

É um dos cinemas mais estudados no País, com 19 TCCs de finais de cursos universitários, 4 monografias de mestrado e 1 tese de doutorado, case de pesquisa da Estácio, ESPM – Escola Superior de Propaganda e Marketing -, FGV – Fundação Getúlio Vargas, UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro -, e da USP – Universidade de São Paulo.

Também é um dos cinemas mais premiados e condecorado do Brasil: recebeu a Medalha Tiradentes, dada pela Alerj, o conjunto de medalhas Pedro Ernesto, ofertado pela Câmara Municipal do Rio, a Medalha do Mérito Cultural Carioca, dado pela Secretaria Municipal de Cultura, o Prêmio Estadual de Cultura, pela Secretaria de Estado da Cultura, como já foi citado, hoje acrescida da Economia Criativa, o Prêmio Faz Diferença dado pelo Jornal O Globo, pela democratização e a facilitação do acesso ao cinema, o Heloneida Studard de Cultura e muitos outros, dentre eles 11 Prêmios PAR, dados pela Ancine – Agência Nacional de Cinema – como o Maior exibidor de filmes brasileiros de todo o território nacional. Em 2018 tornou-se Patrimônio Histórico e Cultural do Rio de Janeiro.

No seu portfólio de parceiros nesses 18 anos já estiveram a Petrobras, ONS – Operadora Nacional de Sistema Elétrico -, Vale, Consórcio Linha 4, Faculdade Estácio, Brasas, Oi Futuro, ESPM – Escola Superior de Propaganda e Marketing -, Stampa, CPL Soluções em Acessibilidade, Mirage Móveis Para Escritório, L’Amour Motel, Pró-Oceano, Globo Filme e Rede Globo, está retornando agora em 2024, para a felicidade de todos.

Mesmo com nove projetos cine sociais, formando plateia, vocacionando talentos e provocando inversamente a mobilidade da cidade, recebendo gente da Zona Sul, Centro, Barra da Tijuca e Zona Oeste, com o advento das UPPs sofreu uma baixa. 2016 foi arrastado por uma crise.

Voltando um pouco antes essa história. O ano de 2000 encheu os cariocas inocentes de esperança, surgia concretamente, um projeto de segurança pública que, no primeiro momento, mostrou qual era o tamanho e a força do Estado: as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), tendo como marco o Pavão-pavãozinho. A polícia militar passou a ocupar os espaços de conflitos armados mais críticos da cidade e, o melhor, sem disparar um tiro sequer.

O Estado mostrava definitivamente o seu tamanho, força e respeito. Todos viram pela televisão bandidos correndo, fugindo, parecia coisa de filme de ação. Enfim, como nos cinemas, o bem vencia o mal.

O setor cultural, como sempre, foi o primeiro a capturar isso, assim nasceu a FLUPP, um projeto ousado voltado para a literatura, que com o passar dos anos suprimiu um dos Pês e tornou-se um dos maiores do país, se não o maior, o mais original, a Festa Literária das Periferias.

Entretanto, parece que nada passou de um grande arranjo, um grande combinado e o tiro saiu pela culatra.

Atacou-se o meio, não a causa, o princípio. Ou seja, ocupou-se o território, mas não se forneceu condições para a diminuição da bandidagem, de forma que essa turma migrou para outras áreas da cidade e foi assim que o Parque Esperança, Final Feliz, Gogó da Ema e outras subfavelas se transformaram no dragão do mal “Complexo do Chapadão”, que acabou anexando Pavuna, Barros Filho, Costa Barros e Guadalupe.

Guadalupe, com o poder do Chapadão virou o caos, fechamento de comércio, manifestações violentas nas ruas, vários assaltos com armas pesadas e tiros em incursões violentas às agências bancárias. Duas delas, onde se encontra o Ponto Cine.

Até que surgiu o inusitado:  a derrubada de uma parede que dá para o estacionamento do shopping, onde fica o Ponto Cine, para levarem três caixas eletrônicos de bancos 24 horas. A audácia foi realizada com um trator barulhento de pá mecânica, que não anda a mais do que 10 km/h, porém ninguém viu ou ouviu nada.

Se a cidade não oferece o mínimo de segurança aos seus moradores, imagina ali, em Guadalupe, onde persiste só uma voz destoante e resistente, o Ponto Cine.

O Ponto Cine deixou de ser o maior abrigo da plateia para a filmatografia brasileira. Perdeu patrocinadores e foi empurrando as suas atividades até meados de 2017, quando teve que interrompê-las durante 6 meses.

Em 2018, retornou em grande estilo, por meio de um convênio com o Minc (no governo Temer – “alguma coisa está fora da ordem”), e o IFRJ, Instituto Federal do Rio de Janeiro, articulado pela deputada Laura Carneiro. Retornou e inovou mais uma vez, tornando-se Polo Audiovisual, com uma escola especializada em dramaturgia para o audiovisual, cinegrafia, roteirização e direção, com profissionais de ponta no setor, Gilson de Barros, Estefan Hess, Luciano Vidigal, Clovis Molinari, Luciana Bezerra e outros grandes.

A aula inaugural foi com o premiadíssimo diretor Amir Haddad e os alunos dos cursos, além de receberem bolsas para estudar, foram diplomados pelo IFRJ e realizaram 6 curtas-metragens.

O terror no território continuava, mas aquela usina de sonhos, contra tudo e contra todos, resistia. Porém veio a Pandemia do Covid e com ela a decretação da quarentena.

Parecia que tudo era passageiro. O melhor era segurar e preservar a equipe. Mas, infelizmente, o que era para durar quarenta dias durou dois anos, com isso a grana acabou, a direção do Ponto Cine apelou para os empréstimos bancários e endividou-se a tal ponto de não conseguir reabrir suas portas, o que só aconteceu em 2024, após quase quatro anos, ou seja, havia quebrado.

O Ponto Cine não é um projeto de mercado, é fora da lógica neoliberal, não surgiu para competir e sim para compartilhar histórias, conhecimento, prazer, entretenimento e cidadania, em um território há anos invisibilizado pelo Estado.

É de um lugar de poucos e limitados sonhos onde meninos querem ser jogadores de futebol, motoristas de ônibus ou, quem sabe, bombeiros; e meninas, misses, caixas de supermercados ou, quem sabe, trabalharem num banco.

Local onde se encontra a mão de obra mais barata do mercado e o menor IDH da cidade. De superlativo ali só o maior número a roubos de carga na avenida Brasil e a maior incidência de contaminação por HIV (Costa Barros).

Mas o Ponto Cine persiste há 18 anos mostrando que há luz após o túnel e distribuindo luz, não se sabe por quanto tempo.

As dificuldades foram muitas, no entanto ano passado surgiu uma esperança que permitiu um reinício de retomada: a Lei Paulo Gustavo. O Ponto Cine venceu o Edital da Prefeitura do Rio, através da RioFilme com o Pró-Carioca, e o da SECEC, para reabertura e manutenção de salas de exibição, com a duração só de um ano, mas já é alguma coisa.

Novos equipamentos foram adquiridos, outros revisados, o cinema foi repaginado e como novidade um painel imponente de Led no tamanho de 3mx2m na fachada externa do Shopping, de cara para quem vem da Avenida Brasil pela Marcos de Macedo, exibindo os trailers dos filmes, os horários das sessões, teasers dos projetos e exibição ao vivo dos debates que acontecem durante o projeto Diálogos com o Cinema.

A cidade do Rio de Janeiro possui 208 salas de cinema, porém a única que teve a ousadia de botar um painel de Led e utilizá-lo como segunda tela de divulgação, está em Guadalupe, a do Ponto Cine.

O esforço para manter de pé esse cinema, esse polo audiovisual, esse centro cultural e de convivência, como costuma falar o cineasta Cacá Diegues, que se auto intitulou e foi aceito, claro, como padrinho do espaço, é muito grande.

Para se ter uma ideia, só esse ano, a partir da sua reabertura, vários cineastas, atores, roteiristas e produtores já foram lá debater com a plateia após as exibições dos seus filmes, dentro do projeto Diálogos com o Cinema, que acontece quinzenalmente: Caio Blat (Grande Sertão); Márcio Vito; Mary Sheila; Thaiza Barcellos, Jonathan Haagensen; Cintia Rosa, Arthur Ferreira (NegoNey); Babu Santana; Gustavo Melo; Luciana Bezerra (Festa de Léo); José Joffily (Sinfonia de um Homem Comum); Victor Lopes (Fausto Fawcett na cabeça); Cavi Borges, LF Brandão, Marco Antônio Pereira (Favela do papa); Renata Magalhães, George Sauma, Marina Provenzzano (Aumenta que é rock’n roll); Bobo da corte (Alexandre DaCosta, Renaud Leenhardt, José Asbeg); Zé Brandão (Tromba trem); e Marão (Bizarros Peixes das fossas abissais).

Tudo isso além das entradas gratuitas para professores e alunos da Rede Pública de Educação, e preços populares na bilheteria (R$ 10 a inteira e R$ 5 a meia entrada), só com a curta verba, graças a São Paulo Gustavo.

Enfim, os utópicos do Ponto Cine continuam dando um passo à frente, como dizia Eduardo Galeano, afinal é para isso que a utopia existe.

Entretanto, remar sozinhos contra a maré é muito difícil. Sabe aquele painel de Led imponente que eles se orgulham tanto de terem instalado na testeira do shopping, a cima de uma loja onde existe uma farmácia, local que foi uma agência bancária fechada a alguns meses por conta da onda de violência? Está comprometido.

De baixo dele, na calçada, em frente a farmácia, diariamente há dois meses fica estacionado um caveirão, o que inibe a visibilidade do painel e a passagem de cinéfilos, já que ali é uma das entradas que levam ao Ponto Cine. Há 50 metros, existe outro após o mercado, na mesma estrada onde fica o cinema, a Camboatá e, antes do cinema, para quem vem da Baixada há outro, há uns 300 metros.

Toda vez que o pessoal do Ponto Cine participa de um “pitching” de edital público de cinema os sabatinadores os questionam sobre resultados e “resultados” para eles é cash, money, dinheiro, bilheteria.

Como foi dito no meio da matéria, o Ponto Cine não é um projeto de mercado, é fora da lógica neoliberal, não surgiu para competir e sim para compartilhar histórias, conhecimento, prazer, entretenimento e cidadania, em um território há anos invisibilizado pelo Estado, ou seja o seu maior resultado dentro de todas essas adversidades é dedicar-se, exclusivamente, à exibir os filmes brasileiros e formar plateia para a cinematografia brasileira, como nenhum outro cinema faz no Brasil e no mundo.

Um cinema cidadão como esse merece o mínimo de respeito, o máximo de incentivo e um olhar especial do Estado e não uma Caveirão na sua porta.

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