Soldado Sotero, número 2346, fuzil 100596

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Mais um dia da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. e, na ordem do dia, César lembra de um dia Sete de Setembro, quando era o Soldado Sotero, 2346. César, também já fui soldado, mas meus dias foram na ditadura militar, em 1976. Eu era o Soldado Araújo, 1019. Um dia conto. Hoje o conto é seu.

“Com o feriado de Sete de Setembro, ocorreu-me que ainda tenho lembranças do período em que servi ao Exército Brasileiro, na condição de soldado raso, em 1990. É sinal de que experiências breves podem ser intensas, traumáticas até. Eu servi no Batalhão de Guardas, o Batalhão do Imperador, quartel situado em São Cristovão, bairro do Rio de Janeiro. O prédio foi cedido à Guarda Municipal, o que me impressionou, pois o julgava tombado ou coisa do tipo. Agora o BG fica onde era o quartel do CPOR (Centro Preparatório para Oficiais da Reserva), que agora fica na avenida Brasil.




Palavras como “conscrito” (soldado que ainda não se formou), “cobertura” (boné), “bisonho”, “mocorongo” (soldado atrapalhado), “aloprado” (soldado maluco), “rancho” (restaurante), “coturno” (a bota militar), “negão” (todos os soldados eram chamados assim, não importando se fossem brancos como uma vela ou negros zulus), entre outras que me escapam agora, levantam a hipótese segundo a qual há um vocabulário restrito à caserna, praticamente um jargão. Coisas do tipo:

O conscrito estava no rancho sem cobertura e com os coturnos sem engraxar (o que seria do ramo das pomadas de calçados se não existissem os quarteis?) quando o sargento do dia lhe chamou:Negão, deixa de ser bisonho! Vai pegar detenção!
Provavelmente o conscrito teve que pagar dez flexões de braço ou dez cangurus, seguidos de cinquenta polichinelos. Eis alguns nomes de exercícios físicos dos quarteis.

Tirávamos mais serviço externo que qualquer outro quartel. Lá íamos naquele caminhão verde-oliva que parece um enorme banco de praça segurando num braço um fuzil enquanto o outro ficava preso ao banco por uma correia de lona. Aterro do Flamengo. Palácio Duque de Caxias. Hospital do Exército. Estande de Tiro. Policlínica (melhor de todas: comida boa, dava para dormir oito horas seguidas).

Vi putas, travestis, loucos. Ouvi a grito dos macacos soando como as gargalhadas de Exus no meio da noite, casais transando nas ruas, soldado repetindo mais de cinco vezes a refeição, soldado usando drogas (cocaína, sobretudo), soldado transando com soldado, soldado pegando a namorada de outro soldado, bandidos encarando os soldados, soldados roubando, soldados presos em uma cadeia pequena, de seis ou sete celas. Vi um pouco de tudo. Quando não vi, fiquei sabendo. Tem muito leva-e-traz no quartel.


Mas a véspera do Sete de Setembro de 1990 foi a noite que reuniu tudo isso e mais um pouco.
A excitação em decorrência de todos aqueles jovens pernoitados teve lá seu peso. Mas, salvo engano, a balbúrdia foi tão grande que as luzes do dormitório, que são apagadas às 22h, tiveram que ser acesas. O comandante da Segunda Companhia veio nos dar um esporro que, em alguns casos, funciona como um bom sonífero.


Fez um dia de sol naquele Sete de Setembro. O Batalhão de Guardas e a Polícia do Exército eram os responsáveis pela segurança do evento. Eu estava bem perto da avenida Presidente Vargas, do desfile, portanto.

Vi um rapaz, cadete da AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras), que morava na mesma rua onde eu morava no Engenho Novo. Ele tinha uma cicatriz no rosto causada por uma queda de motocicleta: era como se ele tivesse um pouco de asfalto no rosto.


Em suma, ele passou por mim com aquela convicção que no jargão militar a gente chama de vibração. Era uma cena bonita ver o orgulho estampado no rosto dele. O que terá ocorrido com ele? Provavelmente deve ter se formado. Deve ter uma alta patente hoje. Talvez coronel, talvez general, vá saber.

Eu também me formei, na vida. Eu também estou aqui.

Muitos dos sujeitos que serviram comigo se bandearam para o crime. Foram capa do “Povo”, o jornal sensacionalista que, dizem, se torcer sai sangue. É que crime vende jornal barato.
Alguns viraram seguranças, como foi o caso do Oslair, com quem encontrei em um supermercado, não sei quantos anos atrás.


Tenho sonhos ruins com o quartel de vez em quando. Eu recebia uma segunda convocação. Eu até dizia no sonho que eu já tinha servido e tal, mas de nada adiantava. Como nos sonhos, eu tentava andar e não saía do lugar. E o polegar encostava à mão, como se estivesse a aguardar o comando de “Ordinário, marche”.

Na vida concreta, eu tenho que voltar para o Batalhão de Guardas para solicitar uma segunda via do meu certificado de reservista. Da última vez em que fui ao BG presencialmente, antes da pandemia, reconheci o sargento que falava com um soldado sobre o Cristo de certas igrejas evangélicas. Ele era daquele tempo.
Eu acho que ele não me reconheceu. Se ele estava velho, eu também estava. Velhos, não. Veteranos.

Ficaram meu nome de Guerra, o velho Sotero; meu número, o 2346, apesar de eu não estar absolutamente seguro em relação ao número; o número do fuzil FAL, o 100596. Eu fui do terceiro pelotão da Segunda Companhia do Batalhão de Guardas, Batalhão do Imperador.

Foto: César é o soldado da esquerda, ao lado de Armando

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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