Luta pela preservação das memórias quilombolas encontradas nas obras do metrô escancara como, na história, a metrópole expulsou comunidades do centro e destruiu seus símbolos – tudo em nome do progresso. Agora, Exu vem cobrar a conta
Por Daniel Costa, no GGN, compartilhado de Outras Palavras
Desde meados de 2022 diversos veículos de imprensa passaram a noticiar a descoberta de artefatos arqueológicos na área onde pretende-se erguer a futura estação 14 Bis da linha laranja do metrô, na região da Bela Vista, centro da capital paulista. Os artefatos foram localizados em um território carregado de simbolismo para a população negra e para o samba da cidade. Basta dizer que segundo pesquisadores a área em questão pertenceu ao antigo Quilombo do Saracura, ali também ficava a antiga sede da tradicional escola de samba Vai-Vai, que infelizmente foi demolida para dar passagem aos trilhos do metrô. Mesma situação vivida há quase um século quando dezenas de casas e cortiços foram demolidas com a justificativa de “organizar” a cidade, nos moldes dos planos de avenidas gestado pelo prefeito Prestes Maia.
Assim, mais uma vez a comunidade negra paulistana vê seus símbolos sendo alvo da destruição e apagamento em nome de um suposto progresso. Outro fato que também tem despertado atenção foi à discussão nas redes sociais em torno da inauguração, também em 2022, de uma estátua em homenagem a Deolinda Madre, a madrinha Eunice, figura de destaque no samba de São Paulo e fundadora da Escola Lavapés na região do Glicério, a escolha da Praça da Liberdade para a fixação do monumento gerou críticas de alguns grupos que enxergam a região apenas como bairro oriental, desconsiderando o seu passado negro.
Felizmente essa situação vem mudando, principalmente através da articulação de diversos setores da sociedade civil para confrontar esse discurso, onde o apagamento da ancestralidade negra por aqueles que detém o poder é a tônica. Assim, iniciativas como a construção do Memorial dos Aflitos, a alteração do nome da Praça da Liberdade para Praça da Liberdade África – Japão, a realização de uma roda de samba mensal em homenagem a Madrinha Eunice na região do Glicério e a discussão sobre o protagonismo da Lavapés na região contribuem para arejar o debate e mostrar que outros atores ocuparam e ocupam aquele espaço.
Casos como os citados tornam cada vez mais necessário amplificar essas discussões para o conjunto da sociedade, que a iniciativa daqueles que constroem o movimento Saracura Vai-Vai sirva como combustível para o resgate da história de outros tantos territórios que foram engolidos pelo apagamento em nome do progresso. Que esses movimentos tragam para o conjunto da população tanto as diversas memórias do samba paulistano como também a história da ocupação desses territórios pela população negra.
Pensando especificamente no samba, ignorar essa história significa relegar ao esquecimento figuras ímpares como aqueles que ficaram conhecidos como os cardeais do samba paulistano: Carlos Alberto Alves Caetano, o Seu Carlão do Peruche (Unidos do Peruche) o último cardeal vivo, Inocêncio Tobias (Camisa Verde e Branco), Sebastião Eduardo Amaral, o Pé Rachado (Vai-Vai), Alberto Alves da Silva, o Seu Nenê (Nenê da Vila Matilde), Deolinda Madre, a Madrinha Eunice (Lavapés) e Benedito Nascimento, o Xangô de Vila Maria. Também significa ignorar a presença do samba e da população negra em regiões como a Barra Funda, Bela Vista, Glicério-Liberdade e a região central da cidade, lugares que apesar da pouca divulgação e da disputa em torno da memória podem, e devem ser considerados o berço do samba paulistano.
Como forma de ilustrar a difusão do samba por essas regiões recorro ao trabalho de Marcos Virgílio da Silva, que busca mostrar a diversidade daquilo que poderíamos chamar de lugares de samba na cidade de São Paulo, vejamos: “Praças da Sé, Clóvis e João Mendes, concentrações de engraxates que, ao final do expediente também praticavam samba com (e em) seus instrumentos de trabalho; na Rua Direita, referência fundamental da sociabilidade negra em São Paulo (especialmente na década de 1950) e na Lavapés, no Cambuci, berço da escola homônima, considerada a mais antiga em atividade na cidade; no Largo da Banana (Barra Funda) ou do Peixe (Vila Matilde), entre outras. Outros lugares […] incluem: Largo do Piques (atual Praça da Bandeira), na “Prainha” –Praça do Correio, na esquina do vale do Anhangabaú com a Avenida São João […] –, no Bar do Chico (Rua Santo Antônio, no Bixiga) –o chamado “Cabaré dos Pobres” –e, na Barra Funda, no cruzamento das Ruas Conselheiro Brotero e Vitorino Carmilo. O jornalista Zuza Homem de Mello menciona, ainda, o bar Siroco, na Avenida Nove de Julho, nas proximidades da Praça da Bandeira, sem falar dos salões e gafieiras” (SILVA, 2001: p. 79-80).
Ao caminhar por essas regiões é raro encontrar algum vestígio do samba de outrora, como na região do Morro das Perdizes (local de fundação da primeira escola da cidade), do Largo da Banana que parece ter sido propositalmente riscado do mapa pelas autoridades de uma forma definitiva, e de modo tão perfeito, que mesmo os sambistas sentem enorme dificuldade em cravar o ponto exato das rodas de samba e das disputas de tiririca naquela região.
A professora Lígia Nassif Conti em sua pesquisa sobre Geraldo Filme explica que “atrás da antiga estação ferroviária era onde se situa o Largo da Banana, espaço aludido nas histórias contadas pelos sambistas. Nesse local chegavam, via porto de Santos, bananas e outras mercadorias, ali descarregadas e transportadas pelos trens para cidades do interior do Estado. Já no final da década de 1950 esse cenário urbano começa a ser alterado. O Largo da Banana se situava no final da Rua Brigadeiro Galvão, local tomado pela construção do Viaduto Pacaembu. De acordo com a notícia do jornal Folha da Manhã do dia 09 de julho de 1959 anunciando a inauguração do viaduto que aconteceria naquele dia, o viaduto “atravessa as linhas férreas da Sorocabana e da Santos a Jundiaí, alcança a rua Barra Funda e atinge a rua do Bosque, ligando a praça Brigadeiro Galvão (‘largo da Banana’) à rua do Bosque”. (CONTI, 2015, p. 6).
A cidade de São Paulo até meados do século XIX e início do século XX passou por um significativo processo de transformação. Por volta de 1870 a cidade contava com cerca de 30.000 habitantes e sua área principal ficava restrita ao chamado triângulo central (Rua Direita, São Bento e XV de Novembro). Warren Dean em estudo sobre a industrialização paulista mostra que em 1880 a cidade abrigava cerca de dezesseis fábricas (DEAN, 1971, p.19). Porém, com a expansão cafeeira e a crescente industrialização que passará a ocorrer no próximo período, a capital começa a mudar sua feição iniciando o processo que culminaria na formação da metrópole que hoje conhecemos.
Além da expansão territorial, pode ser observado no mesmo período grande crescimento populacional, em 1900 a cidade já concentra população estimada em 240 mil pessoas, o crescimento seguirá como uma constante até meados da década de 20, quando a capital alcançará a marca de 600 mil habitantes. É nesse cenário que a cidade começa a acompanhar o desenvolvimento do que ficou conhecido como bairros operários (Barra Funda, Brás, Bixiga, Glicério, entre outros). O surgimento de diversos grupos como o Barra Funda, o Vai-Vai, a escola Lavapés, mais tarde o Paulistano da Glória entre outros, apenas comprova a vitalidade da presença da população negra nessas regiões.
Durante o governo do prefeito Antônio Prado, entre 1899 e 1911 a capital passou por um grande processo de transformação urbanística, comparado à reforma feita por Pereira Passos no Rio de Janeiro. As medidas tomadas por Prado visavam transformar São Paulo em um espelho das metrópoles europeias, e para tal intento era necessário apagar os vestígios da população negra. Uma das medidas mais drásticas e considerada símbolo desta política foi à demolição da Igreja do Rosário e das construções do entorno (o cemitério negro e diversas casas de aluguel ocupado por famílias negras) para dar origem ao que viria ser a atual Praça Antônio Prado, onde se localiza o Edifício Martinelli e o prédio da Bolsa de Valores, símbolo do apogeu da cafeicultura na época.
O samba paulistano tem suas origens no samba de bumbo e nos festejos de Bom Jesus de Pirapora, misturando a ancestralidade africana e a religião católica, as festas passaram a ser um grande encontro da comunidade negra do estado, foi nos barracões onde os negros se hospedavam que o samba de bumbo começou a tomar forma. Pelos barracões de Pirapora passaram figuras como o lendário Dionísio Barbosa fundador do primeiro cordão paulistano, o Grupo Barra Funda; o sambista e ator Henricão que viria a ser membro da ala de compositores do Vai-Vai; Geraldo Filme, Madrinha Eunice e outras figuras que fariam história no samba da Pauliceia.
Como observado anteriormente, é no começo do século XX que a elite paulistana irá forjar o discurso buscando transformar a cidade em uma verdadeira metrópole, assim, com o intenso processo de urbanização na região central, a população pobre e negra da região começa a ser retirada desses lugares. Removidos da região central passarão a ocupar regiões menos valorizadas como a várzea do Glicério, várzea do Saracura no Bixiga e a região da Barra Funda onde graças a malha ferroviária havia possibilidade de trabalho na carga e descarga de trens.
As junções dos laços criados nas áreas de moradia, somadas aos encontros nas festas de Pirapora possibilitaram o surgimento e desenvolvimento do samba, como atesta José Geraldo Vinci de Moraes em trabalho que é referência para a compreensão do tema: “Os primeiros cordões apareceram na década de 1910, nos bairros de maior incidência de população negra, como Barra Funda, Bexiga e Liberdade, sempre baseados nos núcleos de família e círculos de vizinhança. Os precursores foram o Grupo Carnavalesco Barra Funda, mais conhecido na época como Camisa Verde e Branco, fundado em 1914, e o Campos Elíseos, que surgiu no ano seguinte. Nos anos 20, aparecem o Flor da Mocidade (Barra Funda), Desprezados (Campos Elíseos) e o Vai-Vai (Bexiga) que, já na virada da década, tornou-se o maior rival e concorrente do Barra Funda” (MORAES, págs. 4 e 5).
No final do século XIX e começo do século XX com o começo da ocupação da região da Avenida Paulista e Consolação pela elite cafeeira, os funcionários dessas famílias, geralmente mulheres negras que trabalham como cozinheiras e lavadeiras e imigrantes que também realizam trabalhos domésticos passam a ocupar a região da Várzea do Saracura, (região onde hoje passa a Avenida Nove de Julho) com suas famílias.
Na época em que a cidade possuía diversos campos de várzea não era difícil ver times mistos pelos campos da região, e um desses times, o Cai-Cai iria originar em 1930 o surgimento do cordão Vai-Vai que mais tarde viraria escola de samba de enorme tradição e que até hoje ostenta o título de maior campeã do carnaval paulistano. Pouco tempo após sua fundação, o Vai-Vai já aparecia como um dos principais cordões da cidade, rivalizando com o Grupo Barra Funda o protagonismo do carnaval. Segundo depoimentos da época, não era raro ver pelas ruas brigas entre os integrantes dos dois grupos. Porém, ao contrário dos times de futebol de várzea, até a década de sessenta apenas a comunidade negra desfilava no Vai-Vai. Estudiosos sobre o carnaval e o samba paulista apontam que essa característica pode ter sido fator crucial para a consolidação da Vai-Vai como ponto de referência e resistência do samba paulistano.
Passados quase um século da consolidação do processo de ocupação dessas regiões pela população negra e as posteriores tentativas de apagamento por parte das elites, os pesquisadores Vitor Silveira e Leonardo Antan apontam que, “em uma visão atravessada pelo pensamento afro-religioso, é possível dizer: Exu cobrou”. Lutar pela preservação da memória da população negra do Bixiga, daqueles que viveram no Quilombo Saracura, nos cortiços da região que podem ser encarados como os quilombos dos séculos XX e XXI, garantir a permanência do Vai-Vai no bairro mais que firmar um compromisso e legado, pois como diz a jornalista Claudia Alexandre em trabalho fundamental sobre a agremiação, “na Vai-Vai, a religiosidade reforça a identidade étnico cultural da comunidade, constitui um elo com a tradição ancestral e uma forma de resistência política contra a estrutura racista e marca como se deram as negociações e os embates com as demais tradições culturais do bairro, oriundas de imigrantes italianos e migrantes nordestinos”.
Lutar pela preservação desse passado é lutar pela memória de figuras como Seu Livinho, Seu Chico, Henricão, Benedito Sardinha, Frederico Penteado, Geraldo Filme, Pato N’ Água, Dona Olímpia, Dona China, Tia Cleuzi e tantos outras figuras que passaram e passam por esse território construindo sua memória
Daniel Costa é historiador pela UNIFESP, compositor e integrante do G.R.R.C. Kolombolo Diá Piratininga.
Referências
ALEXANDRE, Cláudia. Orixás no terreiro sagrado do samba: Exu e Ogum no Candomblé da Vai-Vai. Rio de Janeiro: Armando, 2022.
ANTAN, Leonardo (curador). Matriarcas do samba paulistano. Rio de Janeiro: Carnavalize,2023.
AZEVEDO, Amailton Magno. A Memória Musical de Geraldo Filme. Os sambas e as micro-Áfricas em São Paulo. São Paulo: PUC, 2006.
BARONETTI, Bruno. Transformações na Avenida. São Paulo: Editora Liber Ars.
CONTI, Ligia Nassif. A Memória do samba na capital do trabalho: os sambistas paulistanos e a construção de uma singularidade para o samba de São Paulo (1968-1991). Tese apresentada ao PPG em História Social da FFLCH-USP. São Paulo: 2015.
DOZENA, Alessandro. A geografia do samba na cidade de São Paulo. São Paulo: Fundação Polisaber, 2011.
MORAES, José Geraldo Vinci de. Polifonia na metrópole: história e música popular em São Paulo. Revista Tempo, no 10, pp. 39-62. Rio de Janeiro .
SILVA, Marcos Virgílio. Debaixo do “Pogréssio”. Urbanização, cultura e experiência popular em João Rubinato e outros sambistas paulistanos. (1951-1969). São Paulo: FAU/USP, 2011.