Em entrevista, autor de Como as democracias morrem afirma que eventual segundo governo Trump será ainda mais autoritário
Por Natalia Viana, compartilhado de A Pública
Um segundo governo Trump deve ser mais autoritário, afirma o professor de Harvard Steven Levitsky, autor do livro best-seller Como as democracias morrem (editora Zahar, 2018). Nessa conversa exclusiva com a Agência Pública, o diretor do Centro David Rockefeller para Estudos Latino-Americanos afirma que, se eleito, Trump não vai confiar em especialistas para definir suas políticas e deve usar o Estado para perseguir seus inimigos.
“Ele disse que vai usar o poder do Estado para investigar e perseguir seus rivais, ele falou que vai usar o poder do Estado para perseguir a mídia independente. Ele disse que vai usar o Exército para reprimir manifestantes. São as falas mais autoritárias que eu ouvi qualquer candidato dizer em qualquer lugar do mundo”, afirma.
Para Levitsky, o populismo digital coloca a academia e a imprensa em uma encruzilhada, ao forçar uma aliança em defesa do status quo. “Eu vou continuar vilipendiando Trump porque Donald Trump é uma ameaça direta à democracia norte-americana”, promete.
Ele analisa que, embora haja tendências mundiais – como o fato de populações votarem sempre nos candidatos oposicionistas, uma expressão da irritação do público com as democracias –, o que leva autocratas ao poder são as circunstâncias locais de cada país. “No final das contas, a política latino-americana é moldada por dinâmicas latino-americanas, não por eventos nos Estados Unidos.”
Sobre a radicalização política dos Estados Unidos, ele diz ainda que o trumpismo deve durar muito mais para além de Trump. “O Partido Republicano hoje é irreconhecível. Não é mais um partido defensor do livre mercado e predador como era sob Ronald Reagan. É um partido populista etnonaconalista, um partido de direita iliberal. E esta é uma mudança dramática.”
Leia a entrevista:
Minha primeira pergunta é: qual foi sua reação quando soube do atentado?
Honestamente, que isso iria ajudar o Trump e que isso nos deixaria mais próximos a um governo autoritário. Eu não fiquei nem um pouco chocado.
Por quê? Era algo previsível?
Não era previsível, mas os EUA são um país grande, com alto nível de doenças mentais não tratadas, um número extraordinariamente grande de armas que são facilmente acessíveis e em meio a uma campanha eleitoral muito, muito polarizada, dramaticamente reforçada pelas redes sociais. Então, o fato de que um jovem de 20 anos poderia facilmente conseguir uma arma e tentar assassinar um dos candidatos nos Estados Unidos, dadas as condições, não deveria chocar ninguém. Não que seja previsível, mas não é chocante.
Aqui no Brasil, há muitas comparações com a facada a Jair Bolsonaro, em 2018. Qual é o impacto do discurso agressivo, de ódio, que ambos os políticos adotaram nas suas campanhas?
A retórica violenta não ajuda. Mas temos que lembrar que tentativas de assassinato [de presidentes e primeiros-ministros] têm acontecido em todos os tipos de sociedades. O Japão teve uma há dois anos, e o primeiro-ministro da Suécia foi assassinado em 1986. Os Estados Unidos tiveram sete assassinatos ou tentativas entre 1963 e 1981. A democracia americana era considerada saudável durante esse período, e Gerald Ford sofreu duas tentativas de assassinato em um ano. Reagan sofreu uma tentativa de assassinato. Kennedy foi morto, obviamente. E esses perpetradores não precisavam de uma retórica violenta [para fazer isso]. E, então, infelizmente, tentativas de assassinato acontecem, e acontecem muito mais em sociedades onde as pessoas têm acesso muito fácil a armas.
Você diz que o discurso agressivo não seria uma das causas do atentado, mas, pelo menos no primeiro pronunciamento depois do atentado, Trump pediu “união”, e essa parece ter sido a toada da convenção republicana de ontem. Você acha que há chances de o atentado levar a uma moderação da retórica de Trump?
É difícil dizer com Trump. Acho que ele pode fazer isso por um tempo. Seria inteligente politicamente se ele fizesse isso, acho que o ajudaria eleitoralmente. Mas Trump é Trump, e ele nunca foi disciplinado. Trump geralmente diz o que pensa, e eu ficaria surpreso se Trump continuasse ao longo do tempo com essa linha de paz e unidade, mas veremos. Ainda há, claro, cerca de quatro meses pela frente e hoje ele não mudou muito, certo? Então não acho que Trump vai mudar muito.
Você disse que sua primeira impressão era que o atentado ajudaria Trump. Aqui no Brasil, fica difícil evitar a sensação de déjà-vu, em relação ao que ocorreu com Bolsonaro e foi decisivo para sua eleição em 2018. Você acha que essa é uma visão simplista?
Olha, claro que há paralelos entre os Estados Unidos e o Brasil, que continuam a ser surpreendentes. Há diferenças, entretanto. Esse atentado ocorreu bem mais cedo na campanha. O atentado foi muito menos sério. Lembre, Bolsonaro sofreu um ferimento que ameaçou sua vida, e ele ficou no hospital por um longo período. Durante todo o período em que Bolsonaro esteve no hospital, era impossível criticá-lo, atacá-lo, e isso realmente afetou a campanha. Não acho que nada disso vai acontecer nos Estados Unidos. Acho que em alguns dias as pessoas estarão de volta aos ataques. Então, minha análise é que isso terá menos impacto do que teve no Brasil.
Mas, por outro lado, há pessoas que estão criticando a maneira como elas dizem que a imprensa está “vilipendiando” o Trump…
Bem, há um problema sério aí. Eu vou continuar vilipendiando Trump porque Donald Trump é uma ameaça direta à democracia norte-americana. Donald Trump tentou reverter uma eleição e se manter no poder ilegal e violentamente.
Durante essa campanha, ele disse que vai usar o poder do Estado para investigar e perseguir seus rivais, ele falou que vai usar o poder do Estado para perseguir a mídia independente. Ele disse que vai usar o Exército para reprimir manifestantes. E ele disse que vai usar a Guarda Nacional para tentar deportar entre 15 milhões e 20 milhões de pessoas. São as falas mais autoritárias que eu ouvi qualquer candidato dizer em qualquer lugar do mundo. Hugo Chávez nunca disse nada desse tipo. Orbán nunca disse nada desse tipo. É algo muito perigoso. A mídia e os cientistas sociais têm a responsabilidade de fazer todo o possível para impedir que esse cara seja eleito.
Agora, dito isso, Trump deve ser combatido de forma pacífica e democrática, que é exatamente o que está acontecendo. Não conheço nenhum político democrata que tenha pedido ações ilegais ou violentas para impedir Trump. Trump deve ser derrotado nas urnas. Mas Deus nos livre de pararmos de dizer a verdade sobre Donald Trump porque algum maluco tentou matá-lo.
Nos seus livros, você afirma que a única maneira de parar um autocrata é formar coalizões ultrapartidárias. Existe alguma chance de isso acontecer nos EUA, de alguns republicanos, por exemplo, apoiarem um candidato democrata?
Não há muita chance. Mesmo antes dessa tentativa de assassinato, muito poucos republicanos apoiavam abertamente Joe Biden. Mesmo republicanos que, como Mike Pence, disseram que Donald Trump absolutamente não está apto para o cargo. Ele disse abertamente que não pode votar em Joe Biden porque ele é um republicano. Então, essa coalizão, da qual vimos um bom exemplo na Polônia no ano passado, na França agora e um exemplo meio capenga, mas aceitável, no Brasil… Nada disso está acontecendo nos Estados Unidos.
Mas isso não é por causa da tentativa de assassinato. Já não ia acontecer.
Como você disse, nesta campanha Trump tem sido ainda mais virulento, tem dito que será ditador por um dia etc. E mesmo assim ele tem um grande apoio do seu partido e de metade do eleitorado. Isso surpreende você?
Sim, me surpreendeu um pouco. Mas aprendemos que há um setor do eleitorado dos EUA, cerca de 35%, que sente que o país em que cresceram está sendo tirado deles. Eles sentem que estão perdendo seu país. Eles estão realmente zangados e realmente radicalizados. E eles veem Trump da mesma forma que alguns eleitores brasileiros viam Bolsonaro: como um veículo para atacar a elite, uma forma de expressar sua raiva. Nesse sentido, é semelhante também ao voto pelo Brexit. E pelo Milei na Argentina. Esses caras não se incomodam com a retórica dele. Na verdade, eles podem ser mais atraídos por ela. Querem alguém que vá simplesmente derrubar tudo. E Trump é um veículo para isso.
Existem outros eleitores. Um setor importante do eleitorado que não presta atenção à política, realmente não se importa, não tem uma ideologia clara, mas está bastante insatisfeito, bastante descontente.
Estamos vendo isso em todas as democracias, os eleitores vão votar na oposição. Há um forte sentimento antioficialista nos eleitorados de todas as democracias. Vimos isso no Reino Unido, na França, vamos ver no Canadá, vimos na Argentina, no Brasil, na Colômbia, vimos praticamente em todos os lugares, exceto no México. E isso ajuda Trump. Ajudou Biden em 2020, mas está ajudando Trump agora.
Há pessoas que vão votar em Trump não porque gostam de Trump, não porque concordam com Trump, mas porque querem votar contra o status quo. E, os números ainda assim não são muito altos. Grande parte do sucesso de Trump se deve à impopularidade de Biden. Trump nunca ultrapassou 43%, 44% do voto projetado, mas é o suficiente para ser eleito.
Mas não é a mesma coisa que Milei ou Bolsonaro quando foram eleitos. Nesses casos, eram novidades na política de massas, nomes virtualmente desconhecidos.
Verdade. Mas eles sabem quem ele é e gostam disso. Eles sabem que, se há alguem que – se me permite a expressão – vai dizer “foda-se” para Wall Street e para as elites, para os jornalistas e os professores de Harvard e para os políticos em Washington, será ele. Esses eleitores não gostam de todas as mudanças que estão acontecendo no século 21, as mudanças culturais e as sociais são sérios desafios às hierarquias sociais, raciais e de gênero estabelecidas há muito tempo. E estão irritados com isso. E Trump é o melhor cara nos Estados Unidos para simplesmente dar um soco no estômago de pessoas como eu. Então, sim, ele não é um outsider, é verdade, mas ele ainda é um populista, é um veículo para expressar a raiva da direita.
Você acha que pessoas como você, na academia, ou nós, na imprensa, estamos errando na maneira como acabamos nos tornando defensores do status quo?
Esse é o desafio do populismo. Populistas atacam todo o establishment, e isso inclui desde professores de esquerda até empresários de direita, jornalistas e políticos de centro.
E assim, inevitavelmente, universidades e mídia mainstream são forçadas pelos populistas a ficar de um lado. Não há uma resposta fácil, eu certamente não tenho a resposta. Mas a nova divisão entre populistas e antipopulistas nos obriga a ficarmos do mesmo lado. Não há uma solução fácil para isso.
Todos nós deveríamos trabalhar. No meu caso, sabe, me perguntam o tempo todo: “Você não parece partidário?”. Sim, é verdade, mas, isso é o que eu faço para viver. Eu estudo autoritarismo para viver, e eu não vou parar de dizer a verdade só porque pode parecer partidário.
Faz sentido isso?
Sim, faz muito sentido. Apesar de haver uma conexão com parte do eleitorado, também há um enorme apoio a Trump por parte do Partido Republicano. No seu último livro, Como salvar a democracia (editora Zahar, 2023), você conta como o Partido Republicano se tornou ele mesmo um partido de extrema direita. O que isso significa no contexto político atual? Será que o trumpismo vai continuar mesmo depois de Trump?
O Partido Republicano continuou a se radicalizar ao longo do século 21, as pessoas continuam esperando que o partido recupere seu senso comum e se modere. Isso ainda não aconteceu, e é impossível prever se e quando isso acontecerá. Mas, quanto mais o partido vence eleições, mais ele é radicalizado.
Então, eu acredito que o trumpismo terá uma vida bastante longa após Trump, e se você viu o jovem candidato a vice-presidente relativamente talentoso, J.D. Vance, que pode muito bem continuar carregando sua bandeira.
O Partido Republicano hoje é irreconhecível. Não é mais um partido defensor do livre mercado e predador como era sob Ronald Reagan. É um partido populista etnonacionlista, um partido de direita iliberal que em alguns aspectos é mais extremo até do que a extrema direita na Europa, porque a extrema direita na Europa não promove violência como os republicanos fazem. E essa é uma mudança dramática. É um partido completamente diferente do que era há 30 ou 40 anos.
E acredito que não há quase nenhuma chance de ele voltar a ser um partido de centro-direita liberal como era há 30 anos.
Isso significa também que, mesmo que haja um grande partido por trás da candidatura, ele também não vai conseguir moderar Trump em um segundo mandato presidencial. Você pode nos dizer o que pode ser esperado se ele vencer? O que ele realmente pode fazer?
É muito difícil dizer. Podemos olhar para seu primeiro mandato. Agora, ele não vai confiar em especialistas. Então, será um governo grosseiramente incompetente, quero dizer, a administração da pandemia… Sua negligência em relação à pandemia custou um número enorme de vidas, um número trágico de vidas.
Então, vamos ver um governo que é incompetente. Ele deixou bem claro que não vai confiar em servidores civis profissionais, mas sim em pessoas leais. E eu acho que ele será muito, muito mais agressivo em usar o Estado como uma arma contra seus rivais.
Trump não fala muito sobre política, então é difícil saber em quais políticas ele vai se concentrar.
Eu acho que também se pode esperar uma política externa que vai se afastar das democracias ocidentais, longe da Otan, e possivelmente em direção a algum tipo de flerte com a Rússia, o que é difícil de acreditar, mas é isso aí.
Claro, seu governo [o do Brasil] também está fazendo isso.
Sim, de certa maneira, mas no sentido oposto. Qual será a consequência para a América Latina, uma vez que temos grandes lideranças de ultradireita agora no continente, Milei e Bukele?
Eu acho que é uma continuação. Quero dizer, a direita latino-americana passou por uma transformação dramática ao longo de uma década mais ou menos, na qual a direita liberal que predominou nos anos 1990 e começo dos 2000 foi sendo desafiada e substituída por uma direita iliberal, que tem uma estreita amizade com o trumpismo e que será inspirada e reforçada com uma vitória de Trump.
Dito isso, os eventos nos Estados Unidos têm algum impacto no que acontece na América Latina, mas a política latino-americana segue sua própria dinâmica. Bukele foi eleito e fez o que fez por razões muito específicas a El Salvador, e sua popularidade é muito específica de El Salvador.
Outros políticos de extrema direita tiveram resultados mistos. Bolsonaro não foi muito bem-sucedido. E Milei, vamos ver. Ele nunca teve, e nunca terá, a popularidade que Bukele tem. Bukele é único. E vamos ver se Milei vai continuar a ter sucesso, mas ele está governando em circunstâncias econômicas muito, muito difíceis. Eu não ficaria surpreso se ele também perdesse o apoio.
No final das contas, a política latino-americana é moldada por dinâmicas latino-americanas, não por eventos nos Estados Unidos.
Agora, quando falamos de Bolsonaro, as relações pessoais são bem mais próximas. Como mostramos na Pública, há uma grande articulação inclusive para pedir sanções econômicas liderada pelo Eduardo Bolsonaro…
Às vezes me parece que Bolsonaro estava literalmente copiando Trump, e acho que isso provavelmente o prejudicou politicamente.
Quanto a sanções… Isso não vai acontecer. O Brasil é um grande país. O Brasil é um parceiro comercial importante para os Estados Unidos. É uma liderança importante na região que está tendo um papel potencialmente muito importante nas eleições venezuelanas agora, e é obviamente um país soberano com um sistema judicial soberano. E simplesmente é inimaginável que isso aconteça.
Minha última pergunta é: você pode dizer qual é o impacto da ascensão de Trump no surgimento da extrema direita em diferentes partes do mundo? E a segunda pergunta é: ainda existe alguma direita moderada, que não seja extrema?
Na verdade, a direita estava evoluindo muito antes de Trump. Quero dizer, Uribe teve mais impacto na extrema direita na América Latina seis anos antes de Trump. Obviamente, Trump teve impacto em Bolsonaro, mas mesmo Bolsonaro já estava envolvido na política antes de Trump.
Então, a virada para a direita através de forças como uribismo, fujimorismo, até mesmo bolsonarismo, isso estava acontecendo.
E as causas do aumento da direita liberal na América Latina, além do aumento do evangelismo, é a insegurança. A esquerda nunca conseguiu encontrar propostas eleitoralmente viáveis na questão da segurança pública.
Então, as causas fundamentais tanto na América Latina quanto na Europa, da ascensão da extrema direita não são Trump.
Na Europa a extrema direita tem crescido constantemente e devagar desde os anos 1970. A União Nacional, na França, o Brexit aconteceu antes de Trump… Na Europa, é em grande parte uma resposta ao aumento da imigração e da diversidade.
Trump pode inspirar pessoas, pode encorajar pessoas, mas as causas fundamentais são domésticas, e elas existirão com ou sem Trump. Haverá uma extrema direita na Europa e na América Latina com ou sem Trump.
Mas é uma tendência que a extrema direita está adotando narrativas mais extremistas, pelo menos, ou discursos, porque ganha votos.
Veja, isso não é realmente verdade na Europa. Na Europa, à medida que a extrema direita cresce, ela se modera. A União Nacional francesa, de Marie Le Pen, hoje é muito mais moderada do que a União Nacional de 20 anos atrás. E o governo de Meloni, da Itália, seu governo foi bem-sucedido em ganhar eleições, mas é muito mais moderado do que ela dizia.
Não tenho certeza de que o extremismo ganha votos.
Acho que o extremismo ganha votos na primária do Partido Republicano. E na América Latina, porque há um nível muito, muito alto de descontentamento, especialmente na América Central e no Brasil, no México e talvez no Peru.
Assim, não podemos superestimar a popularidade do discurso extremista.
Edição: Bruno Fonseca