Suburbanismo à minha moda

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Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero” do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Desta vez, Cícero César especula sobre a nefasta especulação imobiliária no subúrbio e em outros locais.

Em diversas de suas crônicas, Aldir Blanc (1943-2020) critica a especulação imobiliária que nos anos de 1970 estava a pleno vapor (ou numa segunda ou terceira onda, a bem da verdade). O cronista, que sentiu na pele esse estado de coisas, chamava os efeitos nocivos do progresso de “pogresso”! Isto é, ao retirar apenas uma letra da palavra, ele punha o dedo na ferida e a boca no trombone: o bota-abaixo que se fazia à época na cidade tinha mais a ver com o interesse pelo lucro das construtoras do que com urbanização ordenada e planejada para o futuro e para a integração da cidade.




Descaracterização, eis o nome.

E tem mais, com a chegada dos prédios altos, de não sei quantos blocos e apartamentos, de playgrounds, muda-se agudamente a forma de convivência entre as pessoas.

É como se o sujeito, ao chegar à casa, sentisse que está chegando a sua casamata privada ou coisa que o valha. Isto porque aquele a quem não se conhece vai se tornando o “Outro”, o não-igual, o adversário, o inimigo.

Não sou urbanista, não deveria falar assim de orelhada. Mas tenho a impressão que o Rio de Janeiro, feito um boi, foi recortado em peças nobres, de segunda e de terceira.

Explico-me: havia terrenos que eram economicamente viáveis ocupados por pessoas de baixo poder econômico. Advinha quem foi convidado a se retirar com ou sem indenização?


Que tal uma pesquisa? Pode-se começar pelos inúmeros conjuntos habitacionais do tipo Cohab polvilhados pelos subúrbios.

O que não se sabia é que o pessoal iria construir uma cultura a partir daquele estrangulamento todo. Chame-a de cultura das Quebradas, das Periferias, dos Subúrbios. Há um enorme grupo de pessoas dispostas a falar sobre um assunto que diz respeito ao fenômeno.


Entretanto, a questão de se habitar bem, de se ter acesso ao lazer, à educação, ao saneamento básico, ao transporte, à saúde permanece. O assunto está ou deveria estar na pauta do dia.

Não só aqui, nesta cidade decadente que não se entrega. Basta ver os filmes “O som ao redor” e “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho, para sacar que as construtoras vão em cima dos terrenos mais rentáveis de Recife com mais apetite que tubarão de praia da Boa Viagem.

Kleber Mendonça Filho ironicamente dá sempre um nome supostamente pomposo aos empreendimentos. Irei bolar um apenas a título de exemplo: Condomínio Soleil da Estrovenga Resort.

Ainda no primário nos deram um livro pra ler. A história era uma mistura de “Turma da Mônica” com “Os meninos da rua Paulo”. No final do livro, o terreno, vendido, cede espaço para um prédio. É o último dia de brincadeiras ali.

Somente um menino, o mais chatinho, encrenca com o negócio. Mas é logo repelido pelo líder da turma, que lhe diz que, com a chegada dos prédios, eles teriam a oportunidade de fazer mais amigos.

Como se sabe, livros desse tipo são estruturados de maneira a situar o protagonista como a “voz” dos autores, com o estado de coisas que os autores endossam.

Quer dizer, eu, com nove, dez anos, li um livro paradidático que trazia em primeiro plano a lógica da compensação, ao me dizer que o progresso iria me trazer mais amigos.

Não concordei, não concordo. Se amigos são feitos em prédios assim, apesar dos muros, talvez seja porque o espírito de convivência à suburbana, com todas as suas contradições, não quis morrer.

Quando passo pelo subúrbio no meu velho Siena (a quem batizei de “Senil” por óbvios motivos), percebo que muitos terrenos foram comprados para darem lugar a empreendimentos imobiliários.

O apetite das construtoras se explica pela proximidade do terreno a uma saída da Linha Amarela. Nessa toada, lá se foram da Piedade um colégio tradicionalíssimo e a fábrica de açúcar União.

É, é o “pogresso”.

Foto: Santa Teresa, por Washington Luiz de Araújo

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