Um labirinto político entre a fúria golpista e o apetite por emendas
Por Rafael Mafei, compartilhado da Revista Piauí
na foto: O ministro do STF Luiz Fux, ao lado do então presidente Jair Bolsonaro e do presidente do Senado Rodrigo Pacheco, durante evento em 2022Wilson Dias/ Agência Braisl
As eleições municipais deste ano mostraram que há duas direitas disputando o eleitorado brasileiro. Ao mesmo tempo em que trabalham juntas contra a esquerda, elas também disputam entre si a hegemonia sobre o campo oposto. Celso Rocha de Barros chamou-as de “direita-redes” e “direita-máquina”. Aplicando-a ao microcosmo paulistano para exemplificar, Pablo Marçal (PRTB) representou a direita-redes no primeiro turno da eleição municipal; Ricardo Nunes (MDB), a direita-máquina. Quem preferir olhar para Brasília, verá o que Marcos Nobre vem chamando de dois Centrões: um relutante, que prefere se manter distante do extremismo; e outro “carcará”, que abraça sem medo o golpismo de bases digitais. Essas duas direitas disputam a hegemonia do voto economicamente liberal, ideologicamente conservador e antipetista no Brasil.
Pensando nos permanentes encontros e desencontros entre o Supremo Tribunal Federal e o mundo da política, a pergunta que imediatamente se coloca é: como fica o STF diante dessa dualidade? O que espera e o que planeja cada uma das facções que disputa a hegemonia da direita brasileira para o tribunal? Diante dessa dualidade, dizer que há “retaliação do Congresso” contra o STF explica pouco, pois cada direita pode querer algo diferente do tribunal.
O exercício de responder a essas perguntas pode ser feito a partir de projetos que têm avançado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados e tratam de assuntos do interesse do Supremo. O colegiado presidido pela deputada Caroline de Toni (PL-SC) dá pistas dos rumos que o embate entre Legislativo e Supremo pode vir a tomar num futuro em que as duas direitas ora trabalharão juntas, ora duelarão entre si. O fato de o colegiado ser presidido por uma bolsonarista radical, entusiasta do que ficou conhecido como “pacote anti-STF”, não impede que boa parte do que ali circula tenha o DNA da velha direita relutante, que não busca agredir o Supremo ou expurgar ministros, mas sabe bem o que quer do tribunal.
Para a facção mais extremista da direita, os atuais chamarizes anti-STF são claros: a anistia aos envolvidos na tentativa de golpe do 8 de janeiro; o impeachment de ministros do STF, em especial Alexandre de Moraes; e o combate do dito “ativismo judicial” contra redes sociais e influenciadores digitais.
A anistia aos atos de 8 de janeiro está em pauta porque interessa pessoalmente àquele que ainda é a maior liderança da direita extremista (“redes”, “digital”): Jair Bolsonaro. Embora fale sempre como um abnegado que age por consideração aos condenados pelas invasões e pela destruição dos prédios públicos de Brasília, Bolsonaro sabe que há esperanças de que ele consiga colocar a si próprio dentro do rol dos anistiados pelo recurso maroto dos “crimes conexos”, já que, esticando bem, até os casos dos cartões de vacina e das joias sauditas, como estratégias de álibi ou exílio, poderiam ser estrategicamente relacionados à tentativa fracassada de golpe contra Lula.
No mesmo projeto de lei que anistia a turma do 8 de janeiro – o principal texto ora em discussão é de autoria do deputado bolsonarista Major Vitor Hugo (PL-GO) – está previsto o perdão também para investigações, processos e condenações “que se voltem contra a livre manifestação do pensamento”, contra a imunidade parlamentar e contra quaisquer manifestações expressivas, na internet e ou fora dela, tanto perante a justiça comum, quanto perante a justiça eleitoral. É a carta de saída livre da prisão para gente como Allan dos Santos, personagem seminal da nossa direita mais extremista; e, claro, a carta de volta às urnas para Bolsonaro.
Quanto ao impeachment, a direita extremada trabalha em duas frentes: a legislativa e a parlamentar. No primeiro caso, busca aumentar o rol de condutas passíveis de enquadramento como crimes de responsabilidades de ministros do Supremo, que hoje são arrolados em hipóteses restritas na lei do impeachment, de 1950. Nos projetos em tramitação na Câmara, há novas hipóteses que, se aprovadas, virão a calhar como instrumentos de pressão das falanges extremistas da direita contra o tribunal, como seria o caso do crime de responsabilidade de “violar imunidade parlamentar”. Um suposto desrespeito à imunidade parlamentar é o principal argumento invocado por bolsonaristas para criticar a decisão do Supremo contra o ex-parlamentar Daniel Silveira, por exemplo.
Na frente parlamentar, o trabalho dos extremistas é de médio para longo prazo: primeiro, aumentar a bancada de senadores que topariam condenar o ministro Alexandre de Moraes à perda do cargo, em um processo de impeachment a pretexto qualquer. Cumpre lembrar que, ao contrário do que ocorre nos processos contra presidentes da República, o impeachment de ministros do STF não passa pela Câmara, mas começa e termina no Senado Federal.
Para isso (não apenas, mas também), investiram pesado na formação de bases robustas no nível municipal neste ano: PL e Republicanos, dois dos partidos que mais abrigam direitistas radicais atualmente, tiveram os maiores aumentos nominais de vereadores na eleição atual (1.494 e 2.068, respectivamente). Serão eles os cabos eleitorais nas eleições de 2026, quando dois terços do Senado serão renovados e “trabalhar pelo impeachment do Alexandre de Moraes” será promessa de campanha dos candidatos da direita radical em todos os estados brasileiros.
Os novos senadores se somarão aos eleitos em 2022, quando o PL de Bolsonaro se tornou o maior partido da casa. Essa bancada será decisiva na eleição para a presidência do Senado no começo de 2027, e exigirá de todos os candidatos ao comando da casa o compromisso de fazer andar ao menos uma denúncia por crime de responsabilidade contra um ministro do STF, provavelmente Moraes. Para se ter uma ideia da importância que os extremistas dão a essa frente de batalha, cogita-se hoje que todos os filhos de Bolsonaro, além de sua esposa Michelle, concorram ao Senado por diferentes unidades da federação (Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Distrito Federal).
Já a “direita-máquina”, para continuar com a classificação de Rocha de Barros, trabalha com outro horizonte de interesses: não liga tanto para os golpistas presos, nem se compadece pelos radicais fugidos da polícia e banidos das redes sociais. O que faz brilhar seus olhos são as emendas parlamentares. De preferência em quantidades cada vez maiores e com controles cada vez menores. Se os extremistas se batem contra Alexandre de Moraes, a direita da velha política hoje vive às turras com outro ministro, Flávio Dino, que tem sido firme em seu propósito de conter a farra das emendas na Câmara dos Deputados. Embora tenha buscado uma saída dialogada e conciliatória para o conflito, Dino está no encalço dos deputados que insistem em trabalhar com padrões sub-republicanos na destinação de quinhões sempre crescentes do orçamento público.
Se as palavras-chave para o conflito com a direita extremista são “anistia”, “liberdade de manifestação” e “imunidades parlamentares”, os bordões da velha direita nas suas rusgas com o tribunal são outros: “usurpação de competência do legislativo”, “afetação de políticas públicas” e “controle legislativo do orçamento”. É por esses eufemismos que o Congresso se insurge contra decisões do Supremo que dificultam ou impedem o livre fluxo do dinheiro das emendas sem os necessários controles e transparência. Claro que a matéria interessa também à extrema direita, que se beneficia de emendas para fortalecer suas bases municipais e regionais, mas não a ponto de fazer dela seu lema de guerra (até porque a velha direita faz isso bem melhor).
Nas matérias atualmente em tramitação no Congresso, esse descontentamento se expressa em três vertentes, que às vezes aparecem nos mesmos projetos legislativos que interessam à direita radical: (1) propostas de emenda à Constituição que limitam decisões monocráticas em ações de controle de constitucionalidade; (2) novas hipóteses de crimes de responsabilidade; e (3) possibilidade de sustação de decisões do STF por votação parlamentar.
A PEC 8/2021, que limita decisões liminares monocráticas (um propósito que não é em si inconstitucional), proíbe decisões individuais que possam suspender ato de outro poder de modo a “afetar políticas públicas” – o que fatalmente engessaria a atuação do tribunal em relação às emendas pois, no limite, tratores, cisternas e kits-robótica são “políticas públicas”. Vale destacar um ponto que interessa menos aos parlamentares alardear: algumas liminares, como as decisões de Gilmar Mendes que suspenderam investigações e anularam provas contra Arthur Lira (PP-AL), beneficiando o presidente da Câmara e seus aliados, continuariam sendo possíveis, porque não se referem estritamente a políticas públicas e sim a matéria penal.
Quanto aos crimes de responsabilidade, que colocariam os ministros sob ameaça de impeachment, os dois projetos ora em discussão – PL 658/22 e PL 475416, com os respectivos substitutivos – preveem um novo crime que nada seria além do exercício da atividade jurisdicional própria de um tribunal constitucional: “usurpar competências do Poder Legislativo, criando norma geral e abstrata de competência do Congresso Nacional.” Não é difícil enxergar que, por essa lógica, o detalhamento financeiro de emendas parlamentares, no qual o ministro Dino insiste, seria facilmente percebido como interferência judiciária em um expediente interna corporis do Legislativo. (O dispositivo aproveitaria também aos extremistas: a decisão de 2012 que liberou o aborto de gestações anencefálicas, por exemplo, poderia enquadrar-se aqui.)
Já a sustação de decisões do STF, nos termos da PEC 28/24 da Câmara dos Deputados, permitiria ao Congresso bloquear os efeitos de uma decisão do STF em ação de controle de constitucionalidade sempre que os parlamentares considerassem ter o STF “exorbitado” sua função jurisdicional. E não há dúvidas de que os parlamentares consideram exorbitantes as decisões que enrijecem o gasto que fazem do orçamento que eles próprios aprovam.
Como o Supremo pode se proteger dos petardos que recebe nas duas frentes de batalha que trava – contra os extremistas, de um lado, mas também contra o Centrão perdulário, que quer usar a máquina para se tornar cada vez mais poderoso? A resposta que parece óbvia é: valendo-se do seu poder de declarar inconstitucionais leis e emendas que importem violação à separação de poderes, como de fato é o caso de muito do que avançou na CCJ da Câmara na semana passada. Crimes de responsabilidade que minam a independência judicial ou a possibilidade de sustação de decisões do Supremo pelo Senado seriam evidentemente inconstitucionais à luz do modelo brasileiro de separação de poderes.
Do ponto de vista político, porém, é preciso reconhecer que essa saída teria custos para o tribunal. O Supremo tornou-se uma instituição sobre a qual existem pouquíssimos controles formais. Enquanto os demais magistrados brasileiros respondem às corregedorias dos seus tribunais e ao CNJ, com base em diversas leis e códigos de conduta profissionais, o Supremo paira acima de tudo isso porque só responde ao Senado, apenas com base (em tese) em minguados crimes de responsabilidade previstos em uma legislação datada de 1950, que nem de longe alcança o que de fato é a atuação de um ministro do STF nos dias de hoje.
Reagir às investidas do Congresso através de declaração de inconstitucionalidade, embora perfeitamente adequado do ponto de vista técnico-jurídico, poderá ser percebido pela opinião pública como um condenável uso do poder jurisdicional em benefício próprio. Seria munição para a extrema direita retratá-lo segundo caricatura maldosa que populistas desenham das elites políticas: gente que assume o controle das instituições estatais, age para se manter inalcançável e dita os rumos do país à revelia da vontade popular.
O fato de que as propostas que agora miram o tribunal sejam juridicamente infundadas, porque em larga medida violam a Constituição, e politicamente criticáveis, porque motivadas por razões que nada têm a ver com o seu aperfeiçoamento enquanto instituição, não nos deve impedir de enxergar o que elas mais têm de perigoso: a possibilidade de transformar a agenda anti-Supremo em pauta eleitoral e parlamentar ecumênica das direitas brasileiras. Nesse cenário, o maior risco é que a facção mais extremada da direita se torne a maior força política do Senado no médio prazo. Se isso acontecer, já sabemos o preço que a velha direita cobrará para estender uma mão protetora ao tribunal: um controle cada vez maior do orçamento, sem o Supremo em seu encalço – os detalhes eles acertam em Lisboa.